1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 20
Capítulo XVIII


Notas iniciais do capítulo

Olá, mon cher's!
Como vocês estão? Espero que bem!
Vindo trazer aqui para vocês este capítulo que, na verdade, eu escrevi dedicadamente a alguém em particular. Algum tempo atrás, uma de vocês, minhas queridas leitoras, fez aniversário, e me pediu, brincando, um capítulo de presente de aniversário. Por isto, posto este capítulo dedicado a você, minha amiga @blindsided, e agradeço todo o carinho que você vem tendo por essa história.
Na verdade, agradeço a todas vocês! Já disse isso talvez um milhão de vezes, mas essa história não seria nada sem as personagens incríveis que vocês fizeram para ela, e sou uma autora muito feliz por ter tanto material e apoio para trabalhar hehehe. De quebra, esse capítulo veio ainda com um post novo do tumblr, num formato um pouco... Diferente, do usual. Quero saber de vocês se vocês gostam deste tipo de edit que fiz por lá, pois se sim, a criadora aqui tem muitas outras ideias para esse tipo de modelo. Minha intenção é que tudo o que é postado no tumblr não só reflita o que está sendo escrito aqui, mas também complemente - vocês entenderão isto do complementar no próximo capítulo, que virá com um presentinho no tumblr também, embora não feito por mim.
Ademais, este capítulo veio, além com a narração de uma de nossas queridas protagonistas, contando também com uma passagem de um de nossos rapazes. Espero que gostem de entrar um pouco mais na mente desse mocinho. Admito que eu gostei bastante.
Anyway, vamos ao capítulo!



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Dorsetshire, 1812

 

— Aposto que você não me alcança!

Foi o que Kishan gritou, quando seu cavalo já tinha disparado muito à frente da égua de Khaleesi. A jovem esperou ele tomar alguns metros de vantagem - queria tentar dar uma chance verdadeira a seu irmão de poder competir contra ela. Então puxou as rédeas de sua própria montaria, incitando-a a correr. E ela correu - não, disparou - com a velocidade de uma flecha.

No momento em que a égua deu seu primeiro trote, Khaleesi perdeu o foco. No meio do caminho, já havia esquecido que estava numa competição, já havia esquecido do próprio irmão, que conseguiu ultrapassar sem dificuldades. O mundo se limitou ao ruído ensurdecedor do vento nos seus ouvidos, ao suave subir e descer de suas coxas no dorso do animal, e as suas mãos firmemente agarradas nas rédeas.

Seu chapéu, frouxamente posicionado em sua cabeça, se perdeu em algum lugar atrás dela. Mas não se importava. Estava em movimento, estava viva, e não se lembrava de ter se sentido tão viva alguma vez na vida. Embora esse fosse um sentimento recorrente toda vez que cavalgava, sempre parecia novo, todas as vezes.

Só recordou de seus arredores quando ouviu a voz de Kishan, perdida na ventania. Levantou os olhos e lá estava ele, à sua frente. Ela folgou mais as rédeas. A égua acelerou. E quando alcançaram a cerejeira que tinham posto como alvo de chegada, Khaleesi já estava esperando Kishan.

— Eu avisei. — Khal disse, sorrindo, arteira, para o mais velho.

— Você é sempre uma estraga prazeres. — seu irmão retrucou, balançando a cabeça. Mas então ele sorriu. — Mas é bom ver você de novo. Fico feliz que tenha vindo.

Ah, Khaleesi também estava muito feliz, embora chegar até lá não tenha sido exatamente uma tarefa fácil.

Após sua discussão com o Comandante, Khaleesi e ele não tinham se encontrado muitas vezes. Os jantares em conjunto pararam de acontecer, e ele voltara a sair antes que ela acordasse e a voltar só quando ela estava se preparando para dormir. Às vezes ele não chegava a sair de casa em si, mas passava o dia inteiro trancado na biblioteca, seu escritório pessoal, que era um território completamente proibido para qualquer outro ser humano que vivesse na casa Barclay, mesmo a criadagem.

Não que Khal quisesse vê-lo, de todo modo. Enquanto o marido estava ocupado evitando-a, Khal mergulhou em outras tarefas mais importantes.

No dia seguinte à briga de ambos, a Duquesa Viúva apareceu às portas da Casa Barclay. Khal lembrou-se, então, que aquela costumava ser a residência dela. Era estranho saber que estava vivendo na casa que até algumas semanas antes pertencera a outra pessoa pelas últimas décadas. E mais estranho ainda fora a reação que toda a criadagem tivera diante da chegada da Duquesa.

— O que devemos fazer, Vossa Graça?

Fora a governanta quem perguntara.

Khaleesi se voltara para a mulher pronta para lhe pedir que não deveria incomodar a duquesa com perguntas que não faziam sentido, mas então notara, com certo assombro, que a governanta falara com ela. Ela era a duquesa de Barclay, afinal. Por um momento, foi como se tivesse se esquecido disso.

Khal já notara que a governanta e o mordomo da Casa Barclay eram pessoas muitíssimo habilidosas em seus trabalhos. Eles cuidavam da Casa com maestria, só consultando Khaleesi no que era verdadeiramente relevante a ela. Mas isso não mudava o fato de que precisavam de seu comando. Alguém precisava estar no comando. E todos esperavam que este alguém fosse ela, como senhora da casa.

Khaleesi instruiu a cozinheira a acender o fogão, mandou uma das copeiras encher uma grande chaleira e pediu a um dos meninos da cozinha que ajudasse bombeando a água. Determinou que um quarto fosse preparado para a Duquesa Viúva, o melhor quarto de hóspedes que tivessem, e ordenou que uma bandeja com xícaras fosse preparada e que a chaleira ficasse pronta, para que chá ou café fossem servidos tão logo alguém solicitasse.

Sugeriu que assassem alguns bolinhos o mais rápido possível e pediu a um serviçal que conferisse se a lareira no quarto que a duquesa usaria estava devidamente acesa. Pessoas idosas costumavam sentir mais frio que os jovens. Então recepcionou a duquesa numa das pequenas sala de estar da mansão.

A senhora passou os dias seguintes na Casa Barclay, com ela e o Comandante... O que foi uma excelente distração, pois precisando dar atenção a ela, Khaleesi não tinha tempo de incomodar-se com seu marido. Ajudava o fato de que a criadagem já começara a apreciá-la, de modo que não questionavam o que dizia nem a desrespeitavam. Mas era estranho para Khaleesi fazer isso tudo com a Duquesa Viúva por perto, pois ela se sentia quase como uma usurpadora.

Embora, é claro, não fosse nada disso.

Mas o abençoado sentimento de paz e tranquilidade que dominou aqueles poucos dias desapareceu rápido. Aconteceu quando Khaleesi estava na sala de estar dos seus aposentos, escrevendo para Kishan a carta que dizia que sim, claro que o visitaria e a mamãe nos próximos dias. Seria maravilhoso revê-los depois de tanto tempo separados.

O Comandante entrara no cômodo quando estava na metade. Ele já estava vestido para dormir, então, com um roupão azul-marinho e o cabelo úmido do banho. Khal não ofereceu nada além de um breve olhar para ele. Até que ele abriu a boca para dizer que pedira a criadagem para começar a preparar suas bagagens e a carruagem que os levaria até a propriedade do Duque de Augustenborg depois de amanhã.

— Você não precisa ir. — Khaleesi retrucara, muito mais porque ainda estava brava com ele que por qualquer outro motivo. — Posso muito bem ir sozinha.

A expressão no rosto do seu marido não mudara, no entanto. Nem sua pretensão.

— Não deixarei minha esposa partir em uma viagem sozinha.

— Depois de ignorá-la totalmente nos últimos dias?

— Não me pareceu que você quisesse me ver, madame. Não tinha a intenção de perturbá-la com minha presença indesejada. — ele respondera, secamente.

Ela retribuíra-lhe com uma risada irônica:

— Pensei que planejasse se livrar de mim assim que eu não tivesse mais utilidade.

— Enquanto somos recém-casados, — ele rebatera, sem alterar seu tom de voz. — não acho prudente que viaje só, madame. E de todo modo, tenho assuntos a serem resolvidos com seu pai. Essa visita teria de ocorrer, cedo ou tarde.

Khal estufara o peito em resposta:

— E quanto a seu jantar com o príncipe regente? Perderá ele?

— Não.

— Eu não reduzirei o tempo de minha visita a minha família só pelos seus caprichos.

— Não pensei que reduziria.

E assim ficara decidido.

Havia ainda, no entanto, outro ponto a ser alinhado: A Duquesa Viúva. Ela estava se hospedando com eles, naquela casa que até pouco tempo fora sua. Quando ouvira sobre a iminente partida deles, dissera que não haveria problema em continuar lá... Mas o Comandante não parecia inclinado a deixá-la só. E Khaleesi concordava que a idosa não deveria ficar sozinha, fragilizada como ainda estava pela morte recente do marido.

Também, não parecia uma boa ideia hospedá-la na mansão da viúva. Certamente uma tragédia homicida se abateria contra a família Gillingham se esse cenário se tornasse real. Khaleesi considerou, por um momento, pedir que Morgan cuidasse dela... Mas o Comandante pareceu ter uma ideia melhor, de alguém que poderia ajudar sua avó a sair do marasmo do luto.

