1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 16
Capítulo XIV


Notas iniciais do capítulo

Olá, minhas queridas!
Chego para vocês com mais um capítulo e, além dele, um pedido em particular.
Primeiro, gostaria de pedir desculpas pelo tamanho particular desse capítulo. É o maior que já escrevi para essa história, mas isso ocorreu pois eu realmente precisava que algumas coisas acontecessem e fossem ditas nele... Para o bem do seguimento de meus planos para a história. De todo modo, gostaria de dizer que esse foi um exagero pontual e que vou tentar ao máximo não repeti-lo de novo.
Segundo ponto: Neste capítulo, fiz algo que não tenho o hábito de fazer enquanto escrevo, que é mesclar um ponto de vista no meio de outro. Nesse caso, isso ocorreu na primeira parte do capítulo, narrada pela Beatrice. Em meio a uma cena em específica, eu fiz uma breve passagem entre o ponto de vista dela e o ponto de vista de nosso querido Visconde. E queria saber, por parte de vocês, se este modelo de narração de algum modo soou estranho ou incômodo a seus olhos leitores. Isso porque estou refletindo na possibilidade de fazer isso com mais constância nos próximos capítulos. Esta foi uma maneira que encontrei de incluir alguns pontos de nossos meninos sem necessariamente reservar uma parte grande do capítulo para eles ( embora sim, haverão momentos em que precisarei reservar narrações mais longas para eles, inevitavelmente ). Me digam sua opinião, please, ela é muito decisiva para mim nesse aspecto!
Ademais, espero que gostem do que preparei dessa vez. Beijão!



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Casa Rodwell, Londres, 1812

 

Algumas tardes depois, o Visconde Bedwyn estava parado na entrada da casa de Beatrice, com uma das mãos batendo a aldrava de bronze na porta e a outra segurando um grande buquê de tulipas caríssimas. Não ocorrera a Triz que o Visconde optaria por uma estratégia tão direta... Nem tão evidente. Não de início, ao menos.

Ela tinha imaginado, a princípio, que talvez fossem esbarrar-se ocasionalmente em alguns eventos discretos organizados pelos seus pares, talvez. Ou no Hyde Park, numa casual e sortida caminhada. Não lhe ocorrera que sua pequena farsa exigiria um show mais chamativo, mas o Visconde tinha observado, inteligentemente, que se ele não viesse procurá-la diretamente em sua casa uma outra vez, quando todos estivessem lá, ninguém - muito menos o pai dela - acreditaria que de fato ele estava interessado nela.

Ela fora obrigada a concordar com a avaliação, observando que claramente o Visconde tinha muito mais experiência nas questões de etiqueta inglesa que ela. A América enferrujara a maior parte de seus instintos, quiçá tinha extinguido alguns deles. Assim, ele aparecera, comprando flores, e atravessando a Grosvenor Square em direção à Casa Rodwell.

Beatrice estava numa das pequenas salas de estar da casa, dividindo uma xícara de chá com Zachary, e se sentindo ridícula e inexplicavelmente... Nervosa. Ela estivera assim nos últimos dias, desde aquela última tarde em que conversara com o Visconde e aceitara entrar naquele teatro com ele. Ele a tinha avisado de que apareceria... Mas não especificara dia e horário, de forma que ela simplesmente estava às cegas.

De todo modo, como se fingia estar interessado por alguém? Triz não era de toda inocente no assunto, pois já estivera ela apaixonada antes... Mas na ocasião, embora o fim tivesse sido um tanto fatídico, seus sentimentos haviam sido sinceros. Terrivelmente sinceros. A ponto dela deixar-se levar a um patamar que qualquer cidadão da sociedade inglesa condenaria, caso descobrisse. Hoje, ela sentia-se imbecil por isso. Por ter sido tola o suficiente para crer nas juras de amor de Dylan, por não ter sido capaz de enxergar o que estava bem abaixo de seu nariz... Todas as mentiras, hesitações, desculpas esfarrapadas... Beatrice o amara intensamente, desesperadamente, como nunca tinha amado ninguém antes.

E ele mentira para ela.

Ela achava que talvez fingir interesse em alguém fosse agir como agia com Dylan, mas o pensamento por si só a causava certa aversão. Ela não desejava rememorá-lo. Nem rememorar nada do que ocorrera na América, enquanto estivera com ele. De modo que decidiu que não, não usaria sua experiência com ela como base para sua atuação junto ao Visconde.

Quando as batidas foram ouvidas à porta, o mordomo dos Rodwell foi imediatamente abri-la. O visitante entregou-lhe um cartão. O mordomo, um sujeito alto e magro com um nariz adunco, olhou para o pequeno pedaço de papel por segundo longo demais antes de assentir com a cabeça e murmurar:

— Por aqui, milorde.

É claro que ele não era esperado. Isso Beatrice já sabia.

Mas o que ela não imaginava, no entanto, era a reação que seu pai teve ao ir à entrada receber o inesperado visitante.

O Visconde de Whitmore era um homem bastante cordial, ao menos com seus semelhantes. Ele definitivamente era um melhor aristocrata do que pai.

Mas aquele pensamento era bem descuidado, além de talvez um tanto injusto. Beatrice sabia que o pai a amava. Mas tinha uma maneira bastante autoritária de demonstrá-lo. Ele sempre fora cuidadoso com todos os filhos, em especial após a morte da esposa, mas com ela parecia que este fato sempre se revelara muito mais... Intenso.

Seu pai nunca aceitara de todo os ideais que Beatrice criara ao longo dos anos. Nunca aceitara de todo o fato de que a filha crescera para se tornar mais além de um rosto bonito pronto a ser vendido no mercado matrimonial. Não que desejasse que ela fosse infeliz. Mas seu pai tinha o próprio pensamento de como uma mulher deveria encontrar a felicidade, seguindo o padrão que a sociedade em que fora criado impunha.

Ele permitira que ela fosse para a América, quando sua avó, Marion, o pedira a sua tutela, mas Triz suspeitava que se arrependera amargamente disso. E ainda se arrependia. Isso por si só já fora e ainda era fonte de uma série de conflitos entre os dois. Mas o pior ocorrera depois da morte da mãe de Triz, quando seu pai pusera na cabeça de que já passara a hora de casá-la.

Ele enchera a casa Rodwell de possíveis pretendentes. Homens que surgiam aqui e acolá, para prestar suas condolências à filha da Viscondessa, era o que Bea suspeitava a princípio, até descobrir e ver o dedo de seu pai agindo naquelas visitas. Então ela o confrontara, e gritara a plenos pulmões que jamais se casaria, que preferiria muito mais morrer solteirona a participar daquele maldito teatro que ele criara.

Ela exagerara, é claro. A fúria falara mais alto que sua racionalidade naquele momento. Os motivos de seu desânimo pelo laço matrimonial advinham de motivos muito mais lógicos e sóbrios que uma mera discussão com seu pai.

— Lorde Bedwyn. — Whitmore estendeu a mão para o visitante. Bea tinha quase certeza de que ele só ouvira falar do Visconde muito recentemente, assim como ela. Talvez Zachary tivesse dividido com ele seu interesse na irmã do Visconde.

Mas parecia não ter dividido com ele um fato muitíssimo importante sobre o Lorde.

Bedwyn sorriu. E não apertou a mão do pai dela, naturalmente, pois não podia vê-la. Levou talvez ainda um minuto para que seu pai notasse a razão por trás disso e, quando isso ocorreu, seus olhos migraram de imediato para a bengala que o mais novo segurava numa das mãos.

— Lorde Whitmore. — ele cumprimentou.

O pai de Triz conseguiu recompor-se rápido o suficiente para dizer:

— É um prazer recebe-lo, embora admito... Que não entenda a razão para esta visita. — ele sabia que o Visconde e Beatrice tinham se encontrado casualmente algumas vezes antes... Triz sabia disso, pois o próprio Zachary o mencionara vagamente, durante seus jantares em família, enquanto tagarelava acerca de Cecily Dashwood e quão encantadora era. De modo que aquela pergunta deveria ser um teste, acima de qualquer outra coisa.

O sorriso de Bedwyn deixou claro que ele aceitara o desafio:

— Não poderia imaginar estar em nenhum outro lugar no momento. — respondeu. — Sua filha é uma jovem excepcional, e sou culpado em querer vê-la uma vez mais, sou obrigado a admitir.

O pai de Beatrice não pareceu particularmente surpreso pelas palavras, embora elas certamente o tivessem agradado. O Visconde não seria o primeiro homem a demonstrar aberto interesse na filha dele, afinal. Seus olhos migraram para o buquê que o sujeito segurava.

— Estas flores são holandesas, não? — ele indagou, analiticamente. — Devem ter custado uma fortuna.

— Pai!

Beatrice estivera espiando pela porta da sala de estar, incapaz de segurar-se. Mas então, de repente, toda aquela cena lhe pareceu demais para tolerar por mais um minuto que fosse. Seu pai parecia estar decidindo se, afinal, valia a pena permitir que aquele homem desconhecido se aproximasse de sua filha ou não. Ou talvez estivesse refletindo se ela aceitaria que ele se aproximasse. E provavelmente decidira que a resposta para essa questão era não, devido ao histórico.

Mas Triz recordou-se de que era seu dever tentar convencê-lo do contrário. Caso não o fizesse, ele jamais acreditaria naquela farsa que tinham acordado montar.

Que patético, Abby pensou, respirando fundo. Mas então tentou recordar-se do motivo pelo qual concordara com aquilo. Isso lhe daria certa paz de espírito, ao menos temporariamente, pois seu pai talvez a permitisse sair, nem que fosse um pouco, de sua jaula de luto e punição, e ela poderia desfrutar novamente de um pouco de liberdade.

Após tudo o que ocorrera, não havia nada que ela mais desejasse.

Por esta razão, e somente por esta razão, foi que disse:

— Pai. Por favor, poderia permitir que eu e Lorde Bedwyn fôssemos um pouco ao jardim?

 

Tão logo tinham saído da casa, Bea apressou os passos à frente do Visconde.

Ele acompanhou-a num passo mais cuidadoso. Sua bengala tateava à sua frente e, quando notou seu atraso, ela reduziu levemente o ritmo afim de acompanha-lo.

— É um prazer vê-la, Abby. — ele disse, abrindo um sorriso zombeteiro. — Ou melhor, não vê-la. Como está hoje?

Apesar de tudo, Beatrice sorriu. Sorriu, pois havia algo de estranhamente delicioso em compartilhar um segredo com alguém, mesmo que aquele em particular se tratasse de uma mentira. Uma mentira que deveria ser muito bem elaborada, de fato, caso desejassem que as pessoas ao redor acreditassem.

Ele tinha feito uma pergunta a ela. E ela pensou, a princípio, em simplesmente dizê-lo que sim, estava muito bem, e como ele estaria? Mas então recordou-se de algo que ela mesma dissera, quando tinham acordado de juntar-se naquele teatro particular que estavam criando. Ela fizera uma única exigência ao Visconde, uma que considerava vital, se desejassem que aquilo desse certo.

Desejo a mais pura e simples honestidade.

Ela raciocinara junto a ele de que, caso este não fosse o fundamento de sua relação, de sua amizade, como ele gostava de chamar, não havia sentido em prosseguir com aquilo. Honestidade era o mínimo que precisavam, pois se mantivessem ela, as intenções de ambos sempre estariam muito claras, seriam constantemente relembradas, e dessa forma poderiam confiar devidamente um no outro...

E precisariam confiar um no outro, se realmente trabalhariam como uma dupla para manter aquele todo aquele cenário de pé.

Isso ia de encontro à sua própria natureza reservada. Ela não era do tipo que costumava tagarelar sobre si mesma... Muito menos sobre assuntos pessoais seus, aqueles que mantinha trancafiados bem no fundo de seu âmago, protegidos das ameaças externas e protegidos de sua própria autopiedade.

Por isso, decidira que levaria as coisas com lentidão, ao que se tratava do Visconde. Eles tinham um plano. Ou estavam criando um, de todo modo. E ela também tinha seus próprios planejamentos pessoais. Um deles era caminhar aos poucos ao lado daquele homem, naquela sua nova empreitada, principalmente para sua própria segurança.

Ele já tinha se provado uma pessoa bastante habilidosa em fazê-la agir por impulso. Bom. Ela não podia permitir que isso continuasse ocorrendo. Tudo o que dissesse e fizesse a partir dali precisava ser muito bem medido, muito bem calculado...

E, ao mesmo tempo, muito sincero. A parte boa disso era que talvez, naquele momento, o Visconde fosse a única pessoa com quem ela poderia ser totalmente sincera sem se importar com as consequências. Pois ele não fazia parte de seu círculo de intimidade e, de todo modo, a opinião dele nunca importaria tanto quanto a de outras pessoas, como sua família.

Quando aquela sua farsa chegasse ao fim, ela provavelmente nunca mais olharia no rosto dele. Não precisaria fazer isso, se não quisesse. Assim como fora na Conversazioni, aquele era um teatro, e eles eram personagens. Ela podia fazer e falar o que bem entendesse em sua própria temporada particular de ilusões. 

— Estou cansada. — disse, por fim.

— Não descansou ontem?

— Não, não é desse cansaço que falo.

Parou abruptamente e começou de novo:

— Estou exausta de doenças, sofrimento e morte. Quero viver. Quero... Rir, gritar e dar piruetas, sem remorso ou motivo aparente.

Triz inclinou a cabeça para trás. Suspeitou que, se enxergasse, o Visconde agora estaria olhando para os olhos que ela fechara. Então riu baixinho.

— Quero rir e sair girando como uma tonta... Apenas poucos meses após a morte de minha mãe. Teria como ser mais frívola? Menos sensível? Mais desprovida de toda conduta decente?

Quando ela abriu os olhos, a expressão dele parecia um tanto surpresa.

— Alguém a acusou dessas coisas?

— Todo mundo. — Bea respondeu. O que não teria sido um problema, se em meio à aquele “todo mundo”, seu próprio pai estivesse incluso. — Sei que o senhor não tem filhos, nem foi casado, mas se fosse e tivesse morrido, ficaria chocado se sua viúva ou seus filhos quisessem dançar quatro meses depois?

— Suponho — disse ele, erguendo um dedo para coçar a lateral do nariz. — que nesse caso não me importaria muito com que eles fizessem. Não me importaria de maneira nenhuma, na realidade, até porque não poderia ver nada.

Ela olhou-o com desaprovação, embora soubesse que ele não podia vê-la, de todo modo.

— Mas mesmo antes da minha morte — ele acrescentou. — eu gostaria de saber que eles voltariam a viver depois que eu me fosse, a sorrir e a gargalhar, a dar piruetas de novo, se este fosse seu desejo. Suponho que, sendo humano, gostaria que eles chorassem por um tempo, mas não indefinidamente. Eles não poderiam se lembrar de mim com carinho enquanto sorrissem, gargalhassem e girassem como tontos?

Triz observou-o.

Ele estava tentando consolá-la, de algum modo, notou. Não sabia muito do que se passava por sua cabeça, embora soubesse um pouco sobre aquela parte, já que ela acabara abrindo-a para ele da última vez que tinham conversado... E novamente, agora. Ainda que com certo esforço.

Mas usava de palavras gentis para tentar consolá-la, como se estivesse dizendo “você não deve se sentir culpada por querer isso”. Aquilo deixou-a um tanto desconcertada.  

Pois foi só naquele momento que notou, com espanto, que aquela era a primeira vez que alguém a dizia isso, mesmo que indiretamente.

Pensou se isso teria alguma relação com a própria vivência do Visconde. Então notou que, embora ela já tivesse partilhado parte de seus anseios com ele, a recíproca ainda não fora completamente verdadeira. Ele falara um pouco, sim... Mas havia muito que não tinha dito, e muito que Triz ainda desejava saber.

Talvez tivesse chegado o momento de coloca-lo contra a parede.

— O que aconteceu com você? — Triz fez a pergunta que tanto queria fazer, desde o momento em que tinha descoberto que ele era cego.

— Com minha visão, você quer dizer? — William retrucou. — Um tio meu, muito distante, veio nos visitar após muitos anos no Extremo Oriente. Era um Visconde, muito rico, mas também muito aventureiro. Era difícil para ele ficar preso a um lugar só. Meu pai, um mero advogado, tinha morrido pouco antes e minha mãe estava com mais dificuldades que nunca para manter a casa. Meu tio apresentou-a ao Barão Dashwood, com quem ela logo se casou, e queria que eu me envolvesse em na administração de suas propriedades, assim ele teria alguém para cuidar de tudo quando estivesse fora.

Quando ele fez uma pausa, ela o incentivou:

— Mas?

— Mas a ideia de passar um dia inteiro atrás de uma mesa me deixou deprimido. Então implorei para que ele conseguisse para mim um posto de oficial, e lá fui eu para a guerra num regimento de artilharia, aos dezenove anos. — ele sorriu levemente. — Não cabia em mim de tanto orgulho. Estava ansioso para provar como eu era corajoso, talentoso e inabalável. Quando o dia de minha primeira batalha chegou, uma semana antes de eu fazer vinte anos, mal podia esperar.

Triz olhou-o e fez a inevitável e repetitiva pergunta:

— O que aconteceu?

— Foi um ferimento na cabeça. Um ferimento duplo. — ele contou. — Houve uma explosão... E caí do cavalo, antes de ser pisoteado. Devia ter morrido três vezes. Primeiro, sendo feito em vários pedacinhos gloriosos que se espalhariam pela península. Então pela queda, e depois pelo pisoteamento. Mas não morri e, quando recobrei a consciência, não conseguia enxergar ou ouvir.

Beatrice engoliu em seco levemente.

— Minha audição voltou depois de algum tempo. — ele continuou. — Mas mesmo depois disso, por muito tempo eu não sabia onde estava, nem quem eu era ou o que tinha acontecido. E, quando entendi o que se passava, não conseguia me comunicar com ninguém fora de minha cabeça. Minhas palavras não saíam e, quando saíam, nem sempre eram o que eu queria.

— Ah. E como foi...

Mas então Will ergueu uma das mãos em advertência. A outra, ela notou, estava fechada em punho. Os nós dos dedos estavam brancos.

— Sinto muito. — ele disse, a voz inexplicavelmente ofegante. — Não consigo continuar.

Beatrice nunca tinha se sentido tão terrivelmente arrependida em toda sua vida.

— Me perdoe. — pediu. — Eu não devia ter dito nada, eu não pensei...

Ele acenou. Só acenou. Mas, para o alívio ela, de fato não parecia ofendido, ou aborrecido. Apenas levemente alterado – aquelas lembranças deveriam ser extremamente dolorosas, para não dizer traumáticas. E ela o tinha forçado a rememora-las. Triz xingou-se internamente pela sua maldita e descuidada curiosidade.

Talvez, para se redimir, ela acabou disparando logo em seguida:

— Houve um homem, na América. Acho que nunca disse a você, mas eu vivi a maior parte da vida lá, com minha avó. E eu o conheci lá.

O Visconde a olhou com atenção. Embora não pudesse vê-la, estava claro que seus ouvidos estavam focados nela naquele momento. Mas ele não disse nada. Não pediu para que ela prosseguisse, ou fez qualquer pergunta que fosse. Apenas ficou ali, encarando-a, sem parecer surpreso, sem pressionar ou julgar, apenas ficou ali...

À espera, parecendo atento e convidativo.

Beatrice não falava de Dylan a ninguém. As únicas pessoas que sabiam sobre ele e sobre o que ocorrera na América eram os amigos que tinha deixado lá e Agatha... Nem mesmo a sua família ela confidenciara isto. Mas parecia certo – embora ela não se sentisse totalmente confortável com a ideia – que William soubesse aquilo. Talvez porque ele acabara lhe confidenciar algo que claramente lhe custara muito...

E talvez ainda custasse. O Visconde não tratava sua perca de visão como uma deficiência, e essa fora uma das coisas que chamara atenção nele quando ela o tinha conhecido. Mas quanto daquilo seria verdade? Quanto daquele ar zombeteiro, daquele sorriso maroto e despreocupado, seria totalmente sincero? Como poderia alguém viver simplesmente feliz e incauto, após passar por uma experiência daquelas?

Sob a luz daqueles novos fatos recém-descobertos parecia, de fato, um milagre que ele ainda fosse capaz de sorrir.

— Na época, eu devia ter voltado para a Inglaterra, para realizar aqui meu début. — prosseguiu. — Mas a guerra na Península estava em seu auge, e meu pai temia por minha segurança caso eu tentasse retornar. Então minha apresentação à sociedade foi feita lá mesmo.

Ela fechou os olhos, por um momento, rememorando aquele dia. Não fazia tanto tempo assim – ela tinha dezenove anos, então, e agora tinha vinte e dois. Mas parecia-lhe uma memória muito distante, como se fosse outra vida.

— Ele era filho de um general a serviço de James Madison. Eu, tola que era, acreditei que o amava e que ele me amava também.

Por fim, a primeira intervenção do Visconde foi feita, muito delicadamente:

— Mas não era assim?

— Não. — Triz retorquiu. — Ele era um canalha, um libertino. Mas quando me conheceu, jurou que tinha mudado. Por mim. Eu acreditei nele, e esperei pelo pedido de casamento que certamente viria. Esperei por meses.

— Mas ele não veio.

— Não. — ela balançou a cabeça. — Ele precisou vir para a Inglaterra, em determinado momento. Para estudar. Tinha conseguido uma oportunidade em Cambridge, e não podia perde-la, naturalmente. Enquanto ele estava fora, recebi diversas propostas... Mais de uma interessante, ouso dizer. Mas neguei todas elas. Dois anos, foi o tempo que ele levou para retornar. Dois anos, foi o tempo em que esperei.

— E...? — William incentivou-a, suavemente, a concluir suas palavras.

Ela inspirou profundamente. Então soltou um suspiro.

— E, quando ele retornou, estava casado. Lady Hazeltine. Uma viúva aristocrata qualquer que arranjou por aqui.

O Visconde ficou quieto por um minuto. Então disse:

— Imagino que isso tenha deixado-a arrasada. — não havia falta de compaixão em sua voz, nem de solidariedade.

Mas Triz era aversa à autopiedade. Não aceitava, e não aceitaria jamais, retornar ao estado em que ficara após aquela descoberta sobre Dylan.

— Não. — respondeu, talvez duramente demais. — Por que eu devia permitir que meu espírito fosse destroçado por alguém tão vil? Perdi todo sentimento e respeito que tinha por ele em questão de meses. — mentiu. — É uma admissão meio horrível de se fazer para alguém que é praticamente um estranho, não é?

— Estou longe de ser um estranho. — disse ele. — Sou Will, seu amigo, se me permite falar assim de mim mesmo, e o homem que a está cortejando nesse momento.

— Alguma vez já se apaixonou?

O Visconde pareceu pensar por um momento. Não por ter dúvida sobre sua resposta, mas talvez porque Triz acabara de voltar a pisar em outro terreno proibido. Aquele estava quase se tornando um hábito recorrente.

— Sim. — respondeu, por fim, categoricamente.

— Ela era bonita?

Ele pareceu refletir por mais um instante.

— Sim, era bonita. — falou. — Miúda e delicada, toda sorrisos e covinhas, cabelo escuro e longo e grandes olhos verdes.

Sem saber bem o motivo, Triz palpitou:

— Uma mulher dessas com certeza não estaria disposta a segui-lo no campo de batalha.

— Realmente, ela não estava. Nunca esteve. — explicou ele. — Mas sempre foi ambiciosa. Quando este meu tio voltou, ele deu a entender que, quando o momento chegasse, ele desejaria que fosse eu seu sucessor. Nunca se casara, nem tivera filhos, pois a placidez do lar inglês nunca tinha sido atraente para ele. E, se seguíssemos a linha de sucessão, o próximo homem na linhagem era...

— Você.

William anuiu.

— Ela sempre falou de forma bastante aberta sobre o que faria quando se tornasse viscondessa e meio mundo tivesse que reverenciá-la, curvar-se e obedecer a todos os seus desejos. O pai é um baronete, mas não tem uma situação financeira muito boa. Poderia não ter tido muito sucesso no mercado matrimonial... Embora, depois de tudo, tenha se casado com um Barão.

Beatrice balançou a cabeça. Era impressionante a quantidade de pessoas sem o mínimo de caráter que haviam naquele país. Oh, bem, ela sabia que aquele não era um traço particular só da Inglaterra. Mas, no momento, pareceu justo condenar aquela terra amaldiçoada que resguardava não só Dylan, mas aquela mulher promíscua que machucara o Visconde.

Deveria ter machucado. Se ele fora apaixonado por ela, e agora ela estivesse casada com outro homem. Ela refletiu um pouco em tudo que acabara de descobrir sobre seu cortejo de mentirinha. Além da guerra e da cegueira, ele tivera de suportar a dor de um coração partido. Talvez em épocas muito próximas uma da outra.

Triz sentiu, pela primeira vez desde que tinham se conhecido, uma empatia muito forte pelo Visconde. Já fora forçada a admitir a si mesma que, apesar de aborrecedor, o homem tinha algumas qualidades, como seu senso de humor. Mas aquilo era diferente. Ela entendia bem como duas tragédias em sequência podiam arruinar alguém. Ela nunca fora para a guerra, mas tivera Dylan e então... Sua mãe. Quanto tempo de descanso o Visconde tivera, entre uma situação e outra, ela se perguntava.

Mas não insistiria mais no assunto. Sentia que já tinham ido longe demais com as confidências por aquele dia.

— Isso foi ruim. — William concluiu mas, talvez buscando aliviar um pouco o clima, emendou, com um sorriso: — Mas houveram coisas piores.

Ele sorriu, e ela pôde perceber que ele devia ter sido muito bonito. Ainda era, mas agora ela podia ver que havia preocupações onde outrora provavelmente só houvera charme juvenil. Precisava-se prestar bastante atenção para nota-las, mas elas estavam ali.

Beatrice não fez a pergunta. Mas ele a respondeu de todo modo.

— Os anos de convalescença foram os piores da minha vida. — disse ele. — E também, por incrível que pareça, os melhores. A vida tem o hábito de ser assim, dar e tirar em alguma medida, um equilíbrio de opostos. Minha mãe teria me trazido para cá e cuidado de mim até eu ficar bem, mas na época esta não seria a opção mais segura. Tive sorte de ter meu caso levado ao conhecimento de Sir Levi Holroyd. Ele levou a mim e a outros oficiais feridos para a própria casa, e nos manteve ali por dois anos inteiros, sob seus cuidados médicos, enquanto nos recuperávamos. Três de nós ainda nos reunimos por algumas semanas todo ano, no Castelo de Stirling, onde um de nós, o Conde de Lannair, vive. Esses quatro homens são meus melhores amigos. São a família que eu escolhi.

Beatrice se sentiu de alguma forma tocada por aquelas palavras. Era claro o quanto o Visconde considerava aqueles homens sobre os quais acabara de contar. Só por sua voz, ela era capaz de notar o quanto ele os amava... Talvez até mais do que alguns do seu próprio sangue. Mas havia outra coisa que também não passara despercebida por ela. E essa ela não podia simplesmente deixar passar, embora tivesse acabado de jurar para si mesma que o momento de confidências precisava acabar:

— Você disse que voltar para sua mãe, para sua casa, não seria seguro. Por quê?

William ficou muito quieto, de repente. Pareceu hesitar... Como se tivesse se arrependido de ter continuado o assunto, para início de conversa.

— Esqueça. — Triz interrompeu-o antes que ele pudesse falar. — Foi indiscreto da minha parte perguntar isso, quando é claro que você já falou tanto sobre si mesmo por hoje. É hora de parar. Vamos só... Continuar nosso passeio, sim?

Ele tombou a cabeça lateralmente.

— Antes, posso fazê-la uma última pergunta?

Embora temesse um pouco o que sairia dali, ela julgou que seria injusto negar:

— É claro.

— Você me disse uma vez que não achava que um dia iria se casar. Seria por conta desse homem, o americano?

Bea balançou a cabeça.

— Eu disse isso a você, milorde...

— Will.

— Will. Eu disse isso a você, Will... Porque se eu me casar algum dia, jamais terei a liberdade para seguir meus sonhos.

— E quanto a seus desejos?

Abby corou. Mais porque não estava esperando por aquilo que por qualquer outro motivo. Ele fizera aquela pergunta de um jeito muito despreocupado, como se fosse comum sair perguntando isso por aí..

— O quê? — William arqueou uma sobrancelha, devido a seu silêncio repentino. — Quer que eu a trate como uma rosa inglesa, pura e delicada, ignorando o fato que acima disso é uma mulher, com desejos como qualquer outra pessoa? Esperava mais de você.

Ah, ela não podia retrucar aquilo. Por isso, tratou esfriar a cabeça – e o próprio rosto – para responder, co o melhor tom de atrevimento que conseguiu:

— Casamento não é a única forma de sanar... Desejos.

Dessa vez, o Visconde ergueu as duas sobrancelhas. Um sorriso zombeteiro surgiu em seus lábios:

— Ora, Abby, você está sugerindo que eu a instale em algum lugar como minha amante?

Triz duvidou que já tivesse se sentindo mais constrangida – ou estarrecida – em toda sua vida. Olhou para ele e...

Riu. E ele olhou para ela e também riu.

— Com uma carruagem só minha e quatro cavalos brancos para puxá-la? — perguntou ela. — E diamantes tão grandes quanto ovos de pássaros para minhas orelhas e meu peito, e uma cama drapejada de cetim escarlate, com dossel e cortinas de veludo vermelho? Com tais incentivos, talvez conseguisse me convencer.

— Acho que os cavalos brancos seriam um pouco de mau gosto.

Incrivelmente, os dois riram de novo, uma risada genuína.

— Você não gostaria de me ter como amante, garanto a você. — Beatrice disse, ainda rindo e balançando a cabeça. — Acho que sou a última mulher no mundo na qual um homem pensaria para isso.

— E por que diz isso?

— Não sei. Só não acho que eu seria a primeira opção para uma coisa dessas.

Ele a encarou, e um sorriso meio malicioso surgiu nos seus lábios:

— Você parece uma gárgula, então? — perguntou. — Por favor, se esse é o caso, me diga, porque acho que se isso for verdade ninguém vai acreditar nessa nossa farsa, sabe...

Beatrice deu um soquinho no ombro do Visconde.

— Ai! — ele exclamou, então começou a rir.

Isso é por ter falado como um idiota superficial.

— E não por ter sugerido que você parece uma gárgula? — ele perguntou. — Descreva-se para mim, Abby. Não posso ver você. Apenas a ouvi... E toquei em sua mão, e a senti em meu braço. Também senti seu perfume. Mas nunca a vi.

O pedido pegou-a meio de surpresa. O Visconde queria criar uma imagem dela na própria mente? Parecia justo. Ele tinha concordado em entrar num teatro com ela, fingindo cortejá-la e estar interessado nela mas, até onde sabia, ela poderia muito bem ter a aparência de uma bruxa ou coisa parecida. E ele não tinha como saber se esse era o caso ou não.

Então, ela se lembrou de algo que ele tinha dito quando tinham se visto novamente pela primeira vez, após aquela noite na Conversazioni... Meus dedos são meus olhos. E meu nariz e ouvidos são os aliados que ampliam meu campo de visão.

Talvez houvesse uma solução melhor para aquele problema.

— Quer me... tocar? — perguntou Triz.

O Visconde de repente ficou muito quieto.

— Eu não disse isso. — respondeu, com cautela.

— Mas seria melhor, se realmente quer ver como pareço.

— E você não se incomodaria?

Ela se incomodaria? Achava que não. Embora aquela fosse ser certamente uma experiência estranha. Ser tocada por um homem que há pouco tempo não passava de um desconhecido... Alguns até a taxariam de louca, por permitir algo assim. Mas ela se sentia estranhamente conectada com o Visconde, naquele momento... Talvez pois tivessem acabado de falar um ao outro coisas de cunho bastante pessoal.

Além disso, ela não temia William. Sentia, de algum modo, embora suas palavras às vezes tivessem um tom meio zombeteiro e malicioso, que ele nunca iria tocá-la com malícia. Era mais uma impressão que qualquer coisa, naturalmente. Não tinha fundamento nenhum a não ser sua própria intuição.

Mas ela sempre confiava na própria intuição.

— Não. Não me incomodaria.

Para provar o que dizia, Abby tirou o chapéu que cobria sua cabeça e então tirou a capa também. Os deixou em cima da grama, bem ao seu lado. Então ficou bem de frente para ele, e torceu para que o arvoredo ao lado de ambos estivesse escondendo-os bem da visão da casa.

William notou sua presença. Então sentiu a ponta dos dedos dela roçarem de leve seu peito. Ele ergueu as mãos e encontrou os ombros de Beatrice. Eram pequenos, magros, mas fortes. Deslizou as mãos até encontrar a pele lisa e morna do pescoço dela. A sensação era suave, imaculada, o que sugeria que ela não tinha marcas ali. Sentiu a pulsação constante sob o polegar esquerdo. Não estava alterada, assim como a respiração dela, o que sugeria que ela estava tranquila, não incomodada com seu toque.

Esperava que ela compreendesse que aquilo não tinha qualquer cunho malicioso. Esperava mesmo. Porque aquela era só a forma dele de poder enxergar – a única que tinha, na verdade. As mãos dele subiram pelas laterais de um pescoço esguio, passaram por orelhas pequenas e seguiram para o cabelo – preso, mas espesso, ligeiramente ondulado, embora ele não soubesse dizer se isso era devido ao penteado ou se de fato era a textura original dele.

— De que cor é seu cabelo, Abby? — perguntou baixinho. Tinha a impressão que se falasse alto demais quebraria a própria concentração e o estado imersivo em que mergulhara.

— Loiro. — ela respondeu, no mesmo tom de voz.

— Como mel?

— Não. Como... Palha, eu acho.

Ele deu uma risadinha.

— Não sei a cor, mas não tem textura de palha.

— Que bom.

Will abaixou um pouco a cabeça. O aroma que percebera na noite em que a tinha conhecido, o responsável por reconhece-la depois, era mais perceptível no cabelo. Ela o devia ter lavado recentemente. Sentiu o calor da respiração regular dela na altura de seu pescoço, o que sugeria que ela era um pouco mais alta que a maioria das mulheres.

— Posso? — perguntou, delicadamente.

Ele conseguiu senti-la anuir.

Só então desceu os dedos e explorou o rosto dela com os dedos. Uma testa lisa e um pouco larga. Sobrancelhas arqueadas. Olhos fechados, com cílios finos, que deveriam ser claros como o cabelo, quase transparentes. Mas ele não tinha mais interesse nas cores. O nariz era pequeno e arredondado, levemente arrebitado. Faces mornas e perfeitamente ovais, sem nenhum ângulo ou ossos protuberantes. Um queixo firme, que afinava, e parecia ter a extremidade levemente arredondada. Uma boca cheia, com o lábio inferior mais grosso que o superior.

— Na forma de um coração. — murmurou Will consigo mesmo.

Ela não havia se movido ou emitido qualquer som. Os músculos do rosto estavam relaxados. Ele esperava que o resto também estivesse. A última coisa que queria era constrange-la ou assustá-la.

— Abby — falou, por fim, tirando as mãos dela. — Se quer saber, você não me parece uma gárgula.

Beatrice deu risada.

— Vou considerar isso um elogio.

— É para considerar mesmo. É raro que eu diga algo assim a qualquer dama que seja.

— Beatrice! Lorde Bedwyn!

A voz de seu pai fez o sorriso sumir de seus lábios. Ele se aproximava pelo caminho do jardim. Por sorte, já havia uma distância bastante segura entre os dois. Apesar de tudo, Beatrice não queria que seu pai pensasse mal daquilo que acabara de ocorrer. Ela sabia que não houvera nada demais...

Mas seu pai certamente não compartilharia da mesma visão.

— Ah, acho que nosso momento a sós acabou. — murmurou.

— Foi o suficiente por hoje. — William retorquiu. Então pegou uma de suas mãos, levando-a aos lábios. — Foi um encanto revê-la, Abby. Você é capaz de tornar tudo ao seu redor encantador. Agora sinto-me quase tolo por ter lhe trazido estas flores estúpidas.

Ela sabia que aquelas palavras estavam sendo ditas para o pai dela, não para ela... Mas sorriu, mesmo assim:

— Você é um tonto, Will. — então pensou no que uma jovem debutante apaixonada diria: — Deixe as flores comigo. Eu as colocarei num jarro ao lado de minha cama. Assim lembrarei de sua gentileza sempre que despertar. 

 

Casa Hartfield, Londres, 1812

 

Francesca estava determinada a tornar lendária a semana de festividades que preparara e planejara todos os tipos imagináveis de diversão para seus convidados.

Haveria excursões, charadas, danças, uma caçada e pelo menos mais uma dezena de passatempos, que seriam revelados quando necessário. Isabella não ficaria surpresa se Fran oferecesse aulas de malabarismo no gramado. O que, a propósito, sabia que ela poderia fazer. Ela havia aprendido malabarismo sozinha quando tinha nove anos de idade e uma feira itinerante passara por Londres.

Seria tudo muito empolgante, se isso não significasse que Isa não poderia participar de mais da metade daquelas diversões. Não se quisesse cumprir diligentemente com seu papel de babá.

No café da manhã, como nas outras refeições anteriores, Francesca colocara o Conde de Lannair a seu lado. Depois daquela fatídica noite em que ela gritara com ele no jardim da Casa Hartfield, parecia que eles tinham encontrado uma maneira mais simples de conviver. O que girava em torno principalmente de ele ser rude com ela e de ela devolver a grosseria no mesmo nível, ou até num nível pior.

O Conde dizia que ela tinha feito algo de errado, e ela perguntava se aquilo era da conta dele, então ele falava de maneira educada. Ele a xingava, ou dizia que ela era um pé no saco, e ela respondia que ele continuaria com aquele pé no saco enquanto estivesse em Hartfield, gostando ou não. Era um tanto exagerado, mas parecia funcionar para ambos os lados. Às vezes, parecia até um alívio para ele que houvesse alguém para contradizê-lo ou alertá-lo para o fato de que estava agindo como um idiota.

Desde as palavras do Visconde Bedwyn, Isa assumira que as outras pessoas, todos ao redor do Conde, exceto talvez o próprio Visconde, que Griffith tratava com um respeito maquinal porque o amigo claramente não se incomodava com nenhum de seus comentários afiados, tinham andado na ponta dos pés perto dele. É claro que tinham. Isso seria o esperado, o correto, o cortês.

A outra grande mudança, além das condições atmosféricas entre eles, era que o Conde falava mais agora, e às vezes até contribuía nas conversas fazendo uma ou outra pergunta não retórica ou irônica.

Naquele café da manhã em especial, no entanto, ele não falara muito. Parecia muito mais preocupado em comer que em conversar. Os convidados foram saindo um por um da sala a medida que terminavam, mas ele continuou ali, e Isa a seu lado, embora já tivesse terminado o próprio prato há tempos. Não podia deixar a sala sem antes saber o que ele pretendia fazer, afinal, se ele desejasse fazer qualquer coisa que não fosse trancar-se no próprio quarto, era dever dela acompanha-lo.

Em determinado momento, só tinham restado eles e a anfitriã. Mas então até Francesca colocou-se de pé, sorrindo levemente para eles, e dizendo que pediria que trouxessem mais bolo de morango, pois o que os criados tinham servido mais cedo acabara depois do Conde pegar a última fatia.

Não que alguém mais fosse comer ali.

Pouco depois de Fran partir, o Conde se mexeu na cadeira e Bella olhou para baixo para ver que ele usava a mão para reposicionar a perna. Parecia se sentir mais confortável com ela esticada à sua frente; Isa notara isso no jantar anterior. Mas, se a mesa da véspera estivera repleta de convidados, a de agora estava vazia, exceto por eles dois, e havia bastante espaço para...

— Não está doendo muito — disse o Conde, sem se virar nem um centímetro na direção dela.

— O que disse? — perguntou Bella, já que não estivera olhando para a perna dele.

De fato, depois de ter notado que ele a estava tentando manter bem reta, concentrara-se de propósito em pelo menos meia dúzia de outras coisas.

— A perna. — disse ele. — Não está doendo muito agora.

— Ah.

Isabella estava com a resposta na ponta da língua sobre não haver perguntado sobre a perna, mas até mesmo ela sabia quando as boas maneiras exigiam moderação.

— Eu ainda as sinto. — o Conde comentou, olhando direto para ela. — No caso de estar curiosa.

— É claro que não — apressou-se Bella.

— Mentirosa.

Ela ficou boquiaberta. É claro que havia mentido, mas fora por cortesia. Chamá-la de mentirosa, por sua vez, não tinha sido nem um pouco cortês da parte dele.

— Se quer saber — ele continuou, cortando um pequeno pedaço de bolo com o garfo. — É só perguntar.

— Muito bem — retrucou Bella rispidamente. — