1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 21
Capítulo XIX


Notas iniciais do capítulo

Olá, babys! Como estão? Tudo certo?
Vindo postar esse surto - que é exatamente o que esse capítulo foi, um grande speedrun de surto - para vocês, hahahaha. Há algum tempo estava "travada" com esse capítulo, admito, mas hoje após o trabalho acabei pegando esse arquivo "para cristo" e digitando que nem maluca até chegar... Bom, ao resultado abaixo. Dei uma revisada, mas considerando o horário e minha mente levemente entorpecida de tantas palavras e parágrafos, peço perdão caso tenha deixado algum erro passar despercebido.
Ademais, nesse capítulo, assim como no anterior, pus algumas observações sinalizadas por asterisco em pontos que achei interessante explicar para vocês um pouco mais sobre. Quando vou falar de geografia e história nessa fanfic, gosto de ser particularmente assertiva, de modo que pesquiso bastante... E queria que vocês emergissem um pouco em toda essa pesquisa comigo, porque acho que pode fazer com que vocês entendam melhor o significado por detrás desses lugares que mencionei nesse capítulo e o contexto no qual são mencionados. Se for algo desnecessário, que para vocês causa mais incômodo que interesse, por favor, me avisem. São só curiosidades e elucidações que considerei legais de mencionar, até para enriquecer a leitura.
But well. Sou serva devota de vocês, então se não for algo legal, só dizerem que a tia maluca aqui para de incluir essas coisas.
Ademais, espero que gostem da leitura! Vou tentar produzir algo sobre esse capítulo esse fim de semana, para o tumblr, então fiquem ligadinhas lá! Beijão!

OBS: Esse capítulo se passa no mesmo dia que o capítulo anterior.



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Londres, 1812

 

— Você acha o Duque de Barclay bonito?

Isabella não se deu ao trabalho de se virar para Francesca ao ouvir a pergunta. Estava ocupada demais concentrando-se em comer o pedaço de torta de limão que uma criada trouxera para as duas na biblioteca. Refletiu brevemente sobre a pergunta dela. Isa sempre tivera uma certa inclinação a homens de cabelos escuros, mas não tinha certeza de que gostava do olhar do Duque. Aquele olhar o fazia lembrar um soldado ou alguém que estava tentando parecer um?

Havia uma enorme diferença.

— Aquele Duque Barclay? — Bella perguntou. — Que Lady Florence Haylock tentou apresentar a mim?

Isso fez Francesca, que estivera distraída ninando o pequeno Ben, já adormecido, olhar diretamente para ela.

— Não me diga! —  disse. — Lady Florence tentou amarrá-la ao duque?

— Ele está casado, não está? — Isa indagou. Ouvira algo sobre isso. — E mesmo que não estivesse, não sei se gosto do Duque. Me inclino a temer todo pretendente que tenha o dedo de Florence Haylock no meio.

—  Sabe, eu admiro Lady Haylock. —  declarou Fran. —  Ela diz exatamente o que pensa. Sempre.

—  Motivo pelo qual nenhuma mulher em seu juízo perfeito desejaria se casar com um homem indicado por ela. Meu Deus, Fran, imagine ter seu casamento apadrinhado por Lady Florence!

— Você também é conhecida por ser um pouco direta. — Francesca salientou.

— Seja como for — retrucou Isabella. —, não sou páreo para Lady Haylock.

Francesca lhe deu um tapinha no braço.

— Dê tempo ao tempo.

Isabella a deu um olhar sarcástico.

— Quanto tempo mais? Ela deve ter pelo menos oitenta anos.

— Todos nós precisamos de algo a que aspirar. — Fran deu de ombros. Então olhou-a com mais atenção. — No que tanto você pensa? Essa é talvez a terceira vez que tento engatar uma conversa desde que chegamos na biblioteca, e pela terceira vez, você não sustenta o assunto e continua encarando esta torta.

Isabella foi pega de surpresa. Ela estava mesmo tão distraída? Não tinha notado os esforços da prima em puxar assunto. Ela raramente fugia de uma boa conversa, e sempre adorara conversar com Francesca, por mais fútil que o tema do diálogo pudesse ser. O que a estava deixando tão relapsa, afinal?

Talvez fosse a iminente chegada de George Hartfield. Ele pretendia vir visitar o irmão, afim de vê-lo e conhecer ao sobrinho que até então não pudera conhecer. A presença de George sempre era um suplício para Isa, mas ela notou que a perspectiva não a estava incomodando tanto quanto habitualmente fazia.

Não que sua opinião sobre George tivesse mudado. Nem remotamente. Contudo, parecia que sua mente estava ocupada demais trabalhando em outros pensamentos para dar o devido esforço em processar a ideia da vinda dele. Talvez Francesca estivesse certa. Talvez ela estivesse muito distraída. Mas o que seria capaz de distrai-la a ponto de manter-se tão relapsa diante da vinda de George?

— George e Logan pretendem sair para caçar alguns patos. — Francesca disse, quando Isa não a respondeu.

— Ah, e onde eles pretendem fazer isso? Não estamos no interior.

— Há um lago num parque que é propriedade do White’s. — Fran explicou. — Aparentemente, o clube permite que seus membros o utilizem para sanar suas... — ela sorriu, claramente achando graça. — Necessidades masculinas, foi esse o termo que Logan usou.

— Ah. — Bella acenou.

— E, — sua prima acrescentou, significativamente. — eu sugeri a Logan que ele convidasse Lorde Lannair para ir junto.

Isabella quase saltou do sofá onde estivera sentada pela última hora.

— O Conde? — exclamou, embora é claro que só havia um Lorde Lannair em Londres.

Só depois ela notou o que a prima fizera. Francesca sorriu para ela, um sorriso que dizia “peguei você”.

— Então é Lorde Lannair o motivo para que você esteja tão distraída. — ela declarou, triunfante. — Logan suspeitou, mas eu não quis acreditar nele, a princípio.

— Não é nada do que você pensa. — Isabella apressou-se em dizer.

Reconheceu que havia alguma razão nas palavras da prima. Ela andava, sim, pensando bastante no Conde de Lannair. Mas não pela razão que Fran suspeitava. Isa estivera bastante pensativa desde seu último encontro. Ela tinha demorado a dormir na noite anterior por conta do Conde de Lannair. Após o jantar, ao invés de permanecer à mesa com os Hartfield, como costumava fazer com a família, jogando conversa fora, tinha se retirado mais cedo.

Deitada na cama, ela pensara em Griffith Shawcross. Repassou tudo o que achava que sabia sobre ele, e o que havia recém-descoberto. Ela pensou em como ele parecera um homem ranzinza e amargurado quando o conhecera - não que ele não o fosse, mas ultimamente ela andava tendo a horrível sensação de que ele era mais do que aquilo.

Pensou em como ele agira no início. Antes, ele tinha uma resposta mordaz para tudo o que ela dizia. Se ela lhe perguntava se estava se sentindo bem, ele retrucava que era suficiente capaz de avisar caso não estivesse. Se ela perguntava se a música que estava sendo tocada era de seu gosto, ele questionava o porquê daquela pergunta, por acaso ela faria os músicos tocarem em silêncio? Ele demonstrara uma habilidade incrível de distorcer todas as palavras e ações de Isabella, fazendo ela parecer uma idiota.

Quando não a olhava como se ela fosse uma idiota, ele mostrara que tinha o poder de fazê-la sentir-se uma idiota.

E era por isso que ela criara uma aversão tão profunda a ele. Nada no mundo, nem mesmo o destino sórdido ao qual ele tinha sido destinado devido ao incidente que imobilizara suas pernas, justificava que alguém tratasse tão mal aqueles ao seu redor.

Mas, na noite anterior, ela também pensou em tudo o que aquele incidente em particular provavelmente tinha feito com ele. Pensou em sua raiva e em sua tristeza. Pensou no que o Visconde Bedwyn tinha dito: Que ela o tinha feito rir, um feito raro. Pensou nele se esforçando para não rir quando ela o tinha contado sobre o vestido rosa brilhante que tinha usado no último dia em que tinha dançado - o último dia em que tinha se sentido verdadeiramente como si mesma.

