1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 17
Capítulo XV


Notas iniciais do capítulo

Oieee meninas, como vão?
Chegando com mais um capítulo para vocês!
Esse capítulo em particular vai ser um daqueles capítulos em que contamos somente com a narração de uma das meninas mas, em compensação, temos um insight importante no fim do capítulo em outro ponto vista até então inédito ( mas que vai trazer à tona algo muito importante sobre nosso Duque de Ferro ).
Originalmente, esse capítulo sairia com o formato original de duas narrações das meninas, mas até para que ele não tivesse 14k de palavras ( 10k ok, 14k é demais né HAHSUAHU ), decidi separar os POV's. And here we are.
Pretendo soltar algo no tumblr sobre esse capítulo nos próximos dias, então fiquem ligadinhas, hein. O tumblr, além de um complemento, também vai servir para lançar alguns conteúdos extras que contarão com algumas pistas sobre o que acontece na história - tanto quanto aos meninos tanto quanto às meninas.
Sem mais delongas, fiquem com o capítulo!



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Londres, 1812

 

Certa manhã, o Comandante convidou Khaleesi para um passeio.

Aconteceu no café da manhã. Após lavar seu rosto e trocar sua camisola por um dos vestidos novos que comprara junto à sogra na Bond Street, Khaleesi descera para o café, como era seu hábito. Esperava comer sozinha, como sempre fazia desde o dia que tinha se casado, mas fora surpreendida pela presença do comandante à mesa.

Ele não tinha dito nada além de um grunhido “bom dia”, antes de tomarem seu desjejum em completo e absoluto silêncio. No entanto, quando terminara e se pusera de pé, ao invés de partir pela porta da frente como fizera nos dias anteriores, ele levantara a cabeça e dissera:

— Andarei um pouco pela cidade hoje.

Khaleesi erguera os olhos do próprio prato, um tanto surpresa. Sem muita ideia do que responderia àquilo, ela limitou-se apenas a anuir.

Meio segundo de silêncio depois, sem tirar os olhos dela, o Comandante emendara:

— Pensei que gostaria de ir junto.

Khal o encarara por um instante, como se esperasse que ele mudasse de ideia no instante seguinte... Mas, se de fato ele se arrependeu do convite feito de forma impulsiva, não voltou atrás com ele.

De qualquer modo, isso não estava no planejamento dela. Desde aquela noite na sala de estar dos aposentos dourados, o Comandante não quebrara sua promessa, e eles tinham jantado juntos todas as noites, e conversado um pouco que fosse durante esses jantares. Não voltara a acontecer o mesmo que acontecera na sala de estar; ele não tinha voltado a falar tanto sobre si mesmo, nem com tão abertamente, mas de qualquer forma, Khaleesi considerou aquilo uma pequena vitória a ser comemorada.

Ela só não tinha calculado aquele convite por parte dele. Mas julgou que seria grosseiro negar, além de que, embora inesperado, o pedido podia acabar se revelando como uma oportunidade... De passar um tempo a mais com seu marido, e de sair daquela casa que estava mais se assemelhando a uma prisão. Uma prisão muito bonita, mas ainda uma prisão.

Não que ela não pudesse sair. Ninguém se jogaria na frente da porta se ela tentasse passar por ela...

Quer dizer, ela achava que não.

Mas para onde ela poderia ir? Nunca tinha visitado a capital inglesa, não antes de ir até lá com o intuito de casar com o Comandante. Não conhecia ninguém nem nada na cidade. O convite do Comandante era uma oportunidade de mudar isso.

Por isso, ela acabou dizendo:

— Sim. Seria muito agradável, caso não vá ser um incômodo. Adoraria ver a torre do Palácio de Saint James e também o Hyde Park e qualquer outro lugar que me recomendar.

— O clima está ideal para um passeio. —  o Comandante concordara, meio brusco.

Então, meia hora depois, os dois partiram. Khaleesi ficou surpresa ao se pegar esperando ansiosa pela saída, apesar de não ter esperado nada daquilo. O Comandante contratara uma carruagem menor e aberta, ao invés de optar pela carruagem fechada e condecorada com o brasão ducal que geralmente usava. Talvez tivesse a intenção de passar o mais despercebido quanto possível.

Khaleesi não o culpava por isso. Ela vira no baile como as pessoas reagiam à sua presença. Deveria ser ótimo para o ego de alguém como o Comandante ser reverenciado daquela forma, mas ao mesmo tempo, devia também ser um tanto irritante.

— Nunca andei nesse tipo de carruagem. — Khal admitiu. — Parece assustadoramente frágil e longe do chão.

— Está com medo? — perguntou ele, subindo.

Na verdade ela não estava com medo, estava empolgada.

Eles poderiam ver muito mais da cidade ali de cima e recbeeriam o ar morno do verão. Khaleesi mudara a roupa e agora usava um vestido creme de musselina com a cintura alta. Para ela o vestido já teria sido o suficiente, mas Agatha a fizera pegar uma casquete com a aba de um dourado fosco e, um minuto antes dela sair, ainda amarrara uma faixa de mesma cor sob seus seios.

—  Acredito que seja bom com as rédeas.

Aiden ergueu as sobrancelhas e deu à volta na carruagem aberta para ocupar o lugar ao lado dela.

Khaleesi não entendia por que se sentia tão estranhamente alegre. Não devia sentir-se assim ao se lembrar do que acontecera na última vez que tinham conversado, o modo como o Comandante se fechara depois e não voltara a se abrir de novo. Mas, naquele momento, ela estava em Londres e pela primeira vez tinha a chance de aproveitá-la como queria.