Na manhã de sua partida, a carruagem tinha estacionado na frente da Casa Barclay.

Lady Muirhead, a irmã da Duquesa Viúva, que também era viúva, chegou numa carruagem tão velha e tão ornamentada que não ficaria mal no acervo de um museu. Tão sobrecarregada de criados - uma aia, lacaios de farda, escolta robusta, cocheiro idoso - e tão repleta de bagagem que Khaleesi imaginou que pelo menos seis pessoas emergiriam do interior do veículo, não apenas uma.

— Elinor, — chamou a dama depois de olhar bruscamente para o saguão de entrada e, em seguida, apertar a irmã contra seu amplo peito. — Minha doce Elinor. E assim termina uma das maiores histórias de amor que a sociedade londrina já viu... Não, que o mundo todo já viu. Não consigo imaginar como será sua vida sem Hector. Como ele morreu? Em paz, espero, que é mais do que posso dizer de meu pobre Edward. Precisa me oferecer chá, com uma gota de conhaque servida por Aiden, e me contar tudo. Venha comigo. Presumo que ainda não tenha chorado o suficiente. Nunca foi um regador ambulante, como mamãe e papai, que costumavam se afogar em lágrimas ao receberem a menor provocação. Até um rato morto fazia com que caíssem no choro, era de dar nos nervos de qualquer um. Lembra-se daquele rato e do enterro que mamãe insistiu em providenciar?

Khaleesi as observava, quieta, com o marido a seu lado postado como uma estátua.

— Você ficou muito sombrio e... — continuou Lady Muirhead, virando-se para o Comandante então e apalpando seus ombros: — Deleitável, desde que voltou da guerra, devo dizer, Aiden. E que história é essa de casamento sem convidados? Eu estaria irritada como um urso faminto com você se seu pobre avô não tivesse batido as botas pouco antes disso e feito todas as minhas energias se voltarem a minha pobre irmã. Esta aqui é a noiva?

Ela levou ao rosto um lornhão, de haste comprida e sem alças, que ampliou seus olhos na direção de Khaleesi.

— Tia Lilbeth, — disse o Comandante. — permita-me apresentar-lhe minha... Esposa. Khaleesi, conheça Lady Muirhead, a irmã mais nova de vovó.

— Milady, — cumprimentou-a Khaleesi, fazendo uma reverência... Até notar que estava cometendo uma tremenda gafe. Afinal, ela era a pessoa de maior título presente, se seu marido fosse excluído.

As lentes permaneceram grudadas nela por mais um momento antes de serem baixadas.

— Você é filha de Augustenborg. — falou Lady Muirhead. — Encontrei sua mãe recentemente, na cidade... Ah, ela esteve com você antes de seu casamento, não? Uma beldade, certamente, mas a beleza dela não supera a sua, menina. Como diziam os mexericos. Eles raramente estão certos, mas parecem que dessa vez acertaram. Uma selvagem estrangeira, mas muito bonita, de fato.

Khaleesi preparou-se para retribuir aquele desdém, com o qual já se familiarizara, em especial vindo de determinados membros da família de seu marido, mas então a dama prosseguiu:

— E agora, você pode empinar o nariz para todos eles. Ninguém vai esnobar uma duquesa bela como uma rainha, ainda mais quando ela se casou com um ex-militar tão obscuro e igualmente atraente. Pode beijar meu rosto, mas tenha cuidado para não manchar o ruge, ou minha aia vai ficar de cara feia por uma semana.

Lady Muirhead não quis ver os aposentos que tinham sido preparados para sua estadia. Deu o braço à irmã e foi andando na frente rumo à sala de estar, instruindo a governanta, no caminho, a preparar uma chaleira bem grande, sem demora.

— Peço desculpas por agir com tanta intimidade, duquesa. — disse ela, olhando de esguelha para Khaleesi, que ficava para trás, com seu marido.

Enquanto a carruagem que os transportaria estacionava e os criados começavam a pôr as bagagens nela, Aiden virou-se ligeiramente para Khaleesi.

— Dizem que a maioria das famílias tem pelo menos um excêntrico. — murmurou. — Normalmente, a tia de alguém.

Era a primeira vez que ele falava qualquer coisa para ela que não fosse hostil desde sua discussão na frente de Morgan. Ela encarou aquelas palavras como um pedido de trégua silencioso. Pois bem, que assim fosse. Ela não deixaria aquilo para trás facilmente, mas seria difícil passar tanto tempo trancada dentro de uma carruagem ao lado dele se ambos ainda estivessem emburrados.

De todo modo, toda a viagem foi feita no mais absoluto e completo silêncio. O único som capaz de ser ouvido era o sacolejar que a carruagem fazia pela estrada. O Comandante fixou os olhos na janela, parecendo muito interessado na vista do lado de fora, e Khal tentou ler um livro que encontrara em seu quarto no dia anterior. A verdade era que ela estava se esforçando ao máximo para afastar a ansiedade que ameaçava dominá-la.

As horas passaram de um modo torturantemente longo, mas por fim, eles haviam chegado.

Mal eles haviam descido da carruagem, Kishan e a mãe de Khaleesi haviam se afastado da entrada da residência para recebê-los.

Skade Augustenborg era, acima de tudo, uma mulher de extrema classe. Mas este traço em particular nunca impedira-a de demonstrar carinho a seus filhos, quando era apropriado. Os braços dela haviam sido os primeiros que tinham envolvido Khaleesi assim que a jovem pusera os pés para fora do veículo.

— Minha querida filha, — ela murmurara, apertando Khaleesi um pouco mais antes de afastá-la e levar as mãos ao seu rosto. — Minha corajosa, bela, filha.

Khaleesi aproveitara ao máximo a sensação dos braços de sua mãe ao redor de si. Aspirara o cheiro do perfume que ela usava, seu calor, e a sensação maravilhosa de familiaridade que todas essas sensações tinham. Mas então se lembrara que não estava sozinha, e tinha se afastado dela, se virando um pouco para trás:

— Mamãe, — dissera. — acho que deve se lembrar de meu marido, o Duque de Barclay, Aiden Gillingham. Esta é minha mãe, Comandante.

— Ah, mas eu jamais esqueceria um homem dessa finura — Skade respondera, sorrindo amavelmente.

— É um prazer reencontrá-la, Lady Augustenborg. — o Comandante dissera, educadamente.

Então Khaleesi se voltara de novo na direção de sua família... E Kishan tinha a pego num abraço forte:

— Khal, o que você fez? — perguntara ele, junto ao ouvido da irmã. E ela sabia ao que ele estava se referindo. — E tão de repente...

Khaleesi pensou em lembrar ao irmão que não tinha tido muito escolha no que dizia ao seu casamento, mas acabou não fazendo isso. Tinha decidido que não lamentaria mais aquilo. Além disso, talvez ele não soubesse de como as coisas tinham ocorrido, de fato. Ou talvez soubesse, mas só não conseguisse discordar abertamente do pai de ambos.

Ah, Kishan. 

— Não houve tempo para avisar a ninguém, — Khal respondera. — O duque... Quero dizer, meu marido, estava ansioso para que casássemos sem rebuliço nem delongas. Lamento que vocês não tenham podido participar.

E ela lamentava mesmo. Só Khaleesi sabia o quanto sentira a falta de seu irmão e de sua mãe durante aquelas semanas. Eles eram a coisa mais próxima de seu lar que ela tinha, além de Agatha. Mas não são mais minha família, ela se esforçara em lembrar. Sua família agora era seu marido, Morgan, James e seus sobrinhos, sua sogra e a Duquesa Viúva. E ainda que soubesse isso, ainda assim, ainda assim...

Ela era incapaz de não sentir-se aliviada em tê-los por perto de novo.

Aiden e Kishan tinham apertado as mãos e se cumprimentado polidamente, mas estava claro que estavam examinando um ao outro. E nenhum deles sorrira.

— Espero ter a chance de me redimir, — O Comandante falara, em determinado momento. — por não ter consultado nenhum de vocês antes de me casar com Khaleesi.

Khal sabia que aquelas eram somentes palavras vazias de cortesia, mas ainda assim, tinham feito sua mãe sorrir.

— Não esperava a carta de meu marido quando estava em Londres, — Skade admitiu. — mas fico feliz que tenha vindo de tão longe nos conhecer, Vossa Graça. Entre, por favor. Pedirei que alguém o acompanhe até o quarto de hóspedes que reservamos, em seguida deve descer para tomar um chá na sala de estar. Você também, filha. Ou eu deveria dizer Duquesa?

Khaleesi abrira um sorriso, encabulada.

— Mamãe, por favor, não precisa disso tudo. Eu ainda sou só sua filha.

— E minha filha é a nova Duquesa de Barclay. — Skade retrucou, orgulhosamente. — A única múlher mais nobre que ela na Inglaterra é a própria Rainha Charlotte.

Khal negara novamente a afirmação, apontando como era exagerada. Mas então fez a pergunta que ansiava fazer desde o momento em que descera da carruagem e vira somente sua mãe e seu irmão:

— Onde está meu pai?

O sorriso de Skade murchara talvez um pouco.

