A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 6
Aposto


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto que não se permitia desmoronar
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805836/chapter/6

VI. Aposto

 

Kaoroku.

Escrito com os kanjis para a palavra rosto (顔, Kao) e para o numeral seis (六, Roku).

É o nome de casados dos meus pais, que eu e minha irmã mais velha herdamos.

Mas também era o nome de solteiro tanto da minha mãe como do meu pai.

Isso mesmo.

Meu pai e minha mãe eram primos, filhos de dois irmãos. Meu avô paterno é também meu tio-avô materno, e meu avô materno é também meu tio-avô paterno.

O que significa que minha irmã e eu somos frutos de uma relação incestuosa.

Uma relação que pode ser a coisa mais linda e, ao mesmo tempo, a coisa mais nojenta do mundo.

Satoru Gojou reuniu seus três alunos do primeiro ano, mais eu, em uma sala de aula do colégio Jujutsu. Como ele nos encorajou a relatar tudo que sabíamos sobre minha maldição, nós começamos a falar.

— É uma maldição que age para a autodefesa do hospedeiro — diz Fushiguro, completamente concentrado. — Muito semelhante à maldição Rika quando ainda estava ligada ao Okkotsu-senpai. Mas essa é diferente, porque não está ligada à Kaoroko por um pacto de submissão e sim habita dentro dela, se fundindo ao próprio ser dela.

— Como o Sukuna e o Itadori? — divagou Kugisaki, consigo mesma.

— É diferente, eu acho — opino. — Não sei muito sobre maldições, mas Itadori e Sukuna são duas consciências completamente diferentes. O Sukuna é como um hóspede no corpo do Itadori, mas minha maldição… A minha não hospeda meu corpo, ela o parasita. É como uma relação de simbiose. Fora alguns instintos naturais dela, ela não tem consciência própria, ela usa a minha consciência, as minhas emoções e simplesmente as aumenta. Como um vírus.

Itadori se inclina para mim, e parece preocupado.

— Então, tudo o que aconteceu…

— Fui eu — admito com pesar. — Eu percebi isso nos dois últimos dias, tudo o que a maldição faz é corresponder violentamente a um desejo meu que já está lá. A maldição não era o problema, eu era. O tempo todo.

Kugisaki intervém:

— Se a maldição faz com que você faça coisas que normalmente não faria, com certeza não é você o problema.

— Treinamento corrigirá esse tipo de coisa — diz Fushiguro. — Sua maldição, provavelmente é uma de nível especial. Se treiná-la, vai se tornar muito forte.

Itadori e Kugisaki me enviam sinais de positivo com largos sorrisos, o que faz com que eu me encolha com timidez. Fushiguro continua:

— É por isso, sensei, que nós queremos que você fale com o diretor Yaga pra admitir Kaoroku como a quarta caloura do colégio Jujutsu de Tokyo.

Eu me sinto aquecida por esse sentimento que sou incapaz de nomear.

Substantivos abstratos enchem minha pele e minha língua de uma textura morna e um sabor doce. Eu me apego a esse apego que esses três têm por mim.

(6. Antanáclase. Estilística. Vício de repetição. Figura de Linguagem).

Gojou se inclina de sua cadeira e me estuda.

Quando ele me olha, sempre parece fazê-lo com mais do que um único par de olhos. Minha nuca se eriça e todos os meus instintos humanos e amaldiçoados me dizem: ele tem pelo menos seis pares de olhos por toda parte.

Faz parte da maldição a que ele está condenado. Como eu tenho a minha, ele também tem a dele.

Mas Satoru Gojou sempre sorri calorosamente, o tipo de calor que passa, como uma gripe de verão, o mesmo calor que ele ensinou aos seus discípulos.

— Midori, você gostaria de se tornar uma aluna do colégio Jujutsu? — ele pergunta, muito gentil.

Eu me encolho e não sei bem o que responder. Eu não sei se posso mesmo me livrar dessa maldição, eu não sei se terei sucesso em controlá-la. Eu não sei se ela não me matará na próxima esquina ou como minha irmã vai reagir a tudo isso, mas o que eu sei, com toda a clareza do mundo, é que nunca quero me afastar desse calor.

— Sim — respondo brandamente. E essa é a única certeza que tenho. — Por favor.

Satoru Gojou bate palmas, satisfeito.

— Ótimo. Então, você está admitida! A partir desse momento, eu sou seu professor e você é minha aluna, e esses são seus colegas.

Itadori e Kugisaki comemoram audivelmente, mas Fushiguro apenas sorri brevemente do jeito que só ele sabe fazer.

— Fácil assim? Não tem um teste de admissão com o diretor Yaga? — pergunto, repentinamente tímida.

— Ah, isso? — Gojou agita uma mão no ar com descaso. — Não, não, aquilo foi só pro Yuuji mesmo.

— O quê? — Itadori soa indignado. Kugisaki gargalha.

— Pros idiotas é mais caro.

Os dois saem em uma argumentação fervorosa enquanto eu suspiro de alívio. E então me lembro do que viemos discutir. Ainda precisamos descobrir a origem da minha maldição.

— Gojou-sensei, você falou com minha irmã? — pergunto, e me sinto meio condescendente. — Ela não gritou muito com você, não é? Ela deve estar preocupada por esses dias todos que eu não apareci. Se ela tiver sido rude, eu vou até lá e vou fazê-la pedir desculpas de joelhos.

Gojou-sensei não responde de imediato. Ao invés disso, se inclina e apoia o queixo nas mãos entrelaçadas.

— Não, ela não foi rude — diz. — Eu fui até a sua casa, Midori, mas não havia ninguém lá. Falando com o proprietário, ele disse que a casa estava fechada há algum tempo.

Eu franzo o rosto.

— O quê? Como assim ela não está em casa? Tem certeza de que foi no endereço certo?

— Sua irmã não tem uma loja de mangás e cosplay em Akihabara? — sugestiona Itadori. — Ela não pode estar lá?

Ah, é verdade. Eu aceno, concordando.

— Tem razão. Tem alguns dias na semana em que ela dorme lá, quando tem muito trabalho ou em época de festivais. É possível que ela nem saiba que eu não estou em casa também.

Kugisaki se inclina em minha direção, fazendo uma careta.

— Sua irmã tem uma loja de mangás? Você é uma otaku, por acaso?

Eu faço um x com os dedos indicadores, e respondo com convicção:

— Claro que não, que coisa mais brega.

Atrás de mim, Itadori engole uma risada, mas o que me incomoda é que Fushiguro parece tenso demais, a atenção muito focada no que o sensei tem a dizer.

— Na verdade, nós fomos à loja da sua irmã em Akihabara também — diz Gojou. Sua voz me soa fria como um lago congelado sob os pés, me esfria inteira, sufoca minha breve felicidade. — Há dois meses que ninguém aparece por lá.

Antes de me dar conta, eu estou de pé. Minha cadeira rangendo quando me levanto, alta demais no silêncio da sala.

— Dois meses? — Eu pisco. — Dois… Tem que ter algum engano.

— Não há engano. Essa é a mesma quantidade de tempo que ninguém também aparece na sua casa.

— Isso é absurdo! Eu estive lá há menos de uma semana, deixei minha irmã fazendo omeletes quando saí, isso não tem nem sete dias.

Gojou se inclina mais, e eu sinto falta de sua aura normalmente alegre, normalmente suave e gentil. Eu imploro por um pouco daquela gentileza enquanto me afogo em apreensão.

— Você não me disse que tinha lapsos de memória? — ele pergunta. Sei aonde quer chegar.

— Lapsos de memória, não delírios! Eu vi no noticiário da minha tv os dois rapazes que foram machucados por mim, e isso você pode confirmar porque não tem dois meses que eles foram atacados. Só tem exatamente uma semana que isso aconteceu, um dia antes de vocês me encontrarem, que por acaso foi a última vez que eu estive em casa com a minha irmã.

Gojou suspira. Cada parte de meu ser se assusta com o ato.

— Sua maldição age para proteger você. Minha teoria é: e se ela não age pra proteger você apenas de danos externos, mas também de danos internos? Coisas como traumas.

Eu dou um passo para trás, todo o meu corpo se desfazendo em poeira. Meus tornozelos colidem com as pernas da cadeira, que range contra o piso. Eu ranjo contra o piso.

— Aonde quer chegar com isso?

— Sua maldição talvez não apenas apague suas memórias, mas também as reescreva como forma de preservar você.

Meu coração é como um tambor em meus ouvidos. Abafa tudo, todos os sons ao redor, todos os ecos ao redor, toda manifestação ao redor. Com a batida, uma voz que sussurra: não ouça o que ele diz, não acredite nele.

— Me preservar do quê? — arrisco. Não escute o que ele diz.

Ouço o ranger do vento, o barulho excruciante das rodas contra os trilhos, o badalar dos sinos do trem. Ding, dong, ding, dong. Vindo pra você.

Gojo move a boca e é como se ele estivesse se preparando para a guerra.

— O que eu vou dizer agora, Midori, vai partir você em pedaços tão pequenos que você talvez nunca vá ser capaz de se reconstruir. — Ele para. Eu paro. O mundo inteiro para e escuta. — Sua irmã, Ume Kaoroku, se suicidou ao se jogar nos trilhos de um trem na estação de Akihabara, há exatos dois meses, que foi quando a maldição provavelmente saiu dela e entrou em você.

Eu me esvazio de verbos.

De adjetivos e de substantivos.

Eu me torno uma sentença nunca pronunciada.

Eu fico suspensa no tempo de um segundo que não passa, um som fino no fundo dos meus ouvidos sufocando tudo, como se eu tivesse levado uma pancada na cabeça ou algo assim.

Sou uma sala vazia dentro de uma sala vazia.

Minhas pernas derretem e eu caio sentada na cadeira, que range. Meu coração range.

Sinto a mão de Itadori em meu ombro, seu rosto entra em meu campo de visão, ele está tão preocupado que é doloroso.

Ele é muito puro, esse rapaz. Ele é muito cheiro de luz, e isso não significa porra nenhuma para mim, nenhum deles significa nada para mim, porque eu me afundo numa escuridão tão densa que se mescla com meus sangue e ossos.

— Kaoroku… — meu garoto favorito pronuncia meu nome, como conforto, mas eu ignoro o visível pesar que os três dirigem a mim.

Eu volto para Gojo, parado diante de nós como um deus antigo.

— Explique — exijo.

Ele é um deus antigo e eu sou um demônio jovem.

— Sua maldição é uma coisa muito, muito rara, quase… quase bonita.

Eu me lembro das palavras de Sukuna enquanto ele continua. Bonita e nojenta.

— Ela nasceu há nove gerações, quando dois ancestrais seus, sendo irmãos gêmeos univitelinos, se apaixonaram e tiveram um filho. O rancor dos outros que viam isso como um pecado e o sentimento de culpa dos próprios irmãos deram vida a um espírito amaldiçoado hereditário.

Ah, isso faz sentido, é o que eu penso quietamente à medida em que meu mundo desmorona.

— O espírito amaldiçoado só consegue existir e parasitar pessoas com o seu sangue. Ele ganhou força a cada geração e se tornou ainda mais forte quando seus tataravós, sendo meio-irmãos, também se casaram, foi como ele adquiriu a forma que tem hoje.

Pele branca e olhos negros, minha maldição familiar, capaz de nos dar super poderes. Mas nada nunca vem sem um preço. Nem a relação asquerosa dos meus ancestrais, nem esses poderes que possuo.

Eu afundo minha cabeça entre as mãos.

— Meus pais eram primos — sussurro.

— Sim — completa o sensei. — Seu pai percebeu que estava possuído e que, a longo prazo, o parasita suga a vida do hospedeiro. Ele sabia que a maldição se tornaria mais forte quando entrasse no corpo das filhas dele, frutos direto de um incesto. Foi por isso que seu pai jogou o carro em que estava com sua mãe na frente de um caminhão.

Disparo um olhar horrorizado para ele, cada célula de meu corpo morrendo lentamente.

— Foi um acidente.

— Não foi. — Ele respira fundo. — Midori, seu pai se matou na tentativa de matar o espírito amaldiçoado e impedir que ele migrasse pras filhas dele.

Ah, papai. Eu tinha oito anos quando ele morreu. Eu me lembro de me sentar em seu colo e ouvi-lo dizer que escolheu meu nome porque verde era a cor favorita da minha mãe.

Ele matou minha mãe. 

— Infelizmente, não importa se um hospedeiro morre, quando o espírito pode simplesmente migrar para outro com o mesmo sangue. Depois de sair dos seus pais, o espírito amaldiçoado se instalou na sua irmã. E quando ela descobriu que estava possuída, fez o mesmo que eles.

Eu mal consigo ouvir a explicação de Gojou. Ele se tornou tão estranho pra mim de repente.

Tudo se tornou tão estranho pra mim, tão fora do lugar.

— O espírito amaldiçoado finalmente chegou a você, o último membro da família. É por isso que ele a protege tanto: se você morrer, ele morre.

Eu aceno e me levanto. A passos quase pesados demais, eu me movo em direção à porta.

— Vamos fazer isso então.

Não chego à metade da sala antes dos três estarem diante de mim.

— Kaoroku, por favor, sente-se — pede Itadori. A guarda dele está alta, o rosto tenso.

Vejo de soslaio, à esquerda, as mãos de Kugisaki próximas à bolsa onde estão seu martelo e pregos. À direita, Fushiguro está a um passo de invocar o cão divino ou nue, ou qualquer um de seus shikigamis suficientemente forte para lutar contra uma maldição de nível especial.

Uma maldição de nível especial.

Eu ergo a mão diante do meu rosto.

Ah — suspiro comigo mesma. Leite escorrendo em minha pele, até a altura dos pulsos.

— Ouça seus colegas — pede Gojou.

Eu suspiro de novo, deixo minha mão pender ao meu lado.

— Eu não quero machucar ninguém, eu só quero sair.

— Não nesse estado — diz Itadori. — Se sair agora, vai machucar a si mesma.

Eu rio. A maldição sufoca minha tristeza, a substitui por outra coisa. Sarcasmo. Descrença. Raiva.

Agora eu entendo porque Itadori nunca se permite lamentar. Dar espaço para a tristeza é desmoronar.

— Saiam da frente, por favor — peço, mas soa mais como uma ameaça.

— Kaoroku, você não tem que passar por isso sozinha — diz Fushiguro, a voz cautelosa.

Itadori completa:

— Isso mesmo, nós estamos aqui, somos seus amigos, você pode dividir isso conosco.

— Eu sei — aceno, sincera. — Eu sei que estão comigo e eu sou muito grata, e vou me apoiar em vocês sim, mas por agora, só me deixem sair um pouco.

Itadori, diante de mim, entre mim e a porta, entre mim e a forca, entre mim e meu desespero, balança negativamente a cabeça.

Ele não vai me deixar afundar.

A dor vem toda de uma vez. Como uma enxurrada. Desce pelo meu rosto antes que eu me dê conta.

Eu esmurro o peito do único rapaz que amei.

— Me deixa sair, droga!

Ele aguenta meus golpes enquanto fecha os braços ao meu redor. Eu vou me liquefazendo em lágrimas, desmoronando devagarzinho, até estar agachada, guardada nos braços de Yuuji.

E então nos braços de Nobara, que se junta a ele. E nos de Megumi, que vem por último, e me selam nesse abraço morno e gentil, onde eu choro, soluço e me desfaço, até esquecer que não tenho mais nada.

 

"me enlaçou num abraço longo

e mentiu pela última vez."

(Tudo nela brilha e queima, pg 80 — Ryane Leão)


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Aposto é uma palavra ou uma sentença que exemplifica, explica ou especifica um termo anteriormente citado. Normalmente vem entre vírgulas. Ex: Itadori, diante de mim, balança negativamente a cabeça.
É isso. Espero que tenham gostado!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Teoria Dos Corpos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.