A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 7
Vocativo


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto que esqueceu de salvar a si mesmo
Boa leitura!



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VII. Vocativo

 

Os últimos dois meses vêm como ondas, às vezes espaçados, às vezes em série.

São memórias que me deixam acordada pelas duas primeiras horas da noite.

Os últimos duzentos anos, porém, vêm como furacões, arrastando tudo.

O espírito amaldiçoado guarda as lembranças que coletou das nove gerações de uma mesma família que parasitou. Ele pode ou não compartilhar tais lembranças com o hospedeiro. Mas eu insisto em olhar tudo o que tiver pra ver dentro dessa nossa mente cheia demais.

São memórias que nunca mais me deixarão dormir.

Itadori, Kugisaki e Fushiguro fazem questão de dormir no mesmo quarto que eu.

Eles se arrumam em futons pelo chão, amontoando o quarto vazio. Eu não tento lutar, eu não tento convencê-los do contrário, nem dizer que vou ficar bem sozinha.

Eles não vão acreditar em mentiras assim tão fácil. Então, deixo fazerem o que os deixa confortáveis e aproveito o tempo para explorar minha própria mente.

É quase três da manhã quando invoco minha eu amaldiçoada, com manchas brancas e tudo.

Me movo dos lençóis sem produzir um único som. Jogo os pés para fora da cama e não preciso tocar o chão. Dou um passo no ar, e outro e outro. Caminhando sobre uma ponte invisível, eu passo por cima de Fushiguro, Kugisaki e Itadori, calmamente ressonando para guardar meu sono.

Eu sorrio para eles e agradeço por tudo antes de abrir a varanda e me evadir na noite enluarada.

Antes, porém, que eu atravesse os portões do colégio, eu me viro para a sombra que espreita do céu. Observo com adoração a silhueta de Satoru Gojou descer até mim como um anjo. Seus olhos, visíveis sem a venda, me perscrutando por todos os lados.

— Meio tarde pra um passeio, não acha, Midori?

Eu aponto para a rua do outro lado do portão.

— Eu só vou até ali e já volto.

Ele sorri, condescendente. Temos isso em comum, eu e ele. Somos ótimos em falsificar expressões.

— Tem certeza?

Eu aceno.

— Só quero ver minha irmã.

Ele se aproxima de mim. Inclina-se em minha direção como se eu fosse uma criança muito pequena e me olha com afeto, um afeto que não deveria existir, considerando a pouca quantidade de tempo que convivemos. E por isso, talvez, eu ame todos os adjetivos no superlativo de Satoru Gojou. Ele ergue a mão e afaga o alto da minha cabeça.

— Certifique-se de voltar em segurança. Eu sou seu professor, eu me preocupo com você.

Ele não é meu professor e eu não sou aluna dele. E nós dois sabemos que eu não vou voltar.

Eu afasto delicadamente sua mão da minha cabeça. Sorrio, as bochechas ficando quentes de repente.

— Eu sei. Obrigada.

Então me viro e parto. Antes de ir embora, aceno para ele:

— Nos vemos por aí, sensei.

 

No túmulo da minha irmã, há flores de ameixeira frescas que eu não me lembro de ter colocado. O sensei Gojou deve ter feito isso.

Eu as arrumo direitinho, varrendo as pétalas já mortas para que elas não maculem o descanso final de Ume, e depois me sento ali. Choro até achar que não tem mais lágrimas no meu corpo pra derramar.

Eu me lembro de acordar no meio da noite em que minha irmã morreu com um incômodo na coluna. Depois que recebi a notícia, a maldição tomou controle do meu corpo. Ela cuidou da cremação, do túmulo, de toda a papelada. Então, foi embora de casa e nunca mais voltou.

Ficava vagando pela cidade como um fantasma. Sempre que este corpo sentia fome, ela roubava comida de alguma loja. Quando tínhamos sono, ela invadia hotéis. E se alguém tentava nos machucar, ela os machucava primeiro.

Em algum momento, ela acabou adquirindo um gosto pela violência. Por isso, começou a caçar todas as pessoas que alguma vez já tinham me incomodado de alguma forma, na escola, na estação, na vida.

Sempre que eu recuperava a consciência, ela me colocava de volta em um sonho bonito, onde eu estava em casa comendo omeletes com minha irmã.

Alguma parte do meu subconsciente deveria estar ciente, no entanto, porque um dia, eu simplesmente fiquei parada nos trilhos de um trem. Me matar mataria a maldição, deve ter sido o que pensei. Até Itadori me resgatar e eu voltar totalmente a mim.