— Ah, — ela disse. — seu pai está em visita a um cavalheiro da região. Algum lorde da câmara que não cumpriu seu dever de ir à capital durante a temporada. Não se preocupe com ele. Ele virá o mais rápido que puder, nunca perderia a visita de sua pequena princesa.

Khal abrira um sorriso amarelo em resposta:

— É claro que não.

As duas se entreolharam, sabendo que Skade estava mentindo para tentar fazer a filha sentir-se melhor.  

A verdade que compartilhavam, apenas com olhares, era que Guthred Augustenborg era um homem frio, no que se dizia a sua filha caçula. Todo o calor que talvez tivesse era dirigido a esposa e ao filho mais velho. Quando Khaleesi era menor, mamãe tentara fingir que não era assim, tentara desviar a atenção dela como se fosse uma feitieira, iludindo-a com o brilho de sua própria afeição, mas como ocorre com todas as ilusões, a verdade acabara aparecendo por trás dela.

Haviam tido momentos em que Guthred demonstrara algum carinho por Khaleesi. Na verdade, para a dinamarquesa, haviam dois Guthreds muito distintos que habitavam um mesmo corpo. Um deles era o homem ambicioso e rígido que não costumava relancear um mínimo olhar que fosse em sua direção, o homem com sede de poder que faria tudo para conquistar o que almejava. O outro era o pai gentil, até afetuoso, que ocasionalmente despontava de dentro dele. Quando era pequena, Khaleesi não compreendia muito bem esta dualidade. Agora, que era adulta, compreendia.

No que se dizia a sua filha, Guthred era caloroso quando lhe era conveniente ser. Quando isto seria útil. Quando ela lhe seria útil. Khaleesi recordava muito bem esses momentos; Quando ele desejava levá-la a grandes eventos de sua aristocracia, e exibi-la como um prêmio para todos aqueles velhos nobres, e então a presenteava antes com algo que ela queria há muito tempo, ou simplesmente se dispunha a passar algum tempo com ela, rindo de suas piadas sobre os pretendentes e fingindo que realmente fazia aquilo porque queria. Porque gostava.

Quando era menor, a única coisa que ela conseguia sentir, nesses momentos, era encantamento... E felicidade, pois parecia que sim, afinal, mamãe estava certa, e papai a amava - ele só tinha um modo estranho de demonstrar isso. Mas a medida que fora crescendo, ela percebera que tudo isso nunca passara de uma barganha, para Guthred - embora não fosse Kishan, Khaleesi era bonita e tinha atributos que lhe podiam ser úteis em seus objetivos, então ele a mimava com essas baboseiras para que ela o ajudasse sem discordar.

E quando ela discordava, sempre havia uma promessa de castigo para incentivá-la.

Naqueles tempos de sua juventude, quando não o amava, Khaleesi temia o pai. Ela podia não ter compreendido o motivo para o comportamento dele quando era pequena. Mas compreendia outras coisas.

Mesmo sem perceber, em sua infância, ela já havia descoberto os espaços vazios que cresciam entre as pessoas. Ela ansiava que sua família fosse como aquelas que lia nos livros, onde tudo parecia perfeito e todos se entendiam. Ninguém, nem mesmo sua querida mãe, parecia compreender como ela costumava se sentir solitária entre aquelas paredes, sentindo-se invisível, principalmente quando posta ao lado de seu irmão.

E quando era mais nova, Khaleesi tentava a todo custo remediar isso. Ela buscava todas as formas possíveis de agradar ao pai, o seguia como um cachorrinho asnioso, implorando para ser notado.

Isso até aquele dia, um pouco antes do ataque de 1807.

Khal recordava-se daquele dia perfeitamente bem. Do modo como a voz de seu pai se elevara, a maneira como sua mão apertara seu braço de tal forma que deixara rastros posteriormente, e o modo como seu desespero misturara-se ao terror, ao enjôo e ao...

Vazio.

Depois daquele dia, Khaleesi se fechara de vez, mantendo distância. Desde então até agora nada mudara; nem ficara melhor. Se tanto, a distância emocional entre ela e o pai havia crescido. Havia decidido que não precisava de seu pai. Participaria de seu teatro, o tanto quanto ele quisesse, seria a boa filha, a querida, dócil filha, que ele desejava que fosse. Se manteria dentro daquela casa de bonecas, com seus traços imaculados de porcelana, até o dia em que fugiria para o mais longe daquele homem quanto fosse possível.

E agora ela estava ali. De volta à propriedade que ele recebera do príncipe regente, o lugar que fora seu lar pelos últimos cinco anos... Mas não mais. Agora Khaleesi era uma mulher crescida. Uma mulher casada. Uma Duquesa. Como esposa de Aiden, ela era mais reconhecida e respeitada como parte da sociedade inglesa do que seu pai jamais seria.

Ele não tinha mais controle nenhum sobre ela, e não havia razão para temê-lo. Não havia mais nenhuma maneira pela qual ele podia intimidá-la.

Por sorte, Khaleesi não precisou se preocupar com ele durante os primeiros dois dias de visita. Ela aproveitou ao máximo o tempo que tinha para dividi-lo entre a mãe e o irmão. Tomou todas as refeições com eles, fez um piquenique à beira de um lago com eles, passeou no jardim, tomou chá com sua mãe, acompanhou-a em todas suas atividades diurnas, e perturbou Kishan quando ele se voltava aos próprios estudos e assuntos administrativos que dividia com seu pai, convencendo-o de que ele não podia dar atenção àquilo tinha algo muito mais importante por perto - a ilustre presença dela.

Durante todo este tempo, o Comandante esteve presente só no que as convenções sociais o obrigavam a estar. Ele tomava as refeições com a família Augustenborg, mas passava a maior parte de seu tempo sozinho, caminhando pela propriedade ou zanzando pela biblioteca cujas portas a mãe de Khaleesi abrira imediatamente para ele, ao notar que ele sentia-se inclinado a visitá-la. Não que isso incomodasse Khal - sem ele por perto, tinha mais chances de estar com sua família em tempo integral.

No entanto, a distância entre ela e o marido não passou despercebida por sua mãe, que a questionou sobre o fato, delicadamente, numa das ocasiões em que estavam juntas.

— Me parece que você e Vossa Graça não se entendem muito, minha querida. — foi o que ela dissera.

Khal dera de ombros, em resposta.

— Tivemos uma pequena desavença antes de vir para cá, mamãe. Não precisa se preocupar com isso.

Sua mãe a olhara eloquentemente.

— Os criados me disseram que estão dormindo em quartos separados.

Nesse momento, Khal quase engasgara com o café que tentava beber. Skade acrescentara:

— Eu não quero de nenhum modo me envolver em seu casamento, querida. Sei que não foi fácil para você. Eu também não esperava que seu pai fosse fazer algo do tipo... Sem nos comunicar antes. Mas estou certa de que ele não quis prejudicá-la. E nem eu quero. Me preocupo com você, meu amor, e não quero ver minha filha infeliz. Me diga, seu marido é cruel com você?

Khaleesi assentira.

— Eu sei disso, mamãe. — ao menos, ela sabia que os votos de Skade eram sinceros. E não queria preocupá-la. — O Comandante não me machucou de nenhuma forma, se é o que teme. Mas ele tem modos bastante... Desafiadores.

— Ah, então quer dizer que meu filhote cabeça-dura encontrou alguém a sua altura?

Khal rira de suas palavras, apesar de tudo.

— Ah, eu sou o próprio modelo de benignidade cristã, comparada a ele, isso eu garanto.

Skade rira junto. Mas então voltara a mostrar uma expressão mais sóbria, ao dizer:

— Sei que encontrará algo que a ligue ao Duque, querida. Eu e seu pai encontramos.

— Eu sei. — a jovem concordara, mais para tranquilizá-la que por qualquer outro motivo. — É só questão de tempo, não é? De tempo e de talvez o auxílio de uma marreta, para quebrar a casca grossa sob a qual aquele homem se esconde.

Elas tinham voltado a gargalhar, então, e mudado de assunto.

Apaziguar sua mãe fora bastante simples. Mas o mesmo não podia ser dito de seu irmão. Mesmo naquele momento, enquanto faziam juntos uma das coisas que mais adoravam, Khal podia senti-lo ainda levemente ressentido... Pelo fato de ter sido excluído de seu casamento, e pelo fato de Khaleesi ter demorado algum tempo ainda para enviá-lo uma carta falando sobre o assunto.

Ciente dessa nuvem escura que ainda pairava sobre eles, quando soltaram as rédeas para permitir que os cavalos descansasem um pouco da corrida, Khaleesi murmurou:

— Eu realmente sinto muito, Kishan.

Ela não precisou explicar ao que se referia. Ele fez um gesto de dispersão com a mão, como se aquele assunto não tivesse mais importância. Mas então olhou para a irmã detidamente:

— Khal, você definitivamente fez um casamento vantajoso. Muitas mulheres matariam e morreriam para se tornar uma duquesa. — seu irmão disse. — Mas será feliz? Tudo ocorreu tão de repente. Isso foi por você ter achado que não tinha para onde ir? Você sempre vai ter a nós, você sabe. Você sempre vai ter a mim.