Quem poderia dizer quando teria essa oportunidade de novo? Estar com alguém que conhecia a cidade era uma experiência totalmente diferente de tentar se encontrar naquela vastidão de casas e carruagens. Mesmo que esse alguém fosse o Comandante. Ela poderia aproveitar bem o dia, e era isso o que pretendia fazer.

— Que tal irmos à Catedral de Saint Paul primeiro? — sugeriu o Duque. — É minha catedral favorita em Londres.

— Tudo é novidade para mim. —  respondeu Khal. — Estou em suas mãos.

Ele a olhou detidamente antes de fazer com que os cavalos começassem a andar.

— Essa cor lhe cai bem. —  disse, pegando-a desprevenida.

O Comandante era bom com as rédeas, Khaleesi percebeu com certa admiração enquanto seguiam pelas ruas de Londres, mesmo o veículo e os cavalos não lhe sendo familiares. Não era motivo de surpresa, na verdade. Morgan tinha dito a ela que ele fora um oficial da cavalaria. Também era um homem grande e forte.

Khaleesi não conseguiu evitar que seu corpo roçasse no dele em certos momentos, embora procurasse segurar firme na lateral da carruagem. Ele tinha cheiro de couro e almíscar.

Ela não ficou surpresa por a Catedral de Saint Paul ser a igreja favorita do Comandante. Khaleesi na verdade não era católica; nem nada se quer perto disso. Sua família não a criara no cristianismo, pois era adepta às crenças mais antigas de sua terra, aquelas que os católicos definiam como o mais absoluto e herege paganismo. E, embora Khal não se inclinasse muito para tais crenças, também não se inclinava ao cristianismo de forma nenhuma.

De todo modo, a igreja era imensa e belíssima, ela foi forçada a admitir. À medida que se aproximavam, ela quase perdeu o fôlego ao avistá-la. Nunca vira nada que se comparasse ao esplendor daquela grande abóbada.

O Comandante talvez tenha notado a expressão de reverência em seus olhos, pois disse:

— Gosta do pórtico com pilares? —  perguntou, apontando com o chicote. — Pensei em fazer algo do tipo em uma propriedade do interior... Talvez com mármore? Pensei em mármore negro, mas talvez isso soasse pretensioso demais para minha mãe, depois de seu baile de apresentação.

Khaleesi virou-se na direção dele, surpresa. A expressão do Comandante era solene como sempre. Mas a intenção dele logo ficou clara. O homem realmente tinha algum senso de humor, em algum lugar.

Ela riu.

— Ah, certamente. — respondeu. — E eu jamais poderia causar tamanho desgosto em mamãe.

Aiden a olhou de esguelha, sem se quer uma sugestão de sorriso suavizando as feições duras. Teria cometido um erro?, perguntou-se Khaleesi. Não, ela não acreditava nisso.

—  Vamos entrar? —  sugeriu o Comandante. E apontou para cima. —  É possível subir até a galeria mais alta para examinar a abóbada de perto, tanto de dentro quanto de fora. Mas devo avisá-la que, se não me falha a memória, são 534 degraus e apenas os primeiros 240 são fáceis de subir.

— Ah, vamos subir de qualquer modo. —  falou Khaleesi, animada.— A vista lá de cima deve ser incrível!

E era mesmo.

Mas depois deles subirem até a galeria externa que circundava a base da abóbada, ela levou vários minutos até ficar em condições de apreciar a paisagem. Estava completamente sem fôlego e um tanto extasiada. A dificuldade e a escuridão na maior parte da subida a tinham intimidado um pouco, porém ela se recusara a parar no meio do caminho. E não se arrependeu:

—  Oh, céus! —  exclamou, ainda meio ofegante. —  É possível ver milhas além.

O Comandante concordou. Dali de cima, ela era capaz de ver a vastidão da cidade - o teto das casas de Mayfair, até os prédios de Bloomsbury e além, muito além. As carruagens pareciam formigas, as pessoas pequenos grãos de poeira deslizando pelos caminhos demarcados das ruas e ruelas.

Eles deram a volta na galeria, e Aiden apontou para vários lugares importantes da cidade. Ele se posicionou logo atrás dela, para que Khaleesi pudesse ver exatamente aonde seu braço apontava. O famoso rio Tâmisa estava logo abaixo. O Comandante identificou e nomeou todas as pontes que o cruzavam. Todos os barcos e navios em suas águas, representando o agitado comércio de uma nação, pareciam feitos de brinquedo.

Khaleesi pensou como deveria ser a sensação de mergulhar nele.

Ele ainda a mostrou a Torre de Londres, a Abadia de Westminster, onde o príncipe regente fora coroado, e várias outras igrejas, com seus pináculos elegantes apequenados pela altura da Catedral de Saint Paul. Mais adiante, em ambas as margens do rio, Khal pôde ver campo aberto. O vento, que no chão mal passava de uma brisa, era uma ventania forte ali em cima, vindo da direção do rio. O Comandante levantou o braço livre para prender o chapéu com mais firmeza à cabeça.

— Faz muito tempo que não me sentia animada assim — confessou Khal, e percebeu que dissera a mais pura verdade.

Desde que tinham partido da Dinamarca, ela nunca tinha experimentado uma alegria tão genuína quanto a que sentia naquele momento. Lá, ela era livre. Ela podia correr por aí, com os próprios pés ou seu cavalo, e podia fugir para os braços de Erik quando o peso do mundo parecia prestes a esmagá-la. Ou então, quando Erik não era uma opção, ela sempre podia ir até um lago.