Pensou na respiração morna dele que tocara seu rosto quando ele tinha fantasiado sobre irem para uma casa branca no litoral de Gales dentro de um balão de ar quente. Pensou no garoto de quinze anos que tinha dançado valsa pela primeira e última vez na vida antes de nunca mais poder fazer isso, embora fosse algo que desejasse com todas as forças.

E enfim, com a cabeça pressionada contra o travesseiro, Isa viu-se querendo chorar - porque tudo aquilo parecia muito injusto, e porque a vida de repente parecia muito mais difícil de entender e muito mais complicada do que jamais havia imaginado, e desejou poder voltar até os dias em que ela não tinha conhecido Griffith Shawcross e, consequentemente, não tinha tido a oportunidade e odiá-lo - e, agora, de lamentar por ele e por tudo o que lhe acontecera.

Isabella queria fazer alguma coisa. Levá-lo a algum lugar. Tentar fazê-lo rir mais, talvez. Mas o quê? Nada que viesse a sua mente parecia ser útil. E, além do mais, que direito ela tinha? Ela não era próxima do Conde, não realmente, embora eles tivessem concordado que tinham se tornado amigos...

Do próprio modo.

A verdade é que ela tinha medo. Temia o que ele pudesse estar sentindo, a extensão de seus medos, aqueles sentimentos que ela ainda não compreendia por inteiro, mas achava que estava começando a compreender. A vida de Griffith Shawcross era tão diferente da dela. Quem era ela para dizer como ele deveria viver?

Ela também tinha medo de ser refutada. Afinal, ele não pedira sua ajuda. E ela nem tinha certeza de que ele precisava de ajuda. Supunha que ele estava infeliz, mas só supunha, pelo que tinha escutado ocasionalmente de suas conversas. O Conde podia muito bem estar satisfeito com o modo como estava, e ela podia muito bem estar imaginando coisas onde na verdade não havia absolutamente nada.

Ela chegara a escrever um plano. Estava mais para uma lista, na verdade. A tinha colocado dentro de um livro, que levara para a biblioteca com Fran. Talvez fosse aquele plano a razão pela qual ela estivera tão distraída.

E agora sua prima achava que ela tinha uma queda pelo Conde de Lannair. Só havia uma possível saída para aquela confusão; Isabella contou tudo a Francesca. Falou tudo o que descobrira sobre o Conde, e contou tudo o que suspeitava, além de sua extrema dificuldade em simplesmente cruzar os braços e ficar parada.

Fran pediu que ela lhe mostrasse sua lista, e passou alguns minutos lendo os rabiscos que tinha feito. Depois que terminou, repousou o pedaço de papel na mesa de centro e apontou:

— Acho que é melhor deixar o item cinco de lado, ao menos até que o inverno chegue.

Isa mordeu o lábio inferior.

— Acha que ele faria alguma dessas coisas ou iria a algum desses lugares?

— Sinceramente? Não sei. — Francesca disse. — Não o conheço muito bem, Bella. E nem você, aparentemente, mas entendo porque quer ajudá-lo. Ele foi muito gentil conosco esses tempos, e ainda nos convidou para sua propriedade em Gales.

Bella murchou um pouco.

— Mas, — Fran acrescentou. — acho que o ponto não é convencer ele, mas sim mostrar que ele tem as opções, certo? Aparentemente, ele não é do tipo que sai muito, talvez porque muitas atividades sejam restritivas a ele, devido a... Hum... Sua... Condição.

— Eu acho que ele não sai porque não gosta. — Isa disse.

— De sair?

— Não, de pessoas.

Antes, ela achava que ele só era alguém desagradável e naturalmente antisocial. Mas então lembrou como as pessoas o tinham olhado durante as festividades de Fran; com um misto de pena, repulsa e, de certa maneira, profundo alívio por terem sido poupados daquele golpe do destino. Agora, desconfiava que era por isso que Griffith não suportava estar no meio das pessoas.

Vendo por esse lado, parecia injusto condená-lo.

Francesca pensou um pouco mais.

— Oh, bem, isso dificulta bastante as coisas. Não dá para se evitar as pessoas, sabe? A não ser que se viaje para algum fim de mundo longínquo e abandonado. O que eu não recomendaria que você fizesse com ele. Não sozinha.

Apesar de estar quase à beira do desespero, àquela altura, Isabella deu risada.

— Que risco ele poderia me oferecer? Me ofender até a morte?

— Não é sobre o que ele poderia fazer, mas sobre o que as pessoas acham que ele poderia.

— Tipo?

— Esqueça. — Francesca balançou a cabeça. — Talvez você possa levá-lo ao teatro. Ele não precisaria fazer nada além de ficar parado ouvindo a ópera.

— Muitas pessoas, Fran.

— Há algumas apresentações privadas que determinadas atrizes realizam... — sua prima refletiu. — Mas ah, este não é o tipo de ambiente para uma dama. Que tal algum clube? Existem alguns que permitem a entrada de mulheres, há um que fui com Logan, certa vez, e que serve um vinho muito bom...

— Aleijados ficam bêbados?

— Não sei, pergunte ao Conde.

Isabella franziu o cenho.

— Então... Eu vou até o Conde e o convido para fazermos uma viajem para algum fim do mundo distante, onde talvez exista um teatro proibido para o uso de damas, e depois do qual podemos ir a um clube onde eu vou embebedá-lo?

— Você não está sugerindo nada mais inspirado. — Fran retrucou.

Isa suspirou.

— Obrigada por tentar me ajudar, Fran, mas acho que isso não vai dar certo. É melhor que eu deixe o Conde de lado. Ele arranjará a própria maneira de se distrair aqui em Londres, duvido que vá precisar de minha ajuda para isso.

— Ele não tem nenhuma tendência suicida, tem? — Fran indagou.

— Lorde Lannair? Não mais que o comum.

— Então você não precisa se preocupar. Ele ficará bem. Se tudo o que falou está certo, ele conseguiu vencer coisas muito piores que o marasmo até o momento, não conseguiu?

Havia certa lógica nas palavras de Francesca. Mas então Isabella lembrou-se da expressão que Griffith Shawcross sempre ostentava. Mesmo quando fazia piadas e ria, era como se só uma parte dele estivesse presente, enquanto a outra estava concentrada em outro lugar.

Um lugar distante, fora do alcance dos outros.

Incluindo de Isabella.

Quando George Hartfield chegou, ele e Isabella se cumprimentaram com sua habitual troca de farpas. Mas Isa estava talvez um pouco menos enérgica que o comum ao retrucá-lo. O Conde de Lannair chegou pouco depois que ele - ele realmente apareceu, surpreendendo ao próprio Logan Hartfield, que o tinha convidado -, mas não cumprimentou Isa.

Ele cumprimentou Logan, então concentrou-se em conversar com George. Os dois passaram cerca de meia hora juntos, conversando no jardim, enquanto os criados terminavam os preparativos de tudo o que levariam ao lago do White’s. Isabella os assistiu de longe, fingindo estar concentrada em Benedict, que Fran deixara com ela enquanto coordenava a organização dos preparativos.

Na verdade, ela passou todo aquele tempo tentando ler os lábios deles e desvendar sua conversa. O que poderia sair dali? Coisa boa certamente que não seria. Por fim, após um tempo, George se retirou para dentro da casa novamente. Isabella se escondeu atrás de uma pilastra enquanto ele passava, sentindo-se meio ridícula em seguida.

Então deixou Benedict com a babá e saiu para o jardim de encontro ao Conde de Lannair.

Ela esperou por um momento e então perguntou de forma incisiva:

— Para o parque?

O Conde a encarou.

— Bom dia para você também, Isabella.  

—  Para a caça? — ela indagou.

— Imagino que esteja me perguntando se eu participarei. — Griffith assumiu. — Se for o caso, sim. Correto.

— Planeja atirar?

— Sim.

— Com uma arma?

—  É assim que se costuma fazer.

O rosto de Isa se tornou tenso.

— E acha que isso é prudente?

Griffith a olhou detidamente, como se a estudasse. Então abriu um sorriso zombeteiro:

— Quer dizer, por que foi uma arma que me deixou nesse estado? Eu lhe garanto que a probabilidade de ser atingido no mesmo lugar duas vezes é mínima, matematicamente falando. —  ele disse, com os lábios curvados para cima. — Também não daria para piorar a lesão, daria? Eu já não posso andar. Nosso misericordioso Deus não poderia ser tão cruel, certo?

—  Por que brinca com essas coisas? — disparou Bella, aborrecida.

Ela tinha um argumento totalmente genuíno. Ninguém na condição do Conde deveria se quer pensar em se aproximar de novo de uma arma porque isso era... Ora, uma imbecilidade! Mesmo se ele não tivesse sido ferido, ainda seria. Isa, particularmente, não compreendia a fixação masculina com o esporte. O que era aquilo, uma maneira de validarem a si mesmos da maneira mais estúpida possível?

Ele fixou os olhos nos dela.

—  Quando a alternativa é desespero, normalmente prefiro o humor. Mesmo que precise fazer piada com algo trágico.

— Quero que saiba que desaprovo isso. — Bella cruzou os braços sobre o peito.

— A piada ou a ideia de atirar?

— Os dois.

— Sim, senhora. Sua reclamação foi devidamente anotada.

— E... —  ela ergueu o queixo e virou ligeiramente o rosto. — Acho que é uma péssima ideia.

—  No que isso é diferente de desaprovar?

Isabella limitou-se a fazer uma careta. O rosto do Conde, no entanto, se iluminou.

— Ah! Acha isso ruim o suficiente para desmaiar?

— Como é que é?

— Se desmaiar aqui e agora, George Hartfield terá de me pagar 10 libras.

Isa o encarou, desacreditada. Seus lábios formaram um “o” quase perfeito, mas ela permaneceu sem palavras, por um segundo.

— Foi uma aposta. Ele acha que você é durona demais, mas acho que com o incentivo devido, talvez... —  ele fez uma pausa. —  Eu poderia lhe dar vinte por cento dos ganhos. — Griffith acrescentou, olhando-a languidamente.

— Argh! — Isabella explodiu. E ela, que estivera pensando em maneiras de ajudar aquela criatura...! — Como pode ser tão estúpido?! Você, com aquele imbecil do George...!

Griffith fingiu uma cara de horror.

— Ora, não o chame dessa forma. Vai partir o pobre coração dele, desse jeito.

Isabella achou que nada poderia tirar o foco da raiva que o Conde despertara nela com aquela provocação... Mas aquelas palavras tiraram.

— O que quer dizer com isso? — indagou, de cenho franzido. — Não está sugerindo o que eu acho que está sugerindo, não é?

— Pois é claro que estou. — Griffith disse. — Ele está claramente interessado em você. Ou melhor... Como que vocês, damas, falam? “Apaixonado”? “Caidinho”? Ah, qualquer uma dessas baboseiras se encaixa, suponho.

Bella deu uma gargalhada. Agora essa!

— Você não sabe o que está falando. Não conhece George como eu conheço.

O Conde limitou-se a erguer uma sobrancelha. Isa balançou a cabeça, começando a gesticular como se estivesse desenhando num quadro:

— Ele me odeia. E a recíproca é verdadeira. Não há ninguém na terra mais detestável que George Hartfield, e sugerir algo assim... — Isabella continuava balançando a cabeça efusivamente. —  Céus! Como pode dizer isso quando conversou com ele no máximo duas vezes na vida inteira?

Griffith não pareceu convencido por nenhum de seus gestos ou palavras.

— Ele está interessado em você. — repetiu, lentamente. —  precisei de duas conversas para notar. Qualquer idiota pode ver. — então ergueu as sobrancelhas. — Menos você, aparentemente.

— O idiota aqui é você!

Isa gritou a plenos pulmões. E, quando notou isso, engoliu em seco.

Sentia-se instável, como se de repente o chão abaixo de seus pés tivesse se inclinado um pouco ou o ar houvesse se tornado rarefeito. Passara todos aqueles anos odiando George Hartfield e, embora não a tivesse consumido, aquela raiva de algum modo definira a relação que tinha com ele.

George Hartfield sempre fora sua desculpa. Sua constante. Quando o mundo mudava ao redor dela, ele continuava a ser seu objeto de repulsa. Era exasperante, no melhor dos pontos de vista, um sujeitinho afetado e insupotável. Ele era horrível de um modo que significava que quase ninguém conseguia ser tão ruim.

E agora o Conde de Lannair estava dizendo que ele era apaixonado por ela. Aquela era a mais absurda das acusações imagináveis! E, no entanto... No entanto...

Seria possível?

E se fosse, o que isso significava para Bella?

O que poderia significar?

Sua mente, naquele momento, foi para longe, muito longe.

Imaginou-se sendo cortejada por George. Imaginou ele dirigindo a ela mais que palavras insultantes... Imaginou-o sendo cortês - ele conseguia ser, ela sabia, pois já vira ele agindo assim com outros -, gentil. Imaginou-se nos braços dele, dançando. Pior; imaginou como seria ser beijada por George...

Ela se sentiu de repente meio tonta.

— Você está bem? — Griffith estava a seu lado, olhando-a com o cenho franzido. — Parece que vai desmaiar a qualquer momento. Eu não estava falando sério, sabe. Se você cair, eu não poderei segurá-la, e você provavelmente sairá com mais que um tornozelo torcido dessa vez.

Isa apoiou-se no encosto da cadeira de rodas dele.

— Eu estou bem. — murmurou.

— Ótimo. — ele disse. — Porque já teremos de partir para o parque. Vamos. Todo esse drama romântico não vale 10 libras.

Eles partiram pouco depois disso. O Conde deixou sua cadeira de rodas para trás, na casa Hartfield, e assumiu suas muletas ao subir na carruagem.

No fim, realmente nenhuma bala perdida atingiu a coluna do Conde de Lannair.

Os patos, no entanto, não tiveram a mesma sorte.

Isabella permaneceu de lado, com Francesca, durante todo o tempo em que os homens se entretiam. Na verdade, os criados era quem faziam o trabalho sujo; eles iam até os altos arbustos que rodeavam o lago da propriedade, e usavam os cães de caça para rastrear e afugentar as aves que descansavam na margem.

O primeiro instinto delas era sempre voar na direção contrária, cruzando o lago por cima de suas águas... E entrando na mira dos cavalheiros que permaneciam parados, com suas armas a postos. Logan e George permaneceram de pé, enquanto uma cadeira foi arranjada para o Conde de Lannair. Embora não tivesse tanta liberdade para posicionar-se de um lado ou de outro, no fim, o Conde foi vitorioso, com quatro aves abatidas no final da tarde.

Quando eles pareceram cansar-se, todos se reuniram nas mantas que tinham sido forradas e juntaram-se para dividir o lanche que fora preparado pela criadagem. A conversa fluiu com naturalidade, o Conde fazia adendos ocasionais a ela, mas não foi particularmente rude em nenhum momento, o que poderia ser considerado um milagre.

Isabella evitou olhar ou se dirigir diretamente a George Hartfield durante todo o tempo. Toda vez que o fazia, era invadida por uma onda de constrangimento, embora não entendesse o motivo. Não devia levar a sério o que Griffith dissera. Ele certamente só estava tentando caçoar dela, como sempre fazia. Ela não devia dar ouvidos a ele. Não devia.

Por sorte, o irmão mais novo de Logan se comportou relativamente bem. Em determinado momento, começaram a falar sobre Gales... E sobre o convite que o Conde tinha gentilmente oferecido a todos. Francesca ressaltou como esse seu gesto fora doce, e Logan grunhira algo parecido, indicando em seguida que talvez levasse um tempo para que honrassem o convite - teriam de esperar Ben envelhecer mais algumas semanas até que pudessem viajar de carruagem com ele.

O Conde dissera que não havia problemas. A casa permaneceria lá, do mesmo modo que sempre estivera, até que eles fossem visitá-la. Só pediu que enviassem uma missiva a ele antes, para que ele pudesse informar o caseiro responsável de que a casa precisaria ser reaberta e preparada para receber visitantes.

Isabella achou que o assunto tinha morrido ali. Mas não. Quando os outros tinham se distraído com outro assunto...

— Quando chegar em Gales, vai dançar? — perguntou subitamente Lorde Lannair.

Isabella se sobressaltou, tão perdida em seus pensamentos que a voz dele soou alta demais.

—  Sinceramente, não pensei nisso. — respondeu.

— Deveria ter pensado. — declarou Griffith. — Não faz parte de seu desejo por liberdade?

Isa entreabriu os lábios, surpresa. Ela nunca dissera a ele que desejava liberdade. Mas era exatamente isso, não? Era ao que tudo se resumia, quando se parava para refletir devidamente.

— É um desejo muito nobre, se quer saber. — O Conde acrescentou.

Bella continuou encarando-o.

—  Sim, Isabella, isso foi um elogio.

— Não sei o que fazer com ele.

— Eu recomendaria que o aceitasse de bom grado.

— Baseado em sua experiência pessoal?

— Certamente não. Quase nunca recebo elogios, e raramente os aceito de bom grado.

Isabella continuou observando-o, esperando encontrar um olhar astuto, talvez até travesso, mas seu rosto continuava impassível como sempre.

Incrivelmente, a única coisa que Isa conseguiu pensar em dizer foi:

— Você está me chamando pelo nome.

Ele deu de ombros.

— Foi você quem começou. Não vai recuar agora, vai?

Ela balançou a cabeça.

— Só fale mais baixo, sim? Não é para ficar gritando isso aos quatro ventos. — disse. — O que eu falei a você... Aquela coisa sobre a dança. Me faz soar incrivelmente ingrata, apesar de tudo.

E era verdade.

Isa costumava conversar sobre seus anseios com Francesca, mas depois que Fran se casara, ficara claro que Bella era a única que ainda não se ajustara devidamente a nova vida. Que não a aceitara. De modo que ela parara de mencionar aqueles pensamentos mesmo com sua prima, que sempre fora sua maior confidente. No fundo, nutrira certa esperança de que evitar mencioná-los fosse fazer com que desaparecessem.

Mas eles nunca tinham desaparecido.

— Pode confiar em minha discrição. Não contarei a ninguém o que falou. — o Conde disse, achando graça. Mas continuou a olhar para ela, e o sorriso desapareceu dos lábios, embora não dos olhos. — Quando vivi meus anos no Chalé, onde fui tratado por Levi Holroyd, com meus colegas, tive três confidentes. O próprio Levi, e o Visconde Bedwyn e o Duque de Barclay, que você já conheceu. Eles entendiam meus pensamentos e sentimentos pois passavam por coisas semelhantes. Sabiam quando aconselhar, quando rir de mim, quando me bajular, quando simplesmente ouvir. Sabiam quando se aproximar e quando manter distância.

Embora surpresa pela repentina confissão, Isabella o escutou com atenção. Não se lembrava de ter ouvido o Conde falar tão apaixonadamente de qualquer coisa que fosse antes - mas havia ternura na sua voz naquele momento, envolvendo aquelas palavras.

— Acho que só notei como fui abençoado depois que saí de lá. — ele refletiu. — E ainda sou. Posso contar qualquer coisa para esses homens, e eles podem dizer qualquer coisa para mim sem temer censura e com toda certeza de que o que foi dito permanecerá confidencial. Todos nós precisamos de pessoas com quem possamos falar livremente.

— Você será essa pessoa para mim? — Isabella perguntou.

— O quê?

— Esse confidente. — Isa achou a ideia divertida. — Você será o meu confidente? Guardará meus segredos obscuros?

Griffith franziu o cenho.

— Você é a última pessoa que qualquer um esperaria que tivesse um segredo obscuro, Isabella de Ortiz.

— Então do que chama meu desejo por... Liberdade?

Ele pareceu pensar por um momento. Isa não esperava que respondesse a sério, por isso foi pega de surpresa quando ele murmurou:

— Eu chamo isso de “sonho”. Um sonho dourado.

Bella inclinou a cabeça lateralmente:

— Qual a diferença de um sonho dourado para um sonho normal?

Griffith fez uma careta que indicava que nem mesmo ele tinha entendido de todo o porquê da escolha do adjetivo.

— Creio que um sonho dourado seja algo particularmente importante. — falou. — O seu maior sonho, se preferir.

Isabella aceitou a definição.

— E acha que algum dia eu realizarei meu sonho dourado?

Ele deu de ombros.

— Todo mundo deveria ter um sonho dourado transformado em realidade. O seu não é tão impossível quanto pensa. Não deve desistir dele.

Por alguma razão, a espanhola sentiu-se estranhamente tocada... Por aquelas palavras, por aquela conversa. Ficara surpresa com a perspicácia do Conde ao compreender o que estava por trás de suas tolices sobre dança... Deveria creditá-la a um desejo semelhante, por parte do Conde? Ela não sabia. E só havia uma maneira de descobrir.

— E qual é o seu, Griffith? Seu sonho dourado?

A expressão no rosto dele fechou-se.

— Eu não tenho nada parecido com isso. — retrucou.

Isa não se deixaria vencer tão facilmente.

— Mas nem sempre foi assim, foi? — insistiu. — Você deve ter sonhado algo, algum dia.

Ele estalou a língua.

— Eu sonhei ser um soldado quando garoto. — falou. — E olha onde isso me levou. Sonhos nunca me serviram de nada.

— Mas todos temos sonhos. — Isa argumentou. E sabia que estava certa.

Precisava estar certa.

O que mais seria capaz de sustentar alguém, quando tudo ao seu redor desabava? Às vezes, a esperança não podia ser encontrada na realidade. De modo que era necessário fugir... Para um lugar distante, um objetivo longínquo, talvez ideal demais a ponto de ser surreal. Lá, talvez pudesse ser encontrado o abrigo necessário para descansar - ou, quem sabe, a motivação necessária para seguir em frente.

O Conde, mais do que ninguém, deveria ter tido um sonho. Como teria enfrentado tudo o que enfrentara sem um?

Após mais um minuto de silêncio, ficou evidente que, independente de qual tivesse sido este sonho, não seria hoje que Isabella o descobriria. Mas então, quando menos esperava, Griffith abriu a boca:

— Ty Gwyn.

Isabella aguardou. Sabia que ele ainda tinha mais a dizer. Ele sempre tinha, quando mantinha os lábios meio entreabertos, da maneira como estavam naquele momento.

— Ty Gwyn foi meu sonho dourado. — ele explicou. — Quando eu voltei da Península, Levi me disse que minhas pernas não tinham salvação. Mas eu não aceitei isso. Não podia aceitar que aquele seria o meu fim.

Bella ouviu tudo, e sentiu a familiar sensação de aperto no peito que sentia sempre que ouvia o Conde falar sobre o que lhe ocorrera. Ela jamais seria capaz de conceber o tamanho de sofrimento que aquele homem vivenciara, nem em seus piores pesadelos. Amaldiçoou-se por ter feito aquela pergunta. Mas agora era tarde.

— Eu comprei Ty Gwyn de Aiden no meu segundo mês de convalescença. Aiden é o nome do Duque de Barclay. — Griffith esclareceu. — Eu a comprei quando eu ainda acreditava que me recuperaria. Ty Gwyn foi meu sonho dourado. Eu nunca desejei tanto algo quanto desejei viver naquela casa branca em Gales.

Quando ele calou-se, Isabella passou um minuto em silêncio. Em sua mente, suas palavras ainda ecoavam. Não podia aceitar que aquele seria o meu fim. Ela percebeu que ainda não entendera, de fato, o quão devastador o incidente de Griffith deveria ter sido para ele. Não realmente. Para ele, aquele incidente evidentemente marcara o fim de sua vida.

Contudo, ele ainda estava vivo. Se o que tinha agora não era uma vida, então o que era?

Ela sentiu-se de repente meio sem ar. Aquele homem, que era tão detestável, tinha feito-a falar de seus sonhos. Não, ele a tinha incentivado a pensar neles e acreditar neles, embora tivesse deixado o próprio sonho de lado.  

Todo mundo deveria ter um sonho dourado transformado em realidade.

Ela não podia simplesmente permitir que ele desistisse daquele jeito.

— Então acho que devemos ir a Gales. — Isabella disparou.

O Conde olhou-a, as sobrancelhas franzidas.

— Meu convite já está estendido a sua família. — ele falou. — Vocês podem ir quando desejarem.

— E você não viria conosco? —  Bella questionou.

Griffith olhou-a fixamente.

— Você gostaria que eu fosse?

— É claro que sim. — Isa disse, sem pensar duas vezes. Então acrescentou, meio atabalhoada: — É sua propriedade, afinal. Seria rude invadirmos ela sem o anfitrião por perto.

Lorde Lannair sorriu-lhe, então - e não teria doído tanto se ele tivesse se debulhado em lágrimas, ao invés disso:

— Você ainda não entendeu, não é, Isabella? — ele perguntou. — Eu não quero ir... Nessa coisa. — ele indicou a cadeira de rodas. — Sempre me imaginei lá sendo como eu era antes. Em meu sonho, eu corro pela praia, nado no mar e danço no salão de festas do vilarejo com uma bela garota em meus braços me olhando com adoração.

— Mas podemos tentar. Não precisa... — ela arriscou.

— Não, não podemos. — ele reiterou. — Pois se eu fechar os olhos, consigo imaginar todas essas coisas. Consigo sentir o cheiro da maresia, e consigo me imaginar sentado na areia, com um copo de licor gelado em minha mão. Consigo sentir... A sensação de minhas pernas se movendo no ritmo da valsa. Se eu for para lá... Nesse corpo... Esse sonho irá se dissipar. Eu quero continuar sonhando ele.

A voz dele tinha endurecido mas, ao mesmo tempo, suas palavras soaram tão dolorosas. Isabella fixou o olhar nos próprios sapatos, para que Griffith não pudesse ver sua expressão.

— Entendi. — ela respondeu.

— Certo. — ele respirou fundo.

Um pouco mais distância, Francesca deu uma gargalhada depois de Benedict começar a chorar após a tentativa de George de pegá-lo no colo. A espanhola e o Conde observaram a interação juntos, em silêncio. Griffith deve ter notado a tinha desapontado, pois inclinou-se um pouco em sua direção, o rosto suavizando-se:

— Ora, não faça essa cara de cão abandonado.  — ele murmurou.

Isabella levantou a cabeça.

— Não estou com cara de cão abandonado.

— Está sim. Me diga, o que posso fazer para você voltar a me insultar.

Ela não pôde deixar de sorrir, então.

— Vamos para outro lugar, — pediu. — qualquer um.

— Vamos? Juntos? — ele pareceu se divertir em como a ideia parecia ridícula.— Num balão de ar quente e tudo mais?

— Se quiser partir de Londres, podemos fazer isso agora. — Bella acenou, mantendo o sorriso. — Basta me convidar. Eu sou folgada, você já deve ter notado a essa altura. E não há nada que eu considere mais entediante que a ideia de estar em Londres durante mais uma temporada.

— Ah, certamente notei. — O Conde pareceu pensativo. Pensativo e hesitante. Até um pouco receoso. Certamente aquela não era uma situação usual. E muito menos adequada.

Mas era de Griffith Shawcross que estavam falando.

Ele virou-se para Isa, por fim:

— Você, por algum acaso, já foi a Escócia, Isabella?

 

 

Ophelia folheou, atenta, o exemplar de Maupertuis que tinha em mãos.

Ela levara um tempo considerável para encontrá-lo. O livro tinha mais de sessenta anos, é claro, o que dificultava um pouco achá-lo nas livrarias, ainda mais considerando o fato de que fora escrito em francês, e não eram todas as bibliotecas e livrarias londrinas que disponibilizavam leituras na língua.

A princípio, ela pensara em ir até a Gerrard Street, na DeBoffe, ou então ir até a New Bond Street para buscar o exemplar na L’Homme*. Mas, embora fossem livrarias francesas, nenhuma delas era particularmente inclinada a leitura acadêmica. De modo que ela decidira que seria mais assertivo realizar sua busca numa fonte que estava certa que, independente da língua, estaria focada em trazer aos leitores o conhecimento que buscavam.

Fora assim que fora parar na Harri’s**. E tinha sido especialmente assertiva. Não demorara muito para encontrar o exemplar que buscava. Fazia muito tempo desde que não se dedicava a seus estudos - oh, bem, não podia nomeá-los dessa forma. Hobbies, talvez fosse o termo mais correto. Afinal, estudos eram realizados com um objetivo - de aprendizado, quiçá profissionalização. E embora Ophelia adorasse aprender sobre Astronomia, sabia que jamais poderia ser mais que uma admiradora discreta.

Seu conhecimento jamais ultrapassaria aquele que os livros das bibliotecas e livrarias populares poderiam oferecer. Pelo simples fato de que nenhuma mulher era permitida a frequentar uma universidade ou qualquer outra instituição de ensino semelhante.

De todo modo, não fora o desejo de retomar seu hobbie que a levara até a Harri’s. Fora o desespero - agora poderia usar este termo, decerto. O baile de début de Cecily fora adiado devido a determinadas intercorrências, mas todos os preparativos já tinham sido finalizados, de modo que Ophelia não tinha mais qualquer utilidade.

Ela voluntariamente juntara suas coisas e partira dois dias atrás, impedila pelo senso de não incomodar mais seus - agora antigo patrões - com sua presença. Não conseguira falar diretamente com o Visconde Bedwyn, o que a fizera se sentir ilícita, como um ladrão que fugia à noite, mas deixara uma carta de dispensa, agradecendo o tempo e a oportunidade que ele tinha lhe cedido ao contratá-la para ensinar sua irmã.

Fizera questão, no entanto, de despedir-se de Cecily. Indo de encontro a toda a etiqueta que tinha lhe sido arduamente ensinada por Jo, a jovem se debulhara em lágrimas com sua partida. Fizera Ophelia prometer que faria de tudo para comparecer a seu baile de début, e a professora concordara, embora duvidasse que aquilo seria possível - se, daqui para lá, arranjasse um novo emprego, o que era sua intenção, dificilmente ela poderia ausentar-se de seus deveres para atender a um evento do tipo.

Além disso, não podia ficar mal-acostumada. Comparecera ao jantar da Viscondessa de Berwick, e não se arrependia, mas não devia iludir-se em crer que aquele tipo de vida era o que lhe pertencia. Diferente daquelas pessoas, Jo precisava trabalhar para viver, de modo que não tinha o tempo ou os fundos que eles tinham para dispor-se àquelas frivolidades o tempo todo.

Mas é claro que ela não diria nada disso a Cecily. Como poderia?

— Prometa que não me esquecerá. — a jovem fungara. — Por favor, senhorita Wright.

— É claro que não a esquecerei, Cecily. — Jo garantira, amena. — Mas talvez deva parar de me chamar de Senhorita Wright. Eu não sou mais sua tutora. A partir de hoje, serei como qualquer outra mulher.

— Devo chamá-la de Ophelia, então? Ou você prefere Joanne?

Ophelia sorrira.

— Meus amigos e família me chamam de “Jo”.

— Ora, mas eu... — a jovem começara a argumentar, até perceber o que a professora queria dizer. Então seus olhos brilharam: —... Isso significa que somos amigas?

Jo apertara as mãos dela carinhosamente:

— Podemos ser, se quiser.

A garota então desatara a soltar gritinhos de incontida empolgação... E agarrara Ophelia num abraço, que ela retribuíra, um tanto desajeitada.

— Eu escrevei todas as semanas! — Cecily exclamara quando Jo se virara para partir.

Mas quando, no fim daquele dia, pôs os pés para fora da Casa Dashwood, com sua malinha preenchida pela metade com seus esparsos pertences pessoais, a professora vira-se se esforçando para conter as próprias lágrimas.

Ela as tinha afastado forçadamente, ao focar-se em quais os passos que deveria tomar a seguir. Previra que, enquanto continuasse sem um novo emprego, precisaria de um lugar para ficar. Tinha feito uma busca prévia por uma pensão nas imediações do Cheapside***. Os preços não chegavam a ser irrisórios, mas eram substancialmente mais gentis que os preços em Marleybone****.

Se desejasse algo mais barato, Jo teria então de seguir para St.Giles*****, mas temia um pouco aquela região, e as economias que fizera permitiam que se hospedasse por algum tempo com os confortos ligeiramente superiores do Cheapside. Mas não por muito tempo. Ela precisava achar logo outro emprego.

No entanto, permanecia sem sucesso em sua busca. Faziam dois dias que partira da casa dos Dashwood e, contudo, permanecia sem perspectivas assertivas sobre o próprio futuro. O desespero do pensamento estava consumindo-a em seu quarto naquela manhã, ameaçando sufocá-la, quando ela decidira que partiria para a Harri’s.

Lá, deveria encontrar alguma distração.

E de fato havia encontrado. Sua mente deixou de refletir acerca de sua situação de indigência e concentrou-se em primeiro encontrar o volume de Maupertuis que fazia meses que buscava, e segundo em procurar algum dos funcionários da livraria que poderia lhe informar sobre o preço da obra.

Livros de temática científica costumavam ser mais caros, mas ela estava disposta a pagar o que fosse para manter a mente afastada da própria autopiedade. Caminhou pelos corredores da antiga livraria mas, ao invés de encontrar um dos serviçais, deparou-se com alguém inesperado.

Levi Holroyd estava de pé, na esquina do corredor onde ela acabara de entrar, com dois livros posicionados abaixo do braço e um terceiro na mão direita. Ele analisava atentamente as lombares dos exemplares que estavam na prateleira um pouco acima de sua cabeça, como se buscasse algo. Mas então algo pareceu alertá-lo - o que, Jo nunca descobriria, afinal se mantivera imóvel como uma estátua no momento em que o vira.

O que quer que tenha sido, fez com que ele se virasse... E a visse. O médico ergueu as sobrancelhas:

— Senhorita Wright.

Jo permaneceu onde estava.

— Senhor Holroyd. — respondeu. — Que surpresa vê-lo.

Ou talvez não tão surpresa assim. Ela estava em uma livraria acadêmica. E ele era um médico. Naturalmente, deveria ser o tipo de ambiente que o homem costumava frequentar. Ela não pensara devidamente sobre isso, se fosse ser honesta consigo mesma. Não considerara, nem por um instante, a possibilidade encontrá-lo ali.

Havia pelo menos mais uma livraria acadêmica em Londres, afinal. Mas ele estava justo naquela, é claro, no mesmo dia em que Jo decidira visitá-la.

— Creio que eu devesse dizer isso. — o médico disse, aproximando-se alguns passos. — Eu tenho uma excelente desculpa para visitar um lugar como a Harri’s. Mas e a senhorita? — ele estreitou os olhos na direção do livro que Jo segurava, como se tentasse ler sua capa. — Ah, Maupertuis? Isso é inesperado. Não sabia que era uma física, senhorita Wright.

— Uma astrônoma. — Ophelia corrigiu-o, prontamente. Então acrescentou, desajeitada: — Uma admiradora, quero dizer. Só uma admiradora. E o senhor? — indagou, prestando o mesmo favor que ele lhe prestara ao ler a capa do livro que ele tinha na mão direita: — Leeuwenhoek?

Jo não estava verdadeiramente interessada no que ele estava lendo. A bem da verdade, mal era capaz de pronunciar aquele nome. Somente desejara retirar a atenção do livro que carregava. Não que envergonhava-se de seus gostos, ou os achasse inadequados, como a esmagadora maior parte da sociedade londrina parecia achar...

Mas aquele era um assunto bastante particular seu. Não costumava mencioná-lo a todos. Tornara-se um instinto proteger aquele segredo à sete chaves.

— Ele acredita que possa haver uma explicação diferente para a causa de doenças e infecções. — o médico disse. — Leeuwenhoek, quero dizer. Ele acredita que possam existir... Criaturas, que nos causam esses males.

— Criaturas? Como monstros?

Levi deu uma risadinha.

— Não. Como animais. — esclareceu. — Não animais como cães ou cavalos. Mas criaturas pequenas demais para que possamos vê-las. Ele desenvolveu um ótimo microscópio, com a intenção de que um dia possamos visualizá-las, essas criaturas.

— E você já as viu?

— Não. — o médico disse. — Mas sou um grande... Hm... Admirador, das ideias de Leeuwenhoek. Temos pensamentos muito semelhantes nesse aspecto, eu e ele.

— Ah. — Jo acenou. Ainda parecia a ela uma teoria um tanto absurda. Criaturas que causavam doenças e infecções? Criaturas pequenas demais para serem vistas a olho nu? Era difícil de acreditar. Mas ela não julgaria um livro pela capa, ou um autor pelo resumo de sua ideia. — Entendo.

— Então... — Levi murmurou. — Astronomia.

E o plano dela falhara. Ou melhor, só funcionara temporariamente.

— Ah, sim. Astronomia. — assentiu. — Gosto de ver as estrelas. E pensar sobre quão imenso deve ser o universo que nos rodeia.

— É isso? — o médico indagou, arqueando uma única sobrancelha.

Ophelia deu de ombros.

— Tenho certeza que deve ter algum comentário mais elaborado a fazer, senhorita Wright. — ele insistiu. — Sempre tem.

— Nunca notei esse traço em particular de minha persona.

— Ah, mas eu notei.

A admissão pairou entre eles por um minuto. Por detrás dela, Ophelia enxergou outra admissão velada. A de que ele estivera prestando atenção nela, todas aquelas vezes em que tinham se encontrado. O suficiente para denotar sutilezas das quais nem ela mesmo apercebia-se. A governanta viu-se sorrindo, levemente.

— Esse é o tipo de coisa que amigos fazem? — indagou, suscitando as últimas palavras que ele lhe dirigira na última vez em que tinham se encontrado, na Casa Berwick.

O médico deu uma risada, parecendo agradavelmente surpreso de que ela se lembrasse.

— Talvez. — cedeu. — Amigos conhecem um ao outro, se não me falha a memória. Faz bastante tempo que não faço novos amigos, admito.

— Nem eu. — Ophelia disse. — Devo estar enferrujada na prática.

— Poderíamos então tentar desenferrujar um ao outro? — o médico perguntou, aproximando-se um pouco mais e pondo todos os livros que carregava abaixo de um único braço enquanto oferecia o outro a Ophelia. — Juntos, senhorita Wright?

— Seria isso adequado?

— Não vejo por que não. E, de todo modo, não sei se me importo o suficiente. Se me permite fazer outra admissão tenebrosa, estive em certa expectativa de encontrá-la de novo... E de que você também esperasse o mesmo.

Ela sorriu-lhe timidamente, hesitante, quando ele lhe ofereceu o braço, e ele correspondeu o sorriso.

Sim, esperara e quisera encontrá-lo de novo. Ela havia dividido com ele pensamentos que nem mesmo dividira com Adelaide. E ele a escutara com atenção, e correspondera a seus pensamentos com os próprios. Mais que isso. Ele tinha lhe dito que sentiria-se a tentado a atrair seu interesse, em outras circunstâncias. Quando ela o refutara, ele ainda assim insistira que poderiam ser amigos. E ela não recusara a ideia.

Mas ele passara dias sem fazer a menor tentativa de entrar em contato com ela ou de vê-la de novo.

E o que ela esperava?

Que ele a perseguisse?

Que a cortejasse?

Ah, ela não era tola nesse nível. Afinal, ela mesma deixara claro para ele que não estava disponível no mercado, em busca de um marido. Há muito tempo aceitara que todas aquelas baboseiras de romance e cortejo provavelmente não fariam parte de sua vida. No máximo, ela poderia desejá-las em seus sonhos. Mas elas jamais passariam disso: de sonhos.

E ela sonhara com Levi Holroyd. Enquanto estivera na companhia dele, recebendo seus sorrisos e aquele seu único flerte repentino. Sendo escutada por ele, mesmo enquanto falava as coisas mas ingratas. Homens não costumavam mais habitar os sonhos de Ophelia. Já tinha vinte e seis anos, pelo amor de Deus. A fase de fantasias já passara.

Mas ela sonhara com Levi Holroyd nos últimos dias. Eram seus olhos e o que eles sugeriam sobre ele o que a fizera sonhar com ele enquanto ele estivera com ela, e depois que tinha partido. Embora “sonho” fosse justamente a palavra-chave. Na realidade, ele parecia um universo fora de seu alcance. Até mais que o universo literal, sobre o qual ela adorava estudar sobre.

Ele tinha os olhos mais bonitos que ela já tinha visto.

Embora aquele fosse um pensamento perigosamente estúpido, Ophelia decidiu que não havia risco real envolvido, considerando o fato de que tudo estava... Dentro de sua cabeça. O homem já deixara claro que seu status como governanta era um considerável impeditivo. Jo decidiu-se agarrar-se nisso.

— Não direi nada para amaciar suas expectativas, senhor Holroyd. — respondeu, por fim, dando-lhe o braço. — Mas não me negarei a breves minutos de conversa sadia na companhia de um cavalheiro inteligente o suficiente para vir até a Harri’s.

Ele riu diante de suas palavras, enquanto começava a guiá-la pelo corredor para nenhum lugar em específico. Se para nada, aquela oportunidade lhe serviria para desvendar algumas coisas que desejava saber.

— Então, — Jo retomou. — Leeuwenhoek.

— Está interessada em suas teorias?  

— Não, na verdade. Estou interessada em entender seu interesse por elas. — a professora disse. — Pela medicina em si.

— Ah. — o médico abriu um meio-sorriso. — Então este é um interrogatório?

— Não foi o senhor quem disse que amigos precisam conhecer um ao outro?

— Me pegou de calças curtas, senhorita Wright. — ele admitiu. — Pois bem. Deixe-me pensar numa resposta satisfatória o suficiente.

Eles precisaram atravessar mais um corredor até que o médico voltasse a se expressar. Quando o fez, parou um minuto para repousar os livros que carregava no braço livre numa mesa de canto.

— Desde pequeno eu sempre gostei de observar a vida. — começou, gesticulando, como se desejasse ilustrar o que diria a seguir: — E sempre a achei fantástica. A resiliência das flores ao brotarem ao fim de todo duro inverno, o calor do toque de um recém-nascido ao envolver o dedo da mãe. Tudo isso sempre me encantou, senhorita Wright, desde que me entendo por gente. Foi por isso que, quando George ofereceu-me um posto no exército de Sua Majestade, tive de rejeitar.

O médico encostou-se numa das prateleiras antes de continuar.

— Como poderia simplesmente erguer uma espada e acabar com tudo isso, como se não fosse nada? — indagou, retoricamente. — Eu não nasci para destruir a vida. Mas para nutri-la. Notei isso muito cedo e foi com base nisso que construí meu caminho e encontrei meu objetivo, aquilo que me dá satisfação.

— Ajudar outros, você quer dizer? — Jo perguntou. — É isso o que lhe dá satisfação? Curar as pessoas de suas feridas e mazelas? Foi por isso que decidiu se tornar médico de campo?

— Também. Mas permanecer em Londres, após sair de Edimburgo, e tentar começar meus próprios serviços sozinho seria muito mais difícil... Considerando que eu não passava de um estudante recém-formado, sem fundos próprios ou...

— O apoio de sua família. — Ophelia completou.

Não pareceu ser isso que o médico tinha em mente, mas ele anuiu vagamente, do mesmo jeito.

— Ir para a Península me rendeu um soldo estável, no qual podia confiar. E, no fim, foi lá que aprendi a apreciar a prática do trabalho. Apreciá-la e aprimorá-la.

— Como assim aprimorá-la?

— Estar no campo mostrou-me, senhorita Wright, — Sir Levi respondeu. — que existem feridas piores que aquelas que afligem a carne. Feridas que não podemos enxergar e que, no entanto, precisam de tanta ou até mais atenção do que aquelas visíveis.

Jo refletiu naquelas palavras por um momento, o cenho levemente franzido. Ela nunca parara para pensar particularmente no esforço mental que era exigido de um soldado. Mas havia nexo nas palavras de Levi Holroyd. Ophelia jamais estivera em um campo de guerra, mas imaginava que neles podia-se vivenciar todo tipo de experiência...

E determinadas experiências tinham o poder de marcar profundamente suas vítimas.

— Você disse que voltou da Península, embora não quisesse ter feito isso. — disse Jo. — Por que o mandaram de volta?

Aquela era uma pergunta que ela tinha desde a segunda vez em que tinham se encontrado, na recepção de casamento do duque de Barclay. Até então, o médico falara sobre tudo com muita facilidade, confortavelmente, mas esta pergunta de Jo em particular pareceu tirar parte deste conforto.

— Meus serviços não eram mais utéis. — foi o que ele disse, somente. E Ophelia compreendeu que era aquilo que conseguiria.

— Conheceu o Visconde, o Conde e o Duque ainda lá, na Península?

— Não. Eu os conheci quando retornei. Transformei o Chalé que minha benfeitora me dera em um hospital, e foi lá que os tratei, assim como a outros soldados feridos vindos de volta da Península.

Ophelia anuiu, dando-se por satisfeita. Agora as coisas faziam mais sentido... Em parte. Ainda haviam pontos que ela desejava esclarecer. Mas julgou que sua curiosidade já a levara longe o suficiente por um dia.

O médico olhou-a, eloquente.

— Acredito que deva ser minha vez.

— Acho que já falei tudo sobre mim ao senhor. Ao menos, tudo o que era relevante.

— Eu discordo. — Sir Levi retrucou. — Mas se não lhe apetecer entrar no detalhe sobre o que me disse, senhorita Wright, então podemos usar outra abordagem. Pode me falar dos temores que lhe perturbam hoje, ao invés de no passado.

Jo foi pega de surpresa. Definitivamente não esperava aquela reviravolta em particular. Abriu um sorrisinho.

— Não lembro de ter dito que estava perturbada com algo, Sir.

— Não disse. — o médico concordou. — A não ser, é claro, com sua solidão. Mas eu suponho que há algo de caráter mais urgente atormentando-a, no momento... Com base no que me disse sobre o iminente fim de seu serviço aos Dashwood.

Ah. Aquilo.

Ophelia estivera fugindo do assunto durante todo o dia, mas ali estava. Cedo ou tarde, ela precisaria retomar sua atenção a dele afim de retornar sua busca incansável por soluções. Não queria despejar aqueles pensamentos sobre Levi Holroyd, no entanto. Mas sabia que ele não aceitaria sair dali sem uma resposta - ela também não aceitaria, se tivesse sido interrogada como ele fora menos de um minuto antes.

A professora fez um gesto de dispersão:

— Deixei a Casa Dashwood recentemente. — disse. — E estou a procura de uma nova atividade.

— Onde está residindo agora?

Jo fez uma leve careta. Hesitou por um momento, mas então disse, relutante:

— Numa pensão nas redondezas.

— Por quanto tempo planeja ficar lá?

Ela encolheu ligeiramente os ombros.

— Não sei.

— E está fora de questão ir para a casa de sua irmã?

— Sim. — respondeu Ophelia.

Adelaide certamente a acolheria de braços abertos, se Jo lhe pedisse. A caçula ainda estava em Londres, ou seja, próxima. Mas ela jamais faria isso com sua irmã. Não desejara se tornar um fardo para os Bedwyn, e muito menos desejaria ser um fardo para qualquer outra pessoa, especialmente sua família.

— Sua mãe?

— Não. — Jo recusou a sugestão pelo mesmo motivo da anterior. Mas havia ainda outro ponto a ser considerado, naquele caso. Sua mãe talvez não recusasse prontamente sua admissão na casa de sua tia se ela aparecesse à sua porta, mas a tia de Jo certamente deixaria claro que ela não era bem-vinda e que não poderia ficar mais do que algumas coisas. Uma coisa era tolerar a presença de sua irmã viúva. Outra coisa era aceitar a filha mais velha desempregada dela.

— Perdoe se estou sendo impertinente, — disse Sir Levi. — mas a senhorita não tem nenhuma outra fonte de renda? Talvez algumas economias? Não pode se estabelecer por conta própria em algum lugar?

Ela o encarou inexpressivamente.

O pai havia deixado uma esparsa, quase insignificante, herança, mas toda ela fora consumida nos meses seguintes a seu falecimento para a sobrevivência de Ophelia, de sua mãe e de Adelaide. A própria Jo fizera algumas economias durante os últimos anos... Mas estava usando parte delas para a pensão. O resto seria o bastante para se estabelecer por conta própria? Dificilmente. Ah, que tolice a dela... Que tolice! Deveria ter feito planos antes.

Mas quais? Não havia garantia que teria sido mais bem-sucedida em buscar outro emprego antes do que fora nas últimas semanas.

— Em nenhum lugar perto daqui que eu conheça. — disse. — Usei o resto de meu salário para pagar minha estadia na pensão onde estou hospedada, e estou usando minhas economias para manter-me lá. Não posso voltar para Midlands. Nem incomodar Adelaide com meus problemas. Quanto a algum outro lugar, bem, não conheço nenhum lugar.

Ela engoliu em seco. De repente ficou um tanto assustada. O mundo parecia um lugar vasto e hostil. O que iria fazer?

— Começar uma nova vida nunca é fácil. — disse o senhor Holroyd. — Especialmente quando não há uma base óbvia de onde partir.

Ophelia inclinou a cabeça ligeiramente para frente em uma tentativa de agarrar-se novamente à consciência. Ela estava sem casa e sem perspectivas.

— Preciso, na verdade, agradecer — viu-se dizendo, em contraponto aos próprios pensamentos. — Afinal de contas, não sou miserável. Ainda posso me restituir... Sim, conseguirei fazer isso. Tenho uma profissão, afinal. Tenho habilidades. Há pessoas que não tiveram a oportunidade que tive de conseguir algo em que posso trabalhar. Ah, que desespero! Como elas conseguem? Não posso me desesperar. Não estou perdida. Deve haver algum lugar para onde eu possa ir, alguma casinha de campo...

Ela franziu a testa e pensou por um instante, mas se distraiu quando percebeu que o médico se aproximara. Espantada, notou que ele segurou a mão direita dela entre as dele. As mãos dele estavam agradavelmente quentes.

— Sei como é se sentir sem lar, mesmo que não saiba o que é realmente ficar sem um teto. — disse ele, suavemente. — É um sentimento terrivelmente sombrio e solitário. Mas acho que posso ajudá-la com isso, se me permitir, senhorita Wright.

Jo abriu a boca, pronta para protestar:

— Eu...

— Não posso oferecê-la hospedagem. — ele acrescentou, enfaticamente. — Nem se quisesse, poderia fazer isso. Meu apartamento não tem espaço o suficiente e, de todo modo, já há um garoto que dorme lá algumas noites, meu ajudante. Além de que não seria adequado, é claro. Não. O que tenho a lhe oferecer é uma chance, mas terá de conquistá-la sozinha.

Ophelia aceitou escutá-lo, então. O médico abriu um pequeno sorriso, feliz por ter sua atenção:

— Chegou até a mim a notícia que a família Beaumont está necessitada de uma Governanta para suas crianças. — ele contou. — Aiden... Digo, o Duque de Barclay, foi quem me disse. Parece que a antiga responsável pediu demissão pois iria casar-se. E logo a pequena Edith Beaumont entrará em idade de aprendizado, de modo que precisará de uma tutora...

— Ah! — Jo interrompeu-o exclamando. — Isso é mesmo verdade? A família Beaumont?

— Foi o que me disseram.

Jo não pôde deixar de se animar com a ideia.

Primeiro porque era a primeira oportunidade que lhe surgia em algum tempo, segundo porque eram pessoas com as quais já estava familiarizada... Bom, não tanto. Mas ela já as conhecia - tanto as crianças quanto seus pais. E tivera a impressão de que Lady Beaumont gostara dela, quando tinham se conhecido no casamento de seu irmão, o Duque. Ao menos, não parecera desaprová-la.

Isso já era alguma coisa. Ophelia não podia se garantir acreditando que aquele encontro lhe daria algum tipo de vantagem.

Mas ela precisava tentar, de todo modo.

— Entrarei em contato com família Beaumont. — respondeu. Mas então foi tomada por um repentino receio. — Será que chegarei tarde demais? A esta altura, pode ser que já tenham encontrado uma candidata adequada.

Sir Levi sorriu.

— Se este for o caso, posso lembrá-los do erro que estarão cometendo em recusar uma profissional habilidosa como a senhorita.

Apesar de tudo, Jo acabou rindo.

— Não tem como julgar a qualidade de meu serviço, senhor. Assim como não posso julgar o seu. Nunca me viu trabalhar.

— Ora, — o médico respondeu, eloquentemente. — depois de ser despejado por minha família, eu me tornei o melhor médico de toda Grã-Bretanha. Você não fez o mesmo como professora, senhorita Wright?

Os lábios dele estavam curvados num sorriso travesso. Travesso e... Atraente. Jo optou por entrar na sua brincadeira.

— Da Grã-Bretanha? — exclamou, olhando-o horrorizada e levando uma mão ao coração. — Seria indigno de mim definir meus feitos de uma forma tão insignificante, senhor Holroyd. Me tornei a melhor professora do mundo.

Os dois riram juntos.

— Obrigada, senhor Holroyd. — Jo agradeceu.

— Levi. — o médico respondeu. — Pode me chamar de Levi, senhorita Wright.

— Não sei se consigo me permitir agir com tanta familiaridade com um cavalheiro.

— Mas não sou um cavalheiro. — ele retrucou. — Esqueceu-se? Não passo de um mero médico, pobre e sem nada que seja verdadeiramente meu além das roupas que visto. Sou uma companhia totalmente segura.

Ophelia não pôde não sorrir.

— Assim como eu sou.

— Fico feliz de ver que os dois concordamos que não haveria nenhum problema em nos vermos novamente. — o médico atalhou. — Podemos fazer não parecer proposital, pelo bem do que é bom e adequado. Posso mencionar algum lugar ao acaso, onde podemos, ocasionalmente, nos esbarrar no mesmo dia e horário.

— E como faria essa menção... Hm... Ocasional?

— Por carta, é claro. — ele respondeu, abrindo um daqueles seus meio-sorrisos.

— Não sei seu endereço ou você o meu.

— A Harri’s tem o hábito de pegar os dados de seus frequentadores para registro, a cada compra que realizam. Há um grande livro na recepção com este objetivo. Podemos muito bem esbarrar nosso olhar... Ocasionalmente, é claro, nos endereços onde residimos, e usá-los como referência para as correspondências.

Ophelia voltou a rir, aceitando a própria derrota.

— Pois bem.

Ele partiu pouco depois disso, levando consigo os próprios livros. Jo seguiu um pouco atrás. Quando chegou a recepção, tinha um sorriso persistindo em invadir seus lábios. Folheou as primeiras páginas do grande livro de registro, que eram organizadas do registro mais antigo ao mais recente, buscando o nome que desejava...

Até que por fim o encontrou. Numa das primeiras páginas, ali estava.

Uma compra realizada pelo senhor Levi Holroyd, no dia 12 de outubro do ano de 1810, residente em Bloomsbury...

Em nome da senhora Sarah Holroyd.

 

 

*Ambas as livrarias existiram de verdade em Londres, na época em que esta história é narrada, e eram duas das inúmeras livrarias francesas da cidade

**A livraria Harri’s era localizada na esquina do pátio da igreja de St.Paul ( sim, a igreja onde nosso Duque de Ferro levou sua duquesa para dar uma volta! ), e vendia apenas livros sobre educação. Falando sobre ela e sobre a Tabart’s, outra livraria de mesmo perfil, Thomas Feltham em 1803 escreveu: “Nessas lojas, diretores de escolas, bem como os pais, irão encontrar os melhores livros em cada área do conhecimento”. No fim, nossa Ophelia foi certamente assertiva em sua escolha.

***Era o centro comercial da cidade de Londres, e apenas pessoas ligadas com o comércio viviam por lá. Mas apesar do nome sugerir uma região empobrecida, Cheapside era bastante elegante e um excelente lugar para fazer compras.

****Área situada ao norte de Mayfair que se desenvolveu no final do século XVIII justamente por seu bairro vizinho não conseguir mais acomodar o número de pessoas interessadas em uma propriedade elegante na região mais desejada de Londres. As classes médias ocuparam a região (também as regiões vizinhas Bloomsbury e Islington) ou construíram eles mesmos vilas nos subúrbios da cidade, consolidando suas posições e criando uma classe social entre os muito ricos e os muito pobres. A Harley Street, particularmente, era um endereço conhecido por abrigar muitos novos ricos.

*****O bairro mais desagradável de Londres, era um amontoado de ruas estreitas e becos perto de Seven Dials, um refúgio para mendigos, comerciantes pobres e criminosos. Havia uma quantidade substancial de irlandeses na região: mais de seis mil irlandeses pobres.


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