Khaleesi compadeceu-se de seu irmão. Kishan sempre tinha sido o melhor dos dois, na visão dela. O irmão dela sempre tinha sido o mais gentil deles, o de coração mais sincero e bondoso. Isso tinha ficado evidente desde a infância deles. Não que Khal fosse uma criança particularmente maldosa - mas sempre fora mais reservada, mais quieta, que Kishan. E mais arisca, também. Ela nunca fora de fazer muito escarcéu por qualquer coisa que fosse, e muitos costumavam julgá-la como séria demais para a idade. Enquanto Kishan fora o encanto em pessoa, desde sempre.

E, embora tivessem suas distinções, eles sempre haviam sido, além de irmãos, bons amigos. Às vezes Kishan cismava em bancar o irmão mais velho superprotetor, e isso tirava Khaleesi do sério, mas eram mais frequentes as vezes em que riam desses episódios juntos. Eles sempre haviam tido o hábito de fazer tudo juntos; de brincar de sparing! com cabos de madeira dentro do quarto de Khaleesi a cavalgar - que sempre fora, e ainda era, uma das atividades preferidas da mais nova.

Semelhantemente à Agatha, Kishan sabia de praticamente tudo sobre Khaleesi. Não haviam muitos segredos entre eles. Isso incluía Erik e a devastação que o ano de 1807 havia tido sobre ela. Khal sentia que podia falar de tudo com Kishan, sabendo que não seria julgada ou criticada. Ela podia falar sobre tudo com ele, a não ser sobre...

Seu pai.

Guthred Augustenborg era o único assunto proibido entre eles. Isso porque Kishan tinha pelo pai de ambos uma lealdade incomensurável, um sentimento que provavelmente nascera de toda a atenção e empenho que ele tinha posto sobre o filho mais velho. Não que Khaleesi se ressentisse de seu irmão por isso - não era culpa dele que o pai de ambos nutrisse uma óbvia preferência por ele.

Mas ela simplesmente não conseguia dividir das mesmas opiniões que o irmão. E isso havia criado uma parede invisível entre eles, uma parede que marcava um limite que não devia ser posto a prova, se ela desejasse manter a amizade que tinha com o irmão mais velho.

Ela deveria aproveitar aquele momento para dizer a ele que, embora estivesse sendo um desafio e um suplício diário, o casamento com o Comandante também significara para ela algo com que sonhava há muito, muito tempo: Liberdade. Liberdade das amarras que tinham estado sobre ela por tanto tempo, amarras que o pai deles havia colocado.

Mas por conta dessa parede invisível, ela somente sorriu para ele e disse:

— Eu sei disso. Mas eu estou bem, Kishan. O Comandante é uma pessoa difícil, mas sei que vamos nos entender cedo ou tarde.

Ela não tinha certeza de nada, é claro. Mas sabia que faria de tudo para que isso ocorresse. E sabia que queria tranquilizar as preocupações de seu irmão. Não podia gastar o tempo precioso daquela visita fazendo lamentações sem futuro. Por isso puxou as rédeas de sua égua e começou a guiá-la de volta para a trilha que tinham pego.

Mas Kishan não desistira.

—  Khaleesi, — ele insistiu, pondo seu cavalo à frente, impedindo-a de prosseguir. —  não diga que está bem quando não está. Eu consigo ver isso em seus olhos. Eu conheço você.

Ela não sabia como responder a isso, o que dizer. Apoiar-se nos outros em busca de conforto nunca fora natural para ela - nem mesmo quando se tratava das pessoas mais próximas. A última coisa que queria era dar a alguém o poder de feri-la. A autopreservação era a única coisa que aprendera com o pai.

Por isso ela fez o que sempre fazia em momentos como esse: sorriu e acenou com a cabeça.

— Deixe de ser bobo. O que o Comandante fez para ganhar sua inimizade?

Kishan fez uma careta, tirando o cavalo do caminho de Khal. Finalmente.

— Aiden Gillingham não tem exatamente uma fama boa.

— E quem lhe disse isso? Não sabia que o conhecia antes.

— Não conhecia. Mas eu tenho minhas companhias. — Kishan comentou, vagamente. — Encontrei com alguns oficiais, na última vez que fui a um clube em Londres, e eles o mencionaram. Seu marido.

Embora não fosse muito crente de mexericos, especialmente mexericos proferidos por homens bêbados, Khaleesi não pôde deixar de sentir-se curiosa. Ela inclinou a cabeça ligeiramente, indicando para o irmão continuar.

— Ele foi um prodígio e tanto. — Kishan disse. —  Um líder nato, pelo que disseram, que escalou rápido de patente em patente. Não há um homem em toda Inglaterra que não saiba quem foi o Comandante Aiden Gillingham. Mas isso também advém do que ocorreu antes dele deixar sua carreira militar.

— O que ocorreu?

Esta era uma das coisas que Khaleesi não sabia sobre seu marido. Esta, e o estranho mistério que rondava a relação entre ele e o falecido duque, seu avô, e que criara rachaduras entre ele e sua mãe. Se Kishan tivesse qualquer pista sobre qualquer um daqueles questionamentos, independente de quais fossem as fontes, ela gostaria de saber.

— Mas então algo ocorreu... Em sua última e mais grandiosa batalha. Ele a liderou e venceu, o que lhe rendeu a patente de Comandante e muitas honrarias entregues diretamente pelas mãos do príncipe regente. Mas quando voltou para a Inglaterra... Não parecia em nada com um herói vitorioso.

Khal continuou ouvindo atentamente. Kishan encarou-a, de cenho franzido.

— Não estou certo de que isso seja para seus ouvidos, irmã. Talvez prefira não ouvir isto...

— Continue. Você começou, então vai terminar.

Ele hesitou uma vez mais.

— Vamos.

Por fim, seu irmão disse, ainda que receosamente:

— Eu não sei os detalhes. Mas os oficiais disseram... Que quando ele voltou, tudo o que dizia era que desejava a morte, que queria pôr fim em tudo. — as palavras pareciam deixar seu irmão intrigado. — Bem, não importa. Não aconteceu. Mas aparentemente, o que quer que isso tenha sido, foi o que o levou a ser enviado para Bath para ser tratado por um médico... Não recordo o nome agora... Holroyd? Acho que é este. Esse médico é diferente, ao que parece. Ele acredita que a guerra fere a alma com a mesma profundidade que o corpo, às vezes até mais. E é muito habilidoso nesse aspecto de seu trabalho. Assim como com Gillingham, ele tratou de casos parecidos com o dele. Problemas de cabeça, quero dizer. Ele ficou lá por dois anos, por isso os mexericos se espalharam. Começaram a duvidar de que ele voltaria.

Khaleesi sentiu-se gelada. Ele desejara morrer? E passara dois anos em Bath antes de ter condições de voltar para casa e para a sociedade?

Problemas de cabeça, quero dizer.

Ninguém nunca lhe dissera nada sobre isso. Nem mesmo Morgan, em quem estava começando a confiar. E por que diriam? Mesmo que tivesse sabido, ela não poderia ter evitado seu casamento com ele. Obter conhecimento sobre aquilo só teria-a feito sentir-se... Bem, como estava se sentindo agora. E o que ela estava sentindo?

Holroyd. Era o nome do médico que o tinha tratado. Khaleesi já ouvira este nome antes. Levi Holroyd visitara seu marido quando ele era apenas seu noivo, junto com o Visconde Bedwyn. Ele fora até seu casamento. Além dele, só haviam mais dois homens presentes que não eram da família Gillingham; o Visconde e o Conde de Lannair, um rapaz em cadeira de rodas.

Khaleesi não pensara muito nisso na época, mas compreendera que certamente aqueles homens tinham importância para seu marido - não teriam presenciado seu casamento, se assim não fosse, nem teria um deles sido nomeado padrinho. Então Levi Holroyd tratara dos problemas de seu marido... E dos do Visconde Bedwyn e Conde de Lannair, também? Um dos homens era cego e o outro aleijado. O Comandante mencionara que o Visconde era um conhecido seu do exército.

— Khaleesi, — Kishan chamou-a. — maldição, eu disse que você não deveria ouvir isto. Esqueça. Isso aconteceu no passado. Seu marido parece perfeitamente bem agora, não?

Khaleesi piscou. Sacodiu a cabeça. Deixaria para refletir nisso depois. Agora, precisava aproveitar da companhia de seu irmão enquanto o tinha por perto uma vez mais.

Ela forçou-se a abrir um sorriso:

— É claro. — então murmurou algo para sua égua e a fez dar a volta. — Vamos lá, Kishan! Mais uma vez!

Mais tarde naquele dia, Khaleesi se encontrou com seu pai.

Ele de fato voltou a tempo de encontrá-la, como sua mãe dissera que faria. Mas Khal não ficou exatamente contente com o fato. De todo modo, quando o viu cruzar o corredor, ela examinou-o com atenção, se esforçando para distinguir qual de suas versões ele estaria usando no momento.

A resposta relevou-se quando ele abriu-lhe um sorriso e os braços:

— Khaleesi.

Entrando em seu teatro, como se acostumara a fazer, Khaleesi sorriu docilmente de volta. Era assim que sua vida funcionara nos últimos anos: seu pai fingia que a amava, ela fingia que acreditava, e assim sustentavam a doce ilusão de que sua família era perfeita.

— Papai.