Ela ainda não tinha encontrado um refúgio na Inglaterra, mas trataria de encontrar. Talvez fosse esperado que esse papel fosse prestado pelo homem com quem tinha casado, mas mesmo sem poder contar com ele, ela daria um jeito.

 Ah, sim, ela conseguiria. Faria uma vida para si mesma naquele lugar, e seria feliz, apesar de tudo. Feliz de verdade. Com nada nem ninguém controlando-a. Livre para viver por si mesma, pela primeira vez.

Aquele homem alto a seu lado era seu marido fazia pouco mais de duas semanas. Por poucos instantes, ela se permitiu imaginar como estaria se sentindo naquele momento se aquele fosse um casamento de verdade, se eles houvessem se unido por qualquer uma das razões mais usuais - desejo, por exemplo.

Ela sentiu um arrepio inexplicável percorrer seu corpo.

— Tanto tempo assim? — ele a encarou. — Sua vida foi muito quieta, então?

Khaleesi se surpreendeu pela tentativa dele de puxar assunto. Até então, ela parecera a única pessoa disposta a tentar. Mas aquele estava sendo um dia cheio de surpresas, pensou.

— Desde que cheguei a Inglaterra? Quase parada. — falou, um tanto melancólica. — A propriedade principal de meu pai fica no interior... Raramente vínhamos à Cidade.

— Por causa da agitação?

Por causa das pessoas. Não eram muitos os ingleses dispostos a apreciar o pai de Khaleesi ou a presença dele em seu sagrado país. Eles o enxergavam como um forasteiro quando, na verdade, ele só fizera o necessário para manter a si mesmo e a própria casa viva. Ou era o que sua mãe disse a ela e a Kishan, quando foram forçados a partir. A própria Khaleesi preferiria ter permanecido na Dinamarca, mesmo que isso significasse estar contra a Inglaterra e seus aliados, mas sua mãe dissera que seu pai só tentara fazer o que julgara o melhor para eles.

Mas ela não queria dividir este tipo de coisa com o Comandante.

Ele provavelmente já sabia de tudo, pois colaborara com o pai no plano de casá-la, em sua sede insaciável por prestígio. Ela tinha quase esquecido, por um momento, que aquele homem a seu lado era também um Duque, e ela tinha aprendido que todos esses eram essencialmente iguais; ambiciosos, orgulhosos e egocêntricos.

Oh bem, talvez estivesse sendo um tanto injusta. O Comandante parecia ter sido tão forçado quanto ela àquele casamento. Mas ela não achava estar errada sobre o julgamento da personalidade dele.   

Mesmo assim, durante aquele tempo que passavam juntos, estava começando a notar que talvez estivesse um pouco errada, sim.

— Também. —  disse, por fim. — Os homens têm muita sorte. Têm muito mais liberdade do que nós, mulheres. Eu não podia colocar um pé fora de casa sem permissão.

— Temos? — Aiden fitou-a por um longo tempo, a expressão severa, antes de virar a cabeça sem fazer mais nenhum comentário e voltar a se concentrar na vista.

Khaleesi tinha certeza de que aquele era um dia de que se lembraria para sempre. Já que agora a situação era irrevogável, e ela provavelmente só se casaria aquela única vez, ela ficava feliz por estar tendo um pouco mais que a cerimônia simples de algumas semanas atrás para levar na memória. Tocou a aliança discretamente, através da luva, embora não precisasse realmente fazer isso.

Khal conseguia sentir a aliança no dedo, o símbolo de que agora estava ligada pelo resto da vida àquele homem, embora soubesse que um dia o deixaria para nunca mais vê-lo de novo. Ela se perguntou quanto tempo levaria até que não conseguisse mai se lembrar claramente da aparência dele. Virou a cabeça para olhar para o Comandante naquele momento, como se de algum modo fosse importante lembrar, memorizar o rosto duro e anguloso, o nariz proeminente, os lábios finos, os olhos claros e o cabelo escuro.

Ele a encarou de volta.

— Pronta para encarar os degraus? — perguntou.

Ela deu uma risada, sem graça.

— Acho que vou passar o resto do dia aqui. Talvez o resto da semana. Quem sabe o resto da minha vida.

— Gostou tanto assim daqui? — ele perguntou. — Segure-se em mim. Não vou deixá-la cair, palavra de honra. Preciso levá-la inteira até minha mãe e minha avó.

Gillingham ergueu a mão direita solenemente e estendeu a esquerda para ela. Mesmo usando luvas, Khaleesi achou muito íntimo segurar a mão dele - se agarrar a ela, na verdade - por um tempo tão longo.

O chá, é claro. Khaleesi quase se esquecera.

A Condessa tinha a convidado para tomar chá com ela, Morgan e com a recém-chegada Duquesa Viúva, a mãe de seu falecido sogro e a avó do Comandante e de Morgan. Khaleesi não estava particularmente animada para o arranjo. Não conhecia a Duquesa Viúva, mas conhecia muito bem a própria sogra, e a família Gillingham, de modo que já tinha uma noção do que esperar daquele encontro. Se a Condessa era do jeito que era, a Duquesa Viúva, então...

Talvez ela fosse precisar de algo mais forte que chá se quisesse sobreviver a ele. Conhaque parecia uma boa opção.