Hoje, eu paro nos mesmos trilhos onde essa história começou. As poucas luzes ao redor,  distantes, minúsculas, são as de uma cidade adormecida.

Eu ouço o barulho do vento, o som pungente das rodas do trem contra os trilhos, e os sinos badalando. Ding, dong, estou chegando pra você.

Eu espero pacientemente no local de meu descanso final. Até que ele chegue.

O trem não.

Aquele que voa em minha direção e me arranca da linha da morte.

Itadori chega primeiro que os outros porque é mais rápido, me agarra pela cintura e salta comigo em direção às margens da estrada, aos arbustos e às pedras.

Eu caio por baixo de seu corpo, desajeitada, enquanto ele me prende com dois braços ao meu redor.

A lua brilha acima de sua cabeça quando ele me olha, no rosto, uma repreensão dura cheia de medo.

— Kaoroku!

Eu sorrio, sórdida e atrevida.

— Itadori-kun, se você me tocar assim, eu vou ficar tímida. 

Atrás dele, o som trovejante do trem colidindo com algo reverbera pela noite, o tremor de terra agitando as pedrinhas no chão.

Itadori lança a cabeça para trás, para olhar, sem entender o que aconteceu.

— Um trem não pode me matar, bobinho. Eu sou metade maldição. — Dou de ombros, cínica. — Mas sabe o que pode me matar? Um feiticeiro jujutsu.

Eu agarro o pescoço de Itadori e giro sobre ele. Monto sobre seu quadril e antes que ele reaja, levanto dois dedos e entôo:

— Emerja das trevas, mais escura que a escuridão. Purifique o que é impuro.

Minha cortina sombria se espraia no céu como um manto, envolve todo o espaço onde estamos, até onde o trem está parado, destroçado e soltando fumaça.

— Cortina? — Itadori exprime. — Quando aprendeu a fazer isso?

Solto uma risadinha.

— Eu tenho duzentos anos de memória compartilhada, Itadori-kun. Você não faz ideia das coisas que eu sei fazer.

Kugisaki e Fushiguro chegam nesse momento, cada um com suas armas na mão. O cão divino negro com eles, provavelmente foi quem denunciou minha posição. Eles param a uma distância quase segura e observam o trem fumaçando atrás de nós.

— Como isso aconteceu? — pergunta Kugisaki, o rosto duro, olhos tremendo. — Tem pessoas naquele trem.

Eu salto de cima de Itadori e fico de pé.

— Tem mesmo. Estão feridos e se não forem atendidos logo, boa parte deles morrerá. Acontece que minha cortina vai garantir que eles não possam sair e que ninguém possa entrar. O único jeito de salvá-los é matando o invocador da cortina. — Abro os braços, satisfeita. — Eu.

Há descrença nos três pares de olhares que me encaram.

— É isso? — cospe Kugisaki, com desprezo, seus verbos abundantes em chamas. — Esse é seu plano de suicídio?

Sinto os músculos do meu rosto congelarem com a frieza que sai com minha voz.

— Há duzentos anos, essa maldição vem consumindo as vidas das pessoas da minha família. Ela tirou tudo o que eu tinha. Agora, finalmente eu tenho a chance de fazer o que meus pais e minha irmã tentaram sem sucesso. Uma vez que eu morra, minha maldição morrerá comigo. — Sorrio, o sorriso mais sincero que já dei na vida. — Eu conto com vocês pra isso.

Meu trio favorito se põe em guarda alta para a alta traição que eu cometi.

— Já que é assim — diz Fushiguro. — Como feiticeiros jujutsu, nós não vamos hesitar.

— Não. — Balanço a cabeça, indulgente. — Não, não, Fushiguro-kun, você é um mentiroso. E não é nem um bom, como seu sensei. Você não vai tentar me matar, você é suave demais. — Coloco uma mão no peito, sorrindo. — Me desculpe, mas você é muito gentil, essa é a verdade, embora você não queira admitir. Você vai tentar me imobilizar, me deixar fraca o suficiente pra que a cortina se desfaça. Eu não posso permitir que isso aconteça.

Dou um passo para o lado, minha mão sobrepondo os lábios enquanto penso. A mancha amaldiçoada branca está pela altura dos meus cotovelos ainda, mas logo terá se espalhado por todo meu corpo.

— Eu até aceitaria ser levada pro colégio Jujutsu, onde eles me julgariam e me executariam, mas aí Satoru Gojou iria interferir de novo, porque ele adora fazer essas coisas, e a última coisa que eu preciso agora é do feiticeiro mais poderoso do mundo tentando salvar minha vida. Então, não, obrigada. Ao invés disso, não vou dar outra opção a vocês além de me matar.

Itadori dá um passo mais para meu campo de visão. Tem um desespero contido em seus olhos, seus verbos intransitivos que não necessitam de complemento.

— Não, isso não vai acontecer — ele diz, soa duro e magoado, ao mesmo tempo é como uma prece. — Eu não quero mais perder nenhum amigo bem na minha frente.

Suas palavras acertam como flechas em meus órgãos internos. Cada neurônio e cada célula do meu corpo implora para que eu o obedeça, para que eu faça de joelhos tudo o que eu quiser que eu faça.

— Sinto muito ter que fazer isso com você, mas é assim que as coisas são. Quem sabe em outra vida, Itadori, poderemos sentar e conversar sobre tudo. Mas hoje, aqui e agora, eu quero mostrar um dos meus truques para você. — Ergo a mão à altura do meu rosto. Sorrio brandamente. — Técnica Amaldiçoada Hereditária: — Estalo os dedos. — Divisão Binária.

Um novo corpo se desgruda de meu corpo. Vai se arrancando aos poucos, um braço, uma perna, uma cabeça com cabelos brancos. Fica parada ao meu lado enquanto outro corpo sai dela. A divisão continua até que sejamos cinco, de pé, cinco pessoas exatamente iguais.

Itadori, Kugisaki e Fushiguro parecem horrorizados.

— Está meio cheio aqui, não? — pronunciamos juntas, um coral amaldiçoado. — O que acha de darmos uma volta, hein?

Em um piscar de olhos, eu estou diante de Fushiguro. Ele demora um instante antes de perceber minha presença tão perto e, antes que ele reaja, eu o agarro pelo pescoço. Me lanço no ar com ele, voando, até sumirmos na linha do horizonte.

— Fushiguro! — berra Itadori.

Meu corpo principal se aproxima dele.

— Não é hora de se preocupar com os outros.

Eu o acerto com um chute que o lança longe, mas não tanto. Outra das minhas duplicatas agarra Kugisaki e a tira dali. As três que restaram encaram Itadori, porque ele é mais forte. Porque é preciso mais do que uma de mim pra vencê-lo.

Eu sorrio pra ele se levantando da terra, tossindo, meio abalado, meio ferido.

— Como eu digo isso educadamente? — Uma das minhas duplicatas reflete, pensando.

Eu gargalho, meu interior pulsando, meu rosto branco como leite ficando corado. A outra de mim se inclina simpaticamente na direção dele e ronrona:

— Itadori-kun, é a minha primeira vez, mas, por favor, não seja gentil comigo.

 

Todas as minhas duplicatas são eu e eu sou minhas duplicatas. Compartilhamos a aparência, a personalidade, a mente e a consciência. Tudo o que uma delas vê, pensa ou sente, meu corpo principal sabe.

Eu levo Megumi Fushiguro até bem longe da estrada, do trem, dos trilhos, onde ninguém poderá salvá-lo.

Seu cão divino tenta me atacar, mas é fácil desviar dele, mesmo ele estando maior, mais selvagem.

— Recolha sua invocação, eu não quero ter que matá-lo.

Fushiguro arfa, saltando para longe de mim. Limpa poeira e saliva dos lábios.

— Como você espera que eu vença você sem eles?

— Você não vai me vencer usando esse nível de poder. Não está me tratando como uma maldição, mas como uma pessoa — Eu abro os braços pra que ele veja, minha pele totalmente branca, meus olhos negros, meus cabelos da mesma cor de cal. — Eu não sou mais uma pessoa. — Fushiguro, porém, não avança, o que me faz dar uma risada seca e triste. — Você não devia ser um feiticeiro jujutsu, é piedoso demais pra isso. Você deveria ir à escola e depois à faculdade, ser um perito forense, ter uma namorada legal que seria a luz da sua vida e amigos que arrancariam você do quarto quando ficasse amargo demais, que fariam surpresa pra você no seu aniversário.

Eu me movo como uma brisa suave, sem fazer barulho. Enterro minhas garras bem na barriga de Megumi, afundo-as em seu estômago, seu sangue escorrendo em minhas mãos, manchando o branco em minha pele.

Ele se dobra sobre meu ombro com o impacto, ainda chocado, sangue gotejando dos cantos de seus lábios.

— Megumi, eu queria que você tivesse uma vida melhor do que a que vai ter.

Eu o agarro pelos cabelos no alto da cabeça, é tão fácil, é como erguer uma criança pequena, e enterro meu joelho em seu peito. Arranco dele todo o ar antes de finalmente arremessá-lo de volta ao chão. Megumi cai de bruços, grunhindo, um som que é como eletricidade no meu sistema nervoso.

Eu gargalho e não reconheço minha própria risada, é fina, falhada no meio.

— Vamos lá, Megumi, você sabe o que eu quero.

O cão divino tenta me atacar por trás, mas eu o agarro e arranco uma de suas patas. Arremesso seu corpo longe, para que Megumi o mande embora, e é o que ele faz.

— Nue!

Nue surge batendo asas acima de mim, mas a descarga de eletricidade que ele envia não faz mais que cócegas. Eu dou um breve salto no ar e o agarro pelas patas. Dali de cima, arremesso-o em direção ao chão, que forma uma cratera e uma nuvem de poeira quando ele afunda.

Uma onda visceral de água vem depois dele, me engole. É a primeira coisa que consegue me perturbar desde que começamos essa batalha. Enquanto sou levada pela onda, alguém me agarra pelo pé. Eu giro no ar e sou arremessada de encontro à terra. Meu corpo afunda no chão sólido quando um elefante se move para me pisotear.

Eu sou mais forte que ele. Eu o chuto de cima de mim e ele cai com um estrondo no chão, esperneando.

Subitamente, um chute de Megumi me acerta o rosto e eu cambaleio. Ele vem sem hesitar, me dá uma rasteira e quando caio, ele tenta me socar, está usando um par de porretes amaldiçoados que me machucam quando me acertam. Eu giro antes que ele me atinja e chuto suas pernas.

Nue vem até mim como um raio. Dispara uma descarga elétrica que faz meus dentes rangerem.

Eu aguento tudo e quando finalmente acaba, eu me arrasto até Megumi, eu o agarro pelos cabelos uma vez mais.

Ele tosse sangue. Eu enfio seu rosto no chão duro repetidas vezes, até que haja tanto sangue que eu não seja capaz de reconhecer onde fica seu nariz, sua boca ou seus olhos.

Ah, desfigurei seu lindo rosto.

Nue volta e me arranca de cima dele. Eu mergulho na terra dura. As novas descargas elétricas que o shikigami me acerta fazem meus ossos tremerem. Eu fico largada no chão, no meio da cratera, meu rosto lanhado dos ataques, meu sangue vertendo das feridas abertas.

Eu me ponho sentada.

Do outro lado do campo, Megumi também está sentado. Parece muito cansado. Ele se senta com os joelhos bem afastados e cospe o próprio sangue na grama.

Eu rio um pouco, e essa risada sim parece minha.

— Sabe de uma coisa, Megumi, eu costumava não saber lidar com você. Você é um numeral cardinal, enquanto eu sou um verbo anômalo. Estamos em categorias completamente diferentes.

Megumi franze, insatisfeito.

— Do que diabos está falando?

Dou de ombros.

— É só a forma como enxergo as coisas. Eu achava que não tínhamos como nos dar bem, porque éramos diferentes, mas é exatamente o contrário. Nós somos iguais. Você, como eu, é a pessoa que vai sobreviver enquanto todos ao seu redor morrem. Você vai viver pra enterrar aqueles que ama e, por isso, seu destino será o pior de todos.

Megumi provavelmente sabe disso também, porque ele se levanta limpando o rosto, as pernas tremendo, ele me olha com cumplicidade e arrependimento.

Eu sinto muito por ter que fazer isso com ele.

— Midori, você tinha razão. Não temos como nos dar bem. — Ele une as mãos. — Expansão de Domínio — Eu fecho os olhos e espero pelo que vem depois. — Jardim das Sombras Justapostas.

O manto do jardim de Fushiguro se estende sobre nós. Sua energia amaldiçoada ao meu redor é pesada e fria, me dá arrepios na espinha. Em cada sombra deste lugar, habita um monstro para me devorar.

Eu tombo a cabeça para trás e respiro fundo. Acho que devo ter ouvido Yuuji falar que a melhor forma de lidar com um domínio é abrindo outro domínio.

— Megumi. — Eu me levanto. — Obrigada por tudo. Foi realmente bom conhecer você. — Posiciono as mãos com o mudra da deusa da fertilidade hindu, Parvati. Ambas as palmas abertas voltadas para a frente, uma mão aponta para cima e a outra para baixo. —  Expansão de Domínio. — Minha energia amaldiçoada retumba, eufórica. — Árvore Genealógica dos Condenados.

 

"Não adentre a boa noite apenas com ternura

A velhice queima e clama ao cair do dia

Fúria, fúria contra a luz que já não fulgura"

(Não adentre a noite apenas com ternura, Dylan Thomas)


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Notas finais do capítulo

É isso. Espero que tenham gostado. Até a próxima!



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