Ele a envolveu em seus braços. Ela sentiu todos os músculos do corpo retesarem-se, mas apertou-o brevemente de volta.

— Minha filha, — o duque disse, continuando a caminhar com ela em direção a uma pequena sala adjacente. — como está bela. O casamento lhe fez muito bem.

— Tudo graças a você, papai. — Khal retrucou, brandamente. Ela aprendera que era sempre melhor dizer o que ele queria ouvir. Quanto mais rápido ele estivesse satisfeito, mais rápido ela estaria livre de sua presença e de suas inquisições.

E sempre haviam inquisições. Elas eram, em sua maioria, implícitas. Escondiam-se por entre e em meio às palavras bem forjadas do Duque de Augustenborg, mas com o tempo e a experiência, Khaleesi aprendera a desvendá-las e aprender a calcular exatamente qual seria a melhor resposta. A resposta que deixaria seu pai contente, a resposta que não o deixaria irritado.

Era como uma estranha dança que ela levara muito tempo para aprender a coreografia. E, mesmo agora que a conhecia, era incapaz de evitar a ansiedade que antecipava o erro. Um passo em falso, e ela estava perdida.

A porta permaneceu entreaberta quando eles adentraram na sala de música.

— Eu não esperava vê-la tão cedo, — seu pai falou, enquanto servia para si mesmo uma dose de licor. — mas fico satisfeito em ver que o Duque de Barclay veio acompanhando-a.

Isso queria dizer que ele não se alegrava com sua vinda, mas ao menos ela não viera sozinha. Provavelmente o que seu pai desejava era que a filha permanecesse ao lado do marido, cumprimendo o papel que recebera naquele casamento. Khaleesi não entendia de todo as minúcias do que estivera por trás daquele enlace, mas pelo pouco que havia descoberto, tinha tecido sua teoria.

O Príncipe Regente da Inglaterra abrigara a família Augustenborg, antes de seu ataque a Dinamarca em 1807. Enquanto sua bela capital era atacada, Khaleesi fora forçada a fugir... Para os braços do inimigo que os estava dizimando. E em nome de quê? Até então, o país não demonstrara apoio a Napoleão, de modo que não poderia ser considerado um inimigo, de fato.

Mas sua neutralidade não fora o suficiente para a nação britânica. Para eles, se a Dinamarca não era um aliado, então ela era um inimigo. De modo que tinham atacado-a, a família Augustenborg tinha a abandonado, e o Príncipe tinha concordado em abrigá-los em seu território. Mas com a benção do príncipe ou não, eles continuavam sendo estrangeiros. Estrangeiros e, na visão de muitos, traidores.

De forma que Khaleesi entendia que algo precisava ser feito para que seu posto como ingleses honorários se tornasse enfim fixo. Era aí que seu casamento entrava. Não havia maneira melhor de garantir sua posição do que relacionar-se diretamente com a nobreza britânica.

E seu pai fizera muito mais que isso; ele se relacionara com a família real. Khal não estava certa de qual era o grau de parentesco de seu marido com o príncipe regente, mas sabia que os ducados só eram entregues àqueles que dividiam o mesmo sangue que a família real.

Um grande feito para ele, de fato. E agora, ele provavelmente queria garantir que tudo estivesse correndo conforme seus planos. Que sua filha estivesse servindo perfeitamente ao papel de esposa agradável aos olhos do Duque de Barclay.

O ideal era fazer com que ele acreditasse nisso.

— Ah, — Khal murmurou, suavemente. — meu Aiden e eu não conseguimos permanecer longe um do outro por muito tempo.

Ela tentou soar o mais convincente quanto possível. E, por um momento, pareceu que conseguiria safar-se dessa sem ademais problemas. Pois seu pai sorriu-lhe levemente. Mas então algo em seus olhos mudou - foi uma transformação muito sutil, mas perceptível aos olhos treinados de Khaleesi. Como um eclipse acelerado. O crepúsculo repentino cobrindo um sol radiante.

— Não foi isso que ouvi. — ele retrucou, com uma tranquilidade quase aterradora.

Khal não respondeu. Apenas permaneceu encarando-o.

— Chegaram até mim, — o duque prosseguiu, começando a caminhar de um lado a outro no recinto. — mexericos desagradáveis.

A jovem levou as mãos para as costas, mas manteve o rosto erguido. Ela não abaixaria a cabeça. Não mais.

—  Mexericos esses que sugeriam... — ele gesticulou com uma das mãos, encarando o chão enquanto caminhava, como se estivesse intrigado. —... que há maus sentimentos entre você e seu marido. Que vocês se evitam durante a maior parte do tempo, e pior...

Algo no tom de voz dele fez com que um leve tremor percorresse a espinha de Khaleesi.

—... Que você não permite que ele entre em seus aposentos.

A dinamarquesa entreabriu os lábios. Ela esperara aquele momento. Embora não compreendesse de que forma seu pai teria adquirido estas informações, esperara o instante em que ele retomaria aquela sua faceta, e planejara exatamente como reagiria. Ela tinha todas as palavras tatuadas em sua mente, tudo planejado, milimetricamente pensado para mostrar a ele como as coisas haviam mudado. Para mostrar a ele que nada era como antes, e que agora, ele não tinha poder sobre ela como antes tivera.

Ela planejara tudo...

Mas, naquele momento, não conseguiu pôr nada para fora. Foi como se ela tivesse voltado a ser uma criança, uma menina, sendo repreendida pelo próprio pai, trêmula e temerosa de tê-lo decepcionado.

— Eu... —  começou, mas sua língua enrolou-se, e não foi capaz de completar a frase.

— Khaleesi, — o duque parara de caminhar, e agora aproximou-se um passo a mais. A voz dele a envolveu, ameaçando engoli-la, e por reflexo ela levou as mãos aos braços, como se abraçasse a si mesma. — não me diga que você está pondo tudo a perder.

Eu estou cansada de seus plano, Khaleesi pensou. Não faço mais parte deles. Não sou mais uma peça em seus jogos.

Mas as palavras permaneceram somente em sua mente.

Eu não obrigada a cooperar com nada disso.

Ela lutou para colocá-las para fora.

Me deixe em paz.

Seus olhos fecharam-se, e ela tentou-se concentrar, para fazer com que saíssem. Mas elas percorriam o caminho de sua garganta e morriam à beira de seus lábios.

Me deixe em paz.

Ela sentia-se deslizar para um poço de escuridão muito familiar. Algo a puxava para baixo. Era o medo, aquele monstro com dentes e garras gélidas que ameaçava arrastá-la para de volta ao poço. Seus dedos estenderam-se, e ela começou a lutar para escalá-lo.

Me deixe...!

— Eu... — do lado de fora de sua própria prisão, ela engasgou, uma vez mais.

— Minha filha, — ele reiterou. Agora estava de frente a ela, e seu tom de voz reduzira a quase um murmúrio. Ela adentrava pelos ouvidos de Khaleesi, deslizava por suas têmporas e alcançavam seu coração, deixando-o do tamanho de uma ervilha. — Você não está sendo uma má garota, está? Não diga a seu pai que ele terá de ensiná-la novamente uma lição sobre...

Nesse momento, o som da porta sendo escancarada casualmente foi ouvido. Khaleesi abriu os olhos, aturdida. O Duque voltou-se de imediato para a direção da entrada do cômodo. Ali, parado, estava Aiden. O rosto do pai de Khaleesi transformou-se de imediato ao vê-lo. Rapidamente sua expressão se tornou obsequiosa e exuberante mais uma vez.

— Barclay! — ele exclamou, pairando na direção do marido de Khaleesi com a mão já estendida em cumprimento caloroso: — Finalmente posso conhecê-lo pessoalmente! Você é bem mais formidável que as descrições davam a entender. É um prazer poder vê-lo frente a frente.

— Alguém mencionou algo sobre dar lições? — Aiden saiu do vão entre a porta e sua moldura, pondo os dois pés para dentro da sala.

O Duque Augustenborg riu com vontade.

— Apenas uma piada. Quem não conhece minha relação com minha filha certamente pode interpretar errado. — após isto, o dinarmaquês envolveu os braços ao redor da filha.

Khaleesi ficou imediatamente rígida como uma vara. A confusão anterior se dissipava gradativamente, e em seu lugar uma enorme frustração desabrochava.

Aiden voltou seus olhos para ela. Ele carregava aquela mesma expressão vaga, lânguida de sempre, mas parecia estar examinando-a. Se acreditou nas palavras de seu sogro ou não, Khaleesi não soube dizer. Mas ele aproximou-se alguns passos a mais, até estar de frente a dupla.

—  Ah. — murmurou, suavemente. — Sou frequentemente acusado de ausência de senso de humor e agora compreendo que não é sem razão. Acreditei que estivesse falando sério, Augustenborg.

Desta vez, o sorriso que o pai de Khaleesi ofereceu-o foi ligeiramente vacilante. Não que ele estivesse intimidado. Parecia, por sua vez, que estava consternado. Não havia nada no mundo que o Duque Augustenborg detestasse mais que ser abertamente desafiado.

E o marido de Khaleesi não terminara ainda.

— Também sou conhecido como estraga-prazeres, — Aiden continuou. —  mesmo de brincadeira, simplesmente não posso aceitar que... Hã, dê uma lição em minha esposa.

— Ora, me anteciparam de que você seria um sujeito sério, mas realmente não esperava algo nesse nível. — o duque dinamarquês deu outra gargalhada. — Ah, mas já que está aqui, talvez deseje ir comigo a meu escritório afim de discutirmos os acordos nupciais, visto que não tivemos a oportunidade de fazê-lo antes? Venha comigo, tenho um bom conhaque que estou certo que apreciará.

Aiden relanceou um outro breve olhar para Khaleesi antes de dizer:

— Agradeço, mas evito consumir álcool enquanto o sol ainda está a tino. — disse, austeramente. — Podemos sim, no entanto, resolver nossos assuntos pendentes. Só peço encarecidamento que não mencione estes assuntos à frente de minha esposa. Não é o tipo de coisa que damas devem ouvir.

Khaleesi olhou o marido detidamente, e notou que ele estava fazendo de propósito. Ele era particularmente talentoso naquilo; naquele olhar, naquele gesto, naquela postura que silenciosamente recordava ao outro indivíduo de sua superioridade. Aquele era um traço que ela odiava nele; aquela certeza inerente que ele detinha de que nenhuma outra criatura estava acima de sua dignidade ducal.  Mas, naquele instante, ela o adorou por estar fazendo com que seu pai provasse um pouco de seu próprio veneno.

O Duque Augustenborg poderia ter o mesmo título que seu marido, mas ali, na Inglaterra, aquele título não passava de uma cortesia. Aiden tinha sangue inglês nas veias, um sangue que era azul até a última gota. E embora fosse exasperante... Pareceu a Khaleesi que seu pai julgou que não seria interessante criar desavenças com o homem que lhe serviria de passagem para conquistar o que almejava.

Foi provavelmente por este motivo que ele manteve o tom brando, embora o sorriso tivesse desaparecido de seu rosto, ao dizer:

— Ah, você segue me surpreendendo, Gillingham. Não esperava de você tamanha sensibilidade.

Então, a coisa mais espantosa aconteceu: o marido de Khaleesi, sempre tão sisudo, sorriu. Ah, não foi bem um sorriso. Foi mais um esgar de lábios, mais sinistro que bem humorado. A dinamarquesa pensou se esta seria a expressão que ele costumava a oferecer a seus subordinados, quando eles tinham a ousadia de questionar a ele ou a alguma de suas palavras.

Se sim, decidiu que compadecia-se deles, quem quer que tivessem sido.

— Sensibilidade, hein? Engraçado. — seu marido disse. — Talvez eu esteja começando a compreender seu humor, Augustenborg. De todo modo, pode ir à frente, se desejar. Antes de ir, preciso dar uma palavra com Lady Aiden Gillingham.

O pai de Khaleesi partiu... Embora não antes de relanceá-la um segundo olhar.

Assim que ele se foi, o Comandante fechou a porta e voltou-se para a esposa.

Khaleesi o encarou. Ainda sentia-se um tanto trêmula – suas pernas pareciam ser feitas de geleia. Mas no lugar do terror que a tinha congelado, agora começava a tremer um sentimento diferente... Ela caminhou apressada na direção do marido, as mãos estendidas.

Surpreso, ele as segurou.

— Ah! — Khal exclamou. — Que bom que você apareceu! Não perderia o que aconteceu por nada. Foi impagável! O senhor foi impagável!

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Admito, que embora inesperado, foi um tanto divertido.

— Obrigada. — Khaleesi disse, com intensidade, apertando as mãos dele, e sorriu. — Muito obrigada. Por vir para cá. Por tudo. Nunca saberá o quanto lhe sou grata.

Ela estava praticamente saltitando. Levantou o rosto para o marido, com que objetivo, nem ela saberia depois, e o Comandante se inclinou na direção dela por reflexo. Então, de algum modo, as bocas das dois se encontraram e se colaram por alguns segundos, antes que eles se afastassem num pulo e soltassem as mãos um do outro como se estivessem escaldados.

Que diabo! Com certeza aquele era um dos momentos mais embaraçosos da vida de Khaleesi. E tornou-se ainda mais embaraçoso pois, após se afastar, ela permaneceu ali parada, encarando-o, os olhos arregalados, calor espalhando-se pelo rosto, e o próprio Comandante não pareceu conseguir pensar em nada melhor a fazer além de cruzar as mãos nas costas e pigarrear.

— Peço que me perdoe...

— Eu acho que devíamos....

Os dois falaram ao mesmo tempo, como se fossem um maldito coro grego. Que os deuses a ajudassem!

Acabara de beijar o marido. Ou ele a beijara. Não importava.

— Peço que me perdoe. — repetiu Aiden. — Irei atrás de seu pai para resolver meus assuntos com ele.

— Sim, é claro. — Khaleesi concordou, efusivamente, meio desesperada para que ele partisse e ela tivesse espaço para se recuperar sozinha do imenso constrangimento que dominava. — Eu... Hã...

Neste instante, como uma benção enviada, um leve toque ouviu-se na porta de entrada da sala de música. Após um instante, a mãe de Khaleesi pôs a cabeça para dentro, sorrindo na direção deles:

— Ah, querida! Aí está você. — ela exclamou, alheia ao que acabara de ocorrer. — Estive a esperando para o chá. Pedi que fizessem seus bolinhos prediletos. Atrapalho algo?

— Não, mamãe. — Khal apressou-se em dizer. — É, eu estava prestes a dizer ao Comandante que tinhamos um chá marcado agora e...

— Não quer vir conosco, Vossa Graça?

— Não! — Khaleesi quase gritou. Não podia ficar perto dele naquele momento. Riu nervosamente. — Quero dizer, o Comandante, ele não pode, ele...

— Eu tenho algo a ser conversado com seu marido, milady. — Aiden saiu-se com mais desenvoltura que ela. — Mas agradeço a gentileza do convite.

Assim, eles seguiram caminhos separados.

Mais tarde, após o chá com sua mãe, Khaleesi acabou conseguindo acalmar-se. Ela compareceu ao jantar e sentou-se ao lado do marido, embora não tivesse relanceado nem se quer um olhar na direção dele. Seu pai não voltou a encontrá-la sozinha. Quem estivesse de fora quase acreditaria que eles de fato eram a família alegre e unida que aparentavam ser.

Mas a sensação de tranquilidade durou pouco.

Pois após o jantar, a chuva começou.

Quando, após o jantar, Aiden entrou nos aposentos que dividia com a esposa naquela noite, estacou de repente.

Deus do céu!

Ele encontrou Khaleesi agachada no chão, perto da poltrona na qual ela sentara na noite anterior para ler enquanto ele a observava. Os braços dela cobriam a própria cabeça protetoramente e, mesmo de longe, ele pôde notar que ela tremia. Seus ombros se chacoalhavam em espasmos incontroláveis, e suas mãos tapavam os próprios ouvidos.

Aiden não fez nada além de fita-la, inexpressivo, por alguns instantes, testemunhando o desespero da esposa sem compreendê-lo. Ela estava chorando? Quase não falara com ela depois da cena com o duque Augustenborg, apesar de ter mantido os olhos sobre o duque depois daquilo, impedindo que ele chegasse perto demais. Durante todo este processo, apesar de tudo, ele quisera estar perto dela.

Decidiu que era pela necessidade de mantê-la afastada do pai, depois do que vira. Ele não compreendera de todo o que tinha presenciado, mas visualizara o suficiente para compreender que claramente não havia um bom histórico entre o duque e sua filha. Além disso notou que, ao menos em parte, sua inclinação a permanecer por perto era porque desejava estar por perto... Como fizera quando interceptara a situação entre ela e o pai, e talvez, ah, embora relutasse em admitir, só talvez, para beijá-la uma outra vez.

Oh, aquilo não fora um beijo. Não de fato. Mas o modo como desejava isso, o aconchego dos braços dela ao redor de seu pescoço e a presença dela enroscada em seu corpo, sensações que nunca experimentara, fora o que o mantivera distante pois, com toda franqueza, ele se sentia um pouco confuso e mais do que levemente alarmado com o próprio desejo. Decidira desde o primeiro dia em que a conhecera, na casa de Londres da família Augustenborg, que achava a esposa fisicamente atraente – qualquer homem com olhos consideraria. Mas ele não saía por aí beijando toda mulher atraente que conhecia.

Aiden não vivera os vinte oito anos de sua vida em castidade. Mas também nunca fizera o tipo mulherengo e nunca se dera indiscriminadamente às conquistas. Muitos anos antes, seu avô o puxara de lado e instaurara nele o temor a Deus e à sífilis. Muito embora ele já tivesse ido há alguns bórdeis com companheiros da cavalaria, nunca utilizara os serviços da casa. Era mais seguro – e em sua opinião, mais prazeroso – deitar-se com uma mulher que ele já conhecesse.

De modo que ele tivera sua cota de encontros breves com algumas viúvas, mas tudo sempre fora muito discreto, a maioria limitando-se a abraços quentes e, muito raramente, acabando na cama. A cama ele normalmente reservava para as amantes, que vez ou outra encontrava em atrizes e cantoras de ópera, afim de sanar a própria necessidade – e talvez, só talvez, uma pontada de solidão que despontava de tempos em tempos.