— Ainda temos uma hora antes de eu precisar deixá-la na Mansão da Viúva. — comentou o Comandante, quando tinham chegado ao fim da escadaria. — Ainda podemos fazer algo. Na Torre de Londres há um jardim zoólogico que talvez você aprecie. Ou podemos tomar sorvete.

Tão logo tinham chegado ao fim das escadas, seu marido tinha largado a mão dela, aparentemente incomodado com o toque. Ela já notara isso antes. O modo como ele era um tanto averso ao toque das pessoas; notara isso quando vira o Visconde Bedwyn abraçá-lo, e quando vira Morgan beijá-lo no rosto em seu casamento.

Ele não parecera confortável em nenhuma das situações embora, assim como acabara de acontecer, ele também não fora rude ou grosseiro.

— Não estou certa de que gostaria de ver animais enjaulados. — retrucou Khaleesi. — Iria querer libertar todos.

— Os cidadãos de Londres ficariam empolgados com a ideia de encontrar um leão ou um tigre a cada esquina. — ironizou ele. — Está sendo sentimental demais, madame.

Embora aquela tenha sido uma crítica, Khal riu.

— Sorvetes? — perguntou, só então dando conta da segunda opção oferecida a ela.

— Os estrangeiros os chamam gelatto. Ou algo semelhante. É uma invenção nova.

— Ah, creio que ouvi falar, mas nunca experimentei. Podemos?

Assim, seu marido a levou ao Gunter’s, onde Khaleesi experimentou o prazer indescritível de tomar o primeiro sorvete de sua vida.

Ela estava de barriga cheia e feliz no caminho até a Mansão da Viúva. Ela temera que eles fossem passar o dia quase em silêncio, constrangidos, ou mesmo irritados um com o outro. Mas não fora assim. O Comandante não era um homem falante nem muito menos simpático. Mas tinha a educação de um cavalheiro, e tinha, assim como ela, feito um esforço para garantir que a conversa fluísse.

Ela estava tão feliz que se sentia quase uma idiota. Que patético! Ficar contente daquele jeito só porque conseguira passar um tempo com o próprio marido, sem discutir ou querer sumir da presença dele, como andava acontecendo ultimamente.

Mas ela aceitou e decidiu comemorar aquela vitória, por menor que fosse. Decidiu que ela era mais que merecida. Talvez, afinal, a relação deles pudesse encontrar um caminho de melhora. Quem sabe até eles conseguissem achar um modo de se entederem, até de se gostarem um pouco, pelo menos o suficiente para viverem por mais algum tempo juntos.

Ah, qualquer Deus que esteja me ouvindo, católico ou nórdico, por favor, permita que isso aconteça. 

— Há alguma loja em que eu possa comprar presentes para as crianças? — perguntou Khal quando eles terminaram o sorvete.

— Crianças? — o Comandante ergueu as sobrancelhas, o que lhe deu um ar de arrogância.

— Para Jacob e Edith. — retrucou ela. — Nossos sobrinhos.

Ele a encarou demoradamente. Ela esperou que ele dissesse algo como “para os pirralhos?”. Mas o Comandante não fez isso. Ele apenas se levantou e afastou a cadeira de Khaleesi quando ela também se levantou.

— Oxford Street. — respondeu. — Lá vai encontrar muito em que gastar seu dinheiro.

Khal encontrou uma boneca de porcelana para Edith que se parecia muito com um bebê de verdade. O Comandante, que havia se afastado um pouco - entediado, certamente -, voltou com dois bastões de críquete, uma bola e metas.

— O garoto provavelmente vai gostar disso. — disse. — Se não tiver algo parecido.

Khal sorriu levemente.

— Obrigada. Não sabia o que escolher para Jacob.

— Todos os garotos gostam de críquete.

— É mesmo?

O Comandante teria gostado?, perguntou-se ela. Era difícil imaginá-lo menino, brincando, correndo, rindo, despreocupado.

Khal pagou pelas compras, que incluíram também lenços de renda para Morgan e para a Duquesa Viúva, e Aiden carregou os pacotes e os acomodou no piso da charrete, bem protegidos. Então ele estendeu a mão para Khaleesi uma última vez. Ela estava exausta. No entanto, quando finalmente a Casa da Viúva surgiu à vista e ficou óbvio que o passeio deles estava encerrado, ela se sentiu desapontada.

Tão cedo?, pensou. Sabia que a realidade logo voltaria, mas ainda não se sentia preparada para ela.

— Quer nos acompanhar? — chegou a convidar o marido.

— Obrigado, mas não. — ele respondeu, sem dar nenhuma desculpa para a recusa.

Assim, ela subiu sozinha até a sala de estar onde as mulheres estavam reunidas.

Quando ela entrou, se deparou com sua sogra, austera em seu vestido cor-de-lavanda, com Morgan e com um passarinho vestido de azul-real. Era isso que a duquesa parecia; um passarinho, encarquilhado, de cabelos brancos e finos, sentado à cabeceira da mesa.

— Khaleesi, — sua sogra disse. — apresento a você a senhora Elinor, a Duquesa de Barclay.

A idosa cheirava a água de rosas. Oh, como ela é uma coisinha minúscula. Nada havia na mulher que fosse minimamente altivo.

— Beije-me, filha — disse a senhora Elinor, puxando o pulso de Khaleesi com uma mão suave e manchada. — E ignore as baboseiras de Margareth, eu não sou nada além de uma velha com um título vencido. A Duquesa de Barclay aqui é você. Foi muita gentileza sua vir tomar chá comigo.

Obedientemente, Khal beijou a senhora no rosto. Abriu um pequeno sorriso.

— A gentileza foi sua, por me convidar, senhora.

— Me perdoe por não fazer uma reverência. Esses meus joelhos não são como antes.

Khaleesi garantiu que isso não era nenhum problema, e se sentou na cadeira restante, acenando para Morgan, que respondeu com outro aceno breve de cabeça.

— Você é muito bonita. — a Duquesa Viúva elogiou. — Morgan não exagerou. Nosso Aiden realmente ganhou em suas apostas, heh.

— Morgan sempre foi muito parcial em seus julgamentos — a Condessa murmurou, enquanto uma criada as servia.

— E você muito dura. — a Duquesa Viúva retrucou. — Filha, me diga, como está sendo sobreviver em meio aos Gillingham?

Khal olhou-a por um segundo. Quando não respondeu rápido o suficiente, a idosa acrescentou:

— Não precisa mentir, sim? Está de frente a uma sobrevivente. Assim como você, não sou uma Gillingham por nascimento, de modo que sei bem como essa família pode ser um pesadelo.

— Você exagera, mamãe. — a Condessa falou.

— Shiu, Margareth, deixe a menina falar. E não me chame de mamãe. Se tivesse dado você à luz, certamente me lembraria. Só podem me culpar por seu marido, meu querido Percy, que Deus o tenha.

Khaleesi ficou virando o rosto de um lado para o outro, tentando acompanhar o combate que acontecia diante de seus olhos. Morgan nem se esforçava. Provavelmente estava acostumada àquilo. Sentiu um pouco de pena da Condessa mas, ao mesmo tempo, sentiu uma enorme satisfação em ver alguém colocando-a no seu devido lugar.

Deu um gole no chá.

— Está indo tudo bem, senhora. — respondeu, por fim.

— Ah, está? — indagou a velha, cética. — E imagino que Aiden esteja sendo um príncipe encantado, acordando-a com um beijo e levando flores para você todas as manhãs?

— Mamãe! — exclamou a Condessa, francamente ultrajada.

Khaleesi não conseguiu segurar o riso diante daquilo. Foi um som um tanto sufocado, meio histérico e totalmente não intencional.

— Calada, Margareth. Todas as mulheres nessa sala já foram beijadas, e bem mais que isso, se Aiden fez o favor de prestar o serviço completo, então esse não é ambiente para falsos pudores. — a idosa voltou-se de novo para Khaleesi, e não faltava solidaridade em sua voz. — Como imaginei. Não se deixe abalar, querida. Não importa quão turbulento o caminho seja, quando persistimos, no final sempre recebemos nossa recompensa.

Khal refletiu naquelas palavras. Estaria mesmo a duquesa certa? Se ela continuasse persistindo, conseguiria o mesmo o que tanto desejava? O que tinha acontecido naquela manhã tinha sido a prova de que as coisas estavam começando a mudar. Poderia mesmo mudarem tanto assim?

Pela primeira vez, Khaleesi realmente acreditou nisso. Acreditou de verdade.

— Foi assim com a senhora e o falecido Duque? — perguntou.

— Ah, sim. — a idosa pareceu um tanto melancólica, de repente.

— Eu sinto muito por sua perda. — Khaleesi lembrou, de repente, que o único motivo pelo qual ela era agora Duquesa de Barclay era porque o antigo duque, avô de seu marido, marido daquele passarinho feroz e solidário, tinha morrido.

A viúva fitou a própria xícara, já vazia, e o prato ao lado.

— É a sensação mais estranha do mundo. — comentou ela. — Num momento a pessoa está ali, falando. No momento seguinte, o corpo permanece ali, mas a pessoa não está. E nunca mais voltará. Não há como chamá-la de volta. O que não foi dito antes de sua partida nunca será dito. O corpo  dele ficou no quarto por um tempo, veja bem. Parecia com ele e, ao mesmo tempo, não parecia. Meu marido não estava mais lá.

Khaleesi largou a própria xícara e segurou as mãos da idosa, se contendo para não dizer palavras vazias de consolo. Ela sabia muito bem de que nada serviriam.

A senhora virou a cabeça e sorriu para ela.

— Ora, que tristeza repentina se abateu nessa sala. Me desculpe, querida. Estou ficando cada dia mais velha, e cada dia menos sã. — riu, com uma voz grasnada de pássaro. — O que quero dizer é que tive sorte com meu arrogante, altivo e cabeça-dura Gillingham. Morgan também teve, apesar dos pesares, vê? James a adora. Então tudo fica bem quando acaba bem.

— Embora, no caso de Morgan, o risco de um fim indesejado tenha sido enorme. — a Condessa acrescentou.

O sorriso da Duquesa Viúva murchou diante de suas palavras. Khaleesi a encarou.

— Oh, então você não sabe a história? — a Condessa perguntou. — Morgan quase destruiu a própria vida por conta de uma paixonite tola. Sorte a dela que Aiden a impediu antes que cometesse o pior erro de sua vida.

Khaleesi voltou os olhos para a própria Morgan, mas ela achou mais interessante continuar encarando a própria xícara, a mesma expressão rígida, marmórea de sempre. Então Khal se voltou para a Duquesa Viúva. A idosa suspirou.

— Em seu primeiro début, Morgan se encantou do terceiro filho do Conde Beaumont. — ela contou. — Um rapaz muito inteligente e adorável.

— Mas não bom o suficiente para a neta de um duque. — apontou a Condessa. — Contudo, Morgan estava cega demais para ver isso. O terceiro filho a tinha deixado fora de si. Então ela foi até Aiden, pedir para ele a permissão para se casar com o sujeito...

Morgan, que se mantivera em silêncio até então, fez o favor de interromper a própria mãe:

— Eu era uma tola. — disse, e sua voz soou alta e clara. — Achei que se explicasse a Aiden, ele ficaria satisfeito com a ideia. Que a apoiaria. Uma semana mais tarde, ele me chamou à biblioteca e me informou que os proclamas de meu casamento com o filho mais velho de Beaumont sairiam no dia seguinte.

— Ah! — Khaleesi exclamou. — Que crueldade absurda!

— Crueldade? — Morgan repetiu. — Acho que não. Foi apenas o modo de Aiden dizer o que eu precisava lembrar; Que eu tinha um papel a cumprir. E ele estava absolutamente certo, entende?

— Mas você não amava James, — protestou Khaleesi. — amava o irmão dele. Por que não o recusou?

A postura de Morgan estava rígida como uma vara.

— Poderia ter feito isso. — concedeu ela. — Mas qual era a alternativa? Eu não poderia casar com Joshua. E eu sou uma Gillingham, acima de tudo. Não entendemos de muita coisa, mas entendemos o dever, Khaleesi. E um dos meus deveres na época era obedecer a vontade do chefe de minha família.

— Então você aceitou.

— Então eu aceitei.

De repente, tudo ficou muito claro para Khaleesi.

Uma irmã mais velha, que amava seu irmão mais novo, mas que fora separada dele pela vida, que fizera um ter poder sobre o outro. Por uma vez na vida, ela quisera seguir o próprio coração, mas seu irmão tornara isso impossível. E assim, uma distância irremediável se criara entre eles, destruindo - ou ao menos submergindo - o amor que poderia ter havido entre os dois e tornando um deles frio e outra severa, porém ambos obcecados pelo dever.

Naquele momento, ela sentiu uma raiva devastadora... De Aiden. De seu marido. Como ele pudera fazer isso com a própria irmã? Estava claro para Khaleesi que a família Gillingham era feita de pessoas para quem o prestígio significava muito, o orgulho era tudo, e o status o mais importante.

Mas como ele pudera? Como tivera a coragem? Como podia ter sido tão insensível, tão indiferente?

E ela, idiota, que começara a pensar que talvez ele pudesse ser mais que aquilo...

— Eu acho que a hora do chá chegou ao fim. — a Duquesa Viúva falou, quando o silêncio se tornou insuportável. — Anna, querida, por favor, recolha isso tudo. Talvez possamos ir para a biblioteca...

— Acho que minha hora chegou, senhora. — Khaleesi interrompeu. — Eu preciso voltar para casa, senão, provavelmente perderei a hora do jantar com o Comandante...

Não que ela estivesse ansiosa para jantar aquela noite. Provavelmente teria uma enxaqueca de mentira que a faria faltar a ele, ou então teria um bordado que não podia esperar para ser terminado, e pediria que sua janta fosse servida no próprio quarto.

— Eu a acompanho. — Morgan se dispôs. Khal estava pronta para recusar a oferta, mas ela acrescentou — Vim com minha própria carruagem. Posso muito bem deixá-la na Casa Barclay antes de ir até James e às crianças.

Ainda um pouco contrariada, Khaleesi se despediu de sua sogra com um aceno educado, e beijou o rosto enrugado da Duquesa Viúva:

— Muito obrigada pelo convite, senhora. Foi um prazer conhecê-la.

Ela sorriu-lhe gentilmente ao apertar suas mãos:

— Por favor, me chame de avó, filha. É a esposa de meu querido Aiden, logo, também é minha neta.

Khaleesi nunca tivera avós, não vivos, de todo modo. Aquela era uma sensação nova para ela. Diferente de quando a Condessa tinha pedido-lhe para que a chamasse de “mamãe”, Khal nem se quer relutou ao sorrir e dizer:

— Obrigada, vovó.

Quando subiu à bordo da carruagem dos Beaumont, Khal focou-se no cenário que passava pela janela. Até que se lembrou:

— Ah! Eu trouxe algo. Para as crianças. — ela esquecera de entregar os presentes na Casa da Viúva, mas tinha lembrado de trazer os pacotes nas mãos em sua saída. Estendeu-os para Morgan. — Um presente da tia Khaleesi.

Morgan pareceu surpresa, a princípio. Então pegou os pacotes, e fez algo que raramente fazia: Sorriu. Com todos os dentes.

 Morgan era uma mulher bonita, mas ficava estonteante quando sorria.

— Obrigada. Sei que eles vão adorar. — e ela parecia sincera. Então seu sorriso murchou, aos poucos. Ela hesitou por um momento, mas acabou dizendo: — O que você ouviu lá atrás... Eu não me arrependo de nada.

— Aquilo que você me disse no dia do meu casamento, — Khaleesi murmurou, ignorando suas palavras deliberadamente. — que o maior ato de rebeldia que eu podia proclamar, enquanto o chão debaixo dos meus pés estava cedendo, era permanecer de pé. Você disse aquilo porque precisou fazer o mesmo, não foi? Quando o Comandante a impediu de se casar com quem você amava?

Morgan não respondeu sua pergunta diretamente. Ao invés disso, falou:

— James é bom comigo, mesmo sabendo sobre Joshua. Qualquer outro homem nunca teria aceitado uma mulher nessas condições, e se aceitasse, nunca confiaria que ela ficasse perto do irmão. Ele sempre foi bom. E é um ótimo pai para nossos filhos.

Khal abriu um meio-sorriso triste para ela. Ela não duvidava que aquelas palavras fossem sinceras. Pelo pouco que conhecera de James, Khaleesi sabia que ele era um homem bom, e também deveria ser um bom marido. Mas...

— Você merece mais que alguém somente “bom”, Morgan. Todos merecemos. “Bom” pode parecer o suficiente, mas não é.

Ela virou-se para a janela, nesse momento, e não disse mais nada até chegarem às portas da Casa Barclay.

Khaleesi pensou que ela a deixaria ali e partiria, mas Morgan desceu junto quando a carruagem parou. Como se pressentindo o que acabara de acontecer, quando o mordomo abriu a porta para ambas, quem as esperava no saguão não era ninguém menos que Aiden.

— Khaleesi. — ele falou. Então ergueu as sobrancelhas. — Morgan. Vai jantar conosco hoje? Não lembro de tê-la convidado.

— Vim só vê-lo, Aiden. — Morgan aproximou-se e beijou o rosto do irmão mais novo, que se contraiu, embora ele não tenha se afastado. — Não precisa fazer essa cara, sabe que eu nunca venho para ficar sem avisar antes. Não é minha intenção matar a você ou ao seu mordomo com minha falta de educação.

Khaleesi disse, tão logo ela tinha terminado:

— Também não conte com minha presença, Comandante. Tenho um bordado não acabado que precisa ser urgentemente finalizado.

Aiden a olhou, por um momento. Mas não pareceu particularmente incomodado com a dispensa. Talvez estivesse até ansioso para se livrar do compromisso. Aquela era a primeira vez desde que o arranjo começara que o sentimento era recíproco.

Khal pensou então que ele se viraria e iria embora, mas ele pareceu lembrar de algo antes:

— Chegou uma carta. De seu irmão.

O coração de Khaleesi pulou uma batida. Kishan.

— Onde está? Preciso respondê-lo.

Mas o Comandante a ignorou, prosseguindo:

— Ele escreve convidando-nos para o interior... Para a casa de seu pai, o duque Augustenborg.

Khal recuou um passo. Quando escrevera a Kishan, sua intenção fora fazê-lo ir visitá-la, não o contrário. Ela não faria questão de se locomover mil milhas, se fosse para ver o irmão e a mãe. Na verdade, mil milhas ainda seriam uma prechinca a se pagar.

Mas ela não queria se encontrar com o pai. E seria quase impossível evitá-lo, se fosse até Kishan e Skade.

— Eu... — começou a dizer.

— Isso não estava em nossos planos. — o Comandante a interrompeu. — Haverá um jantar de Estado na Carlton House, a residência do príncipe regente. Foi-me enviado um convite, por parte do próprio príncipe, e não tenho a intenção de recusá-lo. De modo que é melhor que escreva uma recusa educada a seu irmão, e o informe que iremos vê-los numa outra oportunidade.

O sangue de Khaleesi ferveu diante daquelas palavras.

Não, fervido ele já estava antes, desde o momento em que tinha ouvido aquela história na Casa da Viúva. Agora, ele entrara em ebulição.

— Quem você pensa que é? — disparou, fuzilando-o com o olhar. — Quem pensa que é para me dar ordens desse jeito?

O Comandante ergueu ligeiramente as sobrancelhas diante da fúria em seu rosto. Mas só.

— Eu acho que sou, madame, — disse ele, com aquele maldito tom de voz controlado, inabalável. — seu marido. Se não me falha a memória, é isso que a aliança em seu dedo significa. Mas pode me corrigir, se eu estiver errado.

— Devo lembrá-lo, Comandante — rebateu Khaleesi. — que nos casamos por conveniência. Eu disse isso no baile, e repito outra vez: A questão de sua superioridade e de minha subserviência nunca foi levantada entre nós, pelo simples fato de que não sou sua esposa. Não de qualquer forma que realmente importe.

O maxilar do Comandante ficou rígido, e ele cerrou os próprios lábios.

— Você fez um juramento dentro de uma igreja, madame. E assinou um registro que deixava muito claro que sim, é minha esposa. Eu jurei dentro de uma igreja honrá-la, e cuidar das necessidades de minha esposa...

— Isso inclui a necessidade dela de ser tratada com respeito? — indagou Khal, num tom acusatório.

— Se continuar com isso — falou ele. — atrairemos a atenção de toda a casa. Se deseja uma briga, madame, ao menos façamos isso na privacidade de nosso quarto.

— Nosso quarto?! — Khaleesi cuspiu a palavra como se fosse veneno. — Quando você nem se quer teve a decência de naquela noite...!

Então, de repente, ela lembrou-se de Morgan, que estivera parada ali todo aquele tempo, assistindo aos dois. Percebeu que tinha gritado. Ela encarou a cunhada por um segundo, então virou-se de novo para o marido:

— Eu irei ver meu irmão, Comandante — falou, num tom mais baixo, mas não menos severo. — Eu irei vê-lo, porque meu irmão é tão precioso para mim quanto sua irmã é para o senhor. Talvez mais, já que eu o amo. E não deixarei de revê-lo porque o príncipe de Gales lhe pediu para comparecer a um maldito jantar. Nem que o próprio Papa o tivesse convidado, eu mudaria de ideia.

O Comandante a examinou com olhos que fariam pedras de gelo parecerem brasas. Parecia que via através dela, de seus pés à sua cabeça.

— Espero, madame — disse ele, por fim. — que seu desejo de fazer uma cena não a tenha atrasado para seu bordado.

Após suas palavras, Khaleesi se virou e partiu, tempestuosa, escadas acima.

Casa Barclay, pelos olhos da Condessa de Beaumont

Apesar do que tinha dito, no fim, Morgan ficou para jantar com seu irmão.

Eles tomaram a refeição em silêncio, só os dois e, quando o jantar acabou, Morgan preparou-se para partir de volta a própria casa. Ela cogitou a possibilidade de ir despedir-se de Khaleesi em seus aposentos, mas por fim decidiu que aquela talvez não fosse uma boa ideia. Sua cunhada certamente precisaria de um tempo a sós para se recompor.

E pensar que fora tudo culpa daquele chá da tarde. Sua mãe bem que podia aprender a manter o bico fechado.

Morgan permitiu que um suspiro escapasse de seus lábios. Pegou os pacotes das crianças e rumou em direção às portas de entrada da Casa Barclay. No entanto, no meio do caminho, notou que as portas da biblioteca haviam sido abertas.

Isso significava que Aiden a esperava.

Esse se tornara um hábito de seu irmão desde que ele crescera o suficiente para começar a tomar seu posto como chefe da família e futuro Duque de Barclay, no lugar do pai de ambos. Ele nunca fazia convocações. Ao invés disso, deixava as portas da biblioteca, seu escritório pessoal, abertas. Aquele era um convite, mas também era uma ordem não pronunciada que Morgan e todos ao redor dele tinham aprendido a escutar.

Aiden estava sentado diante da escrivaninha, os dedos acariciando a pena de uma caneta, embora não estivesse escrevendo.

Morgan sentiu uma estranha pontada de tristeza ao olhá-lo. Fora naquilo que seu irmão caçula se transformara - já não era o garoto travesso, inteligente e cheio de energia que ela se recordava, mas um aristocrata frio e solitário, com tanto poder que poderia exercê-lo com um mero levantar do dedo, ou o erguer de uma sobrancelha escura. Ou uma palavra dita em voz suave.

Por um momento, Morgan sentiu um aperto incomum no peito. Mas então tratou de afastá-lo.

— Imagino que vá perguntar de onde aquilo surgiu. — foi dizendo, enquanto entrava. — Não vou permitir que censure Khaleesi. Ela foi inflamada por mamãe, e toda aquela história com Joshua. Sabe como mamãe é dramática quando se trata dessa saga em particular. Por isso, não tem o direito de ser duro com ela. Ela vem sofrendo em silêncio todas as pequenas maneiras com que nossa família demonstra superioridade sobre a filha de um nobre estrangeiro. E vem trabalhado duro para se adequar a nós e a nova vida. Se repreendê-la, garanto a você que não ouvirá uma palavra minha por muito, muito tempo, e nem pense que...

Seu irmão não moveu um músculo, a não ser para continuar a acariciar a pena.

— Realmente não amo você? — perguntou ele, por fim, encarando a pena como se não houvesse escutado uma única palavra que a irmã dissera.

— Hein? — Morgan franziu o cenho.

— Ela disse que o irmão é tão precioso para ela quanto você é para mim — falou seu irmão caçula. — Talvez mais, porque ela o ama. Então não amo você, Morgan? — ele finalmente levantou os olhos, com uma expressão confusa no rosto que não lhe era nada comum. — Nem a minha mãe? Ou minha avó?

Se Aiden já havia duvidado de si mesmo em algum momento antes daquele, sem dúvida nunca demonstrara... Ao menos não depois dos oito anos de idade, quando o pai deles morrera.

— Eu amei você, — perguntou ele de novo. — ao insistir que permanecesse na sala de aula até fazer dezoito anos e depois fosse debutar em Londres, embora você não quisesse fazer isso? Amei você, ao insistir que se casasse com James Beaumont, ao invés de com o irmão mais novo dele? Amei vovó, quando a deixei sozinha após a morte de nosso avô? Amei mamãe, quando não permiti que ela usasse o título de Duquesa de Barclay nem por cortesia, mesmo sabendo o quanto significava para ela? O que é amor, afinal? Não consigo me lembrar como é esse sentimento. Não é algo que um homem em minha posição possa sentir.

Morgan sentiu-se desconfortável. Embora os dois tivessem sido muito próximos quando crianças, ela e seu irmão tinham se afastado muito desde então. Ela ainda o amava, pois ele era seu irmãozinho, seu caçula. Mas ela simplesmente não sabia mais como alcançá-lo, e não sentia que ele podia alcançá-la também.

Não mais.

— Acredito que você sempre faz o que considera melhor para nós. — falou, por fim. Infelizmente, nem sempre era o que os outros consideravam melhor para si mesmos. Amor? A própria Morgan não sabia muito sobre amor. Dever ela sabia reconhecer.

E Aiden sempre cumpria com seus deveres.

— Esperava que você fizesse um bom casamento — comentou seu irmão, mais dono de si de novo.

— Meu casamento não é ruim. — retrucou Morgan. Então lembrou do que Khaleesi dissera.

“Bom pode parecer o suficiente, mas não é”.

Ele anuiu.

Aquele gesto significava que a conversa tinha acabado e que era hora dela ir embora.

Quando Morgan subiu pela segunda vez na própria carruagem, ela continuou pensando no que acabara de acontecer. Era estranho que tivesse sido Khaleesi a achar uma brecha na armadura de Aiden e provocar aquele raro escorregão do irmão em demonstrar uma vulnerabilidade tão humana.

Então até mesmo Aiden às vezes tinha dúvida sobre a vida e as escolhas que fizera?


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