Mas fazia muito tempo que ele não tivera um enlaço cordial. Ou uma amante. E embora achasse sua esposa fisicamente atraente, todo o resto nela, inclusive alguns traços de sua personalidade, eram totalmente exasperantes. Ela não era nada parecida com a esposa sensata, disciplinada e impassível que desejara a princípio.

Foi como se aquele mínimo e acidental contato tivesse despertado algo adormecido nele. Se convenceu, com severidade, de que seu tempo de celibato era um dos principais motivos pelos quais sentia-se tão agitado. Isso e toda a turbulência causada pela morte de seu avô, então pela recepção de seu título, daí pelo casamento às pressas...

Logo eles se acomodariam na rotina do matrimônio que haviam negociado.

Ele tentara seguir a sugestão de Levi. A levara para passear em Londres, jantara com ela todos os dias... Passara tempo com ela. Estava tentando encontrar alguma forma daquele casamento funcionar e compreendia que, se desejasse chegar ao objetivo que tinham negociado a princípio, teria de fazer esforços nesse início. Esta estava sendo toda a razão do problema, supunha. Assim que tudo aquilo acabasse - quando ela tivesse o filho que ele precisava, cumprisse com seu objetivo e fosse levar o resto de sua vida o mais distante possível dele, o que ele supunha que era o que ela pretendia fazer, tudo voltaria ao normal.

Em breve, ele voltaria a se sentir como ele mesmo. No casamento, participaria do que fosse essencial: deitaria com ela até que ela pudesse conceber um filho, então participaria da criação da criança e da administração da casa – embora isso não fosse difícil, pois Khaleesi já demonstrara grande habilidade em cuidar da casa e ele, da propriedade. Não queria compartilhar nada de si. Ou dela. Não era parte do acordo e, de todo modo, seria um esforço inútil. Não havia nada dentro de Aiden que valesse a pena ser descoberto.

Ah, também levariam uma vida social em comum, naturalmente. Mesmo que decidisse viver longe, ela precisaria aparecer ao menos uma vez no ano ao seu lado, para manter a posição social de duquesa.

Merda.

Aquilo estava se revelando muito mais complexo do que esperara que fosse, a princípio. Odiava se sentir tão confuso. Quanto mais depressa superasse isso, melhor.

Mas então aquilo. A cena com a qual acabara de se deparar.

Tinha encontrado uma crise de proporções monumentais. Compreendeu isso logo nos primeiros segundos. Não era um assunto comum, com explicação simples. E aquela não era a mulher teimosa, inflexível e brava com quem se casara.

Que diabo!, pensou ele. Contudo, mesmo nesses primeiros instantes, ele soube que de nada serviria irritar-se com ela. Também não podia simplesmente virar-se e ir embora - ela provavelmente já o notara. Nem adiantaria permanecer ali parado como um idiota - isso não a faria parar. Ocorreu-lhe que não estava nem um pouco preparado para lidar com a histeria feminina. A única mulher com quem convivera por tanto tempo, e tão intimamente, fora Morgan, e sua irmã poderia ser muita coisa, mas histérica não era uma delas.

O problema era que não se tratava de uma mulher qualquer. Era sua esposa.

Era Khaleesi Gillingham, sua Duquesa.

Ele fora honesto quando falara a ela, numa de suas discussões passadas, que levava a sério o juramento que fizera na igreja, quando pusera aquela aliança em seu dedo. Era seu dever cumprir com aquele juramento. E Aiden nunca fugia de seus deveres.

Ela cobrira o rosto com as mãos, e ele pôde ouvir que emitia lamentos abafados enquanto tremia. Aiden se aproximou e se ajoelhou ao lado dela. Ela não estava chorando – mas seus olhos estavam arregalados, fixos no chão, e o corpo continuava tremendo intensamente.

— Khaleesi? — chamou.

Mas ela não parecia ouvi-lo. Aiden já vira alguém tremer daquele jeito antes. Já vira aquela expressão lívida. Ela estava fechada dentro de si mesma, desesperada para fugir de algo. Tinham havido momentos em que William ficara desse jeito, depois que recuperara sua audição. Ele costumava despertar, e era como se tivesse esquecido que era cego – então sua respiração falhava, seu corpo tremia, e ele ficava fora de si, aterrorizado demais para reagir a qualquer estímulo externo.

Quando Will entrava naquele estado, não havia nada que eles pudessem fazer por ele – além de garantirem que estavam ali, e lembra-lo de que ele era cego. Ele só era cego. Levi costumava abraça-lo nessas horas, como fizera quando ele tinha chegado surdo, além de cego, uma criatura perdida cheia de fúria incontrolável, preso dentro da própria cabeça. Às vezes passava horas assim, somente abraçando-o, garantindo-o, por meio de seu toque, que ele ficaria bem. Que ele estava bem.

Aiden, não. Aiden nunca fizera isso, embora sentisse a mesma necessidade latente de fazer algo, o que quer que fosse, por seu amigo. Aiden sempre ficara parado, ao fundo, observando. Só observando. Embora não porque queria.

Em certa ocasião, Levi o questionara o porquê disto. E a única coisa que Aiden lhe dissera fora:

— Eu não sei como segurá-lo.

Aiden sabia pouco sobre segurar pessoas e menos ainda sobre consolá-las. Não lembrava de ter visto muito disso antes de conhecer Levi.

Mesmo assim, estendeu o braço na direção de sua esposa. Ela parecia que iria se partir em milhões de pedaços se encostasse um dedo nela. Com o máximo de cuidado que pôde, colocou o braço ao redor dos ombros dela, lembrando-se como Levi costumava fazer com William.

— Ora, venha cá. — murmurou, quase num resmungo. — Isso não está funcionando.

Com a mão livre, ele agarrou uma das mãos dela – estava gelada, com os dedos rijos de terror. Relâmpagos cortavam a noite, iluminando o cômodo de tempos em tempos. Sempre que eles surgiam, ela encolhia-se ainda mais, como se fosse possível. Aiden achou que ela talvez estivesse tentando proteger os olhos ao manter o rosto virado em direção ao chão.

Pegou a mão fria dela e a pressionou contra o próprio peito, tentando aquecê-la. Era o que costumava fazer em campo, quando as temperaturas baixavam na Península. Já vira soldados perderem seus dedos pelo congelamento, sem qualquer fonte de calor além de seus próprios corpos para aquecerem-se. Os dedos dela retesaram-se levemente – uma pequena reação à seu toque, mas ainda uma reação. Aiden começou a murmurar sons em seu ouvido, esperando que eles soassem minimamente tranquilizadores, e continuou segurando seu ombro, tentando imitar o que vira Levi fazer - mas de um modo terrivelmente mais desajeitado.

Então aos poucos, quase devagar demais para ser percebido, começou a sentir os músculos dela relaxarem. A pele foi perdendo aquela sensação viscosa horrenda e a respiração, embora ainda permanecesse ofegante, começou a adquirir um ritmo mais regular. Por fim, quando sentiu que o pescoço de sua esposa não estava mais rígido, soltou sua mão para levantar seu queixo, fazendo-a encará-lo.

— Olhe para mim, Khaleesi. — disse, quase numa ordem. — Olhe para mim.

As pálpebras dela estremeceram sobre os olhos arregalados. Fizeram isso algumas vezes. Ela parecia querer abrir os olhos de novo, mas eles resistiam. Depois de alguns segundos a mais de agitação, Khaleesi conseguiu abri-los por completo e encará-lo. Dessa vez, estava claro que o enxergava.

Aiden suspirou.

Se os olhos eram de fato a janela da alma, como certo dia Morgan contara que lera num de seus livros idiotas, algo claramente se partira dentro de sua esposa. Ela parecia assombrada, perseguida e totalmente perdida.

— A tempestade — ela murmurou, numa voz quase inaudível.

— Ela a assustou? — Aiden perguntou.

Ela balançou a cabeça. Então fechou os olhos por um momento, como se deixa-los aberto exigisse mais energia do que ela dispunha no momento.

— Ainda está chovendo.

Aiden anuiu. De fato. O ribombar dos trovões cessara, mas ainda haviam pingos que tamborilavam nas janelas com ferocidade incansável. Sua esposa o encarou, o desespero ainda estampado em seus olhos:

— O som, eu... Não consigo... Eu...

Aiden afastou o braço dos ombros dela.

— A tempestade está passando. Fique em silêncio, por enquanto. Não precisa falar.

Ele pôde sentir o corpo dela estremecer e depois relaxar uma outra vez. Então a ouviu murmurar:

— Me diga algo.

— O quê?

— Me conte algo bom. Qualquer coisa. — ela pediu, sofregamente.

— O que posso lhe contar?

— Conte-me algo sobre você. Sobre sua família. Qualquer coisa. Algo bom.

Aiden refletiu por um momento, o cenho franzido. Dissera que ela podia ficar calada, se desejasse, mas ela estava pedindo que conversasse com ela. Que lhe contasse algo sobre si mesmo. Ou sobre sua família. Qualquer coisa. Algo bom.

Isso provavelmente significava que ela estava voltando à si novamente.

Oh, bem, se tagarelar baboseiras fosse preciso para manter aquele estado constante, que assim fosse.

— Quer que eu lhe conte da vez em que Morgan queimou o próprio vestido na lareira? — perguntou ele.

Sua esposa balançou a cabeça. Em seguida encolheu-se sofridamente quando o grito do vento lá fora aumentou, fazendo a chuva bater com força renovada nas janelas. Mas ela controlou-se e pediu:

— Conte-me algo sobre você.

— Muito bem, — Aiden murmurou, lentamente, desconfortável. Era fácil contar uma história sobre sua irmã, mas não tão fácil falar sobre si mesmo. O que poderia dizer que a ajudaria, de todo modo?

Pensou um pouco mais. Então, por fim, começou:

— Quando eu era menino, costumava subir nesse carvalho no jardim de Kenelston. Kenelston é a propriedade rural principal do Duque de Barclay. Minha mãe sempre ralhava comigo, pois a árvore era alta  e a queda, caso ocorresse, certamente me geraria alguns ossos quebrados. Até mais. — contou. — Por isso eu ia escondido. Meu pai me encobertava. Na verdade, foi ele quem me ensinou a escalar.

— Seu pai — Khaleesi ofegou. — Como ele era?

Aiden parou. Não costumava falar sobre o pai, principalmente porque lembrava-se de muito pouco dele. Fazia vinte anos desde sua morte, afinal. Mas o pouco que lembrava quase sempre fora bom – não havia uma memória de Aiden com o pai que não fosse repleta de calor, de riso...

E de doença.

— Ele foi uma criança doente — contou o que sua avó lhe contara, quando ele perguntara sobre o próprio pai, no funeral dele. — e se tornou um homem doente. Nunca teve o mesmo vigor que os outros homens tem, e sempre pegava qualquer febre que estivesse espreitando a vizinhança. Seu corpo era fraco, então ele não podia fazer grandes esforços, incluindo brincar com os filhos. Mas se esforçava ao máximo para passar tempo comigo e com Morgan sempre que podia.

— Sua mãe nunca falou dele. — Khaleesi murmurou. — Por isso perguntei.

— Mamãe não teve o melhor dos casamentos. — Aiden explicou. — Ela casou com meu pai pelo único motivo pelos quais aristocratas casam-se: título. Era filha de um Conde, vinha de uma família muito bem quista e abastada, tinha a melhor aparência e a melhor educação. Ou seja, era a personificação ideal de uma futura duquesa. Meu avô a escolheu a dedo e fez com que meu pai se casasse com ela.

— O que aconteceu?

Aiden voltou os olhos para a lareira, do outro lado do quarto.

— Você conhece mamãe. Ela é uma mulher bastante... Firme. — murmurou. — Seu espírito sempre foi duro, inflexível, e sempre houve esse orgulho natural... Isso era algo que meu avô gostava nela. Mas essas eram todas qualidades que faltavam em meu pai. De modo que ela o desprezava, pois ele era fraco. De corpo e de mente. Meu avô também o desprezava pelo mesmo motivo, e como ele era seu único filho...

Khaleesi anuiu muito levemente. 

— Esse desprezo voltou-se contra mim, em determinado momento. — Aiden concluiu. — Meu pai não podia destilar seu ódio no próprio pai, nem na própria esposa. Imagino que, na falta de alguém vulnerável a quem atingir, eu era a única opção que ele tinha.

— Mas você disse que ele era bom com você e com Morgan.

— Ele era sempre bom com Morgan. Nem sempre era comigo.

Khaleesi resfolegou, contrariada.

— Você não tinha nada haver com isso. Era apenas uma criança.

À isso, ele não deu resposta.

Um clarão de relâmpago iluminou o cômodo. Khaleesi mordeu o lábio inferior, esforçando-se para respirar devagar e calmamente. A biblioteca estremeceu com o ribombar do trovão mas, desta vez, ela conseguiu manter os olhos abertos.

Um longo e trêmulo suspiro escapou dos lábios dela.

— É o ataque. — sussurrou. — Tudo culpa do ataque. 1807*. Copenhague.

Aiden franziu o cenho.

— Estou bem. — ela acenou, embora ele não tivesse perguntado nada. — Acho que estou.

— É melhor ir para a cama. Você precisa dormir.

Aiden levantou-se, lentamente, e ajudou-a a fazer o mesmo. Ela ainda parecia muito pequena e frágil, encolhida dentro da própria camisola. Levou-a para fora da sala de convivência, passando pelo quarto de vestir até o quarto dela. A direcionou até a cama, então afastou os lençóis e assistiu enquanto ela subia, encolhendo-se debaixo dos cobertores, com somente os ombros e a cabeça de fora. O cabelo negro espalhava-se pelo travesseiro, desalinhado.

Ele podia sentir o perfume de cabelo recém-lavado de onde estava.

— Durma. — Aiden ordenou, antes de se virar para partir. Ele mesmo estava precisando disso. Precisava se trocar, entrar dentro do roupão de dormir e se arrastar de volta para a própria cama, se desejasse enfrentar o dia seguinte. Depois de um dia daqueles, precisaria de mais de uma noite de bom sono para se recuperar.

Copenhague. 1807.

Aiden estivera lá.

Então sua esposa presenciara aquilo?

— Aiden.

Quando ele já chegara na porta do quarto de vestir, parou, embora não soubesse o porquê. Poderia simplesmente ter seguido seu caminho. Já fizera demais por uma noite. Mas parou. Talvez porque ela tivesse dito seu nome. Pela primeira vez, ela o chamara pelo nome.

— Sim? — indagou, virando-se na direção da esposa.

Ela pareceu relutante por um momento, até um tanto constrangida... Seus lábios abriram. Fecharam. Ela fez isso mais algumas vezes, até Aiden disparar, impacientemente:

— E então?

— A tempestade, ela...

Pode voltar, Aiden completou a frase na própria mente. E então compreendeu o que sua esposa estava pedindo - ou o que tentava se forçar a pedir. É claro que ela não o faria em voz alta. Ela nunca admitiria demonstrar fragilidade de tal modo. A mulher que arranjara para si era muita coisa, mas Aiden jamais iludiria-se em crer que era fraca. E definitivamente não era de sua natrueza demonstrar fraqueza diante de outros.

Ele notara isso pois ela mantivera uma postura impecável durante todo aquele tempo. Qualquer outra mulher, ao ser forçada a encarar um destino que não lhe apetecia, talvez tivesse despedaçado-se em lágrimas, ou em fúria, mas sua esposa permanecera equilibrada e perfeitamente... Estoica. Sempre. Mesmo quando aborrecera-se ou perdera parte de seu controle, ela nunca demonstrara vulnerabilidade de nenhuma maneira. 

Arranjou uma mulher de garras afiadas, Aiden, fora o que sua mãe dissera a ele quando as tinham apresentado.

Sim, mamãe, ele anuira.

E maldito fosse ele por isso.

Soltou um suspiro. Depois de se prestar aquele papel de apoiador, de consolador, ele sentia-se exausto. E não estava em seus planos continuar com sua esposa, principalmente naquele estado sensível que ela estava.

E considerando os estranhos impulsos que andava tendo perto dela.

Mas diabos, ela era sua esposa.

— É claro. — respondeu.

Então chegou perto, contornando a cama para o lado oposto onde ela estava. Sua esposa o observou ansiosamente... Como se vigiasse cada gesto seu. Se não estivesse tão contrariado, talvez ele tivesse achado isso engraçado.

— Talvez queira se virar. — sugeriu.

Ela pareceu confusa, por um momento. Aiden inspirou lentamente.

— Se você for para debaixo das cobertas, madame — disse. — e fingir cair em um sono imediato para poupar seu pudor, talvez eu possa me livrar de algumas dessas roupas e subir na cama. Não pretendo dormir vestido para jantar.

Ela se afastou, indo para tão perto da beirada da cama que foi um milagre não ter caído dali, pegou o cobertor e cobriu a própria cabeça. Então começou a roncar baixinho.

Aiden balançou a cabeça e tirou o paletó e a camisa, optando por manter as calças. Era a decisão mais prudente, decerto.

— O problema é — ela começou, quando ele estava subindo na cama.

— Silêncio. — Aiden disse, e ela começou a roncar baixinho novamente.

Ele deitou tão na borda da cama quanto possível.

Seria a piada do clube dos oficiais, pensou, se um dia fosse imprudente o suficiente para contar sobre os feitos daquela noite. Cheio de pudores para deitar na cama da sua esposa, pelo amor de Deus.

Não que ele algum dia voltaria a estar em qualquer clube de oficiais. Deitado, Aiden olhou para o contorno pálido da janela da sacada. Ele nunca mais estaria em qualquer clube de oficiais.

O exército não aceitava de volta desertores.


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Notas finais do capítulo

*Embora seja uma história de ficção, com personagens ficcionais, o fato relatado neste capítulo, assim como muitos outros fatos e localidades mencionados, quanto ao ano de 1807 e a relação política entre a Inglaterra e a Dinamarca neste período é verídico. A Inglaterra de fato fez um ataque a Dinamarca, que até então estivera neutra em sentido político durante o conflito contra Napoleão Bonaparte. Este ataque ficou conhecido como A Segunda Batalha de Copenhague. Se desejarem pesquisar um pouco mais sobre este ocorrido, talvez sirva de enriquecimento sobre este contexto. Caso não, espero que esta nova tenha servido de esclarecimento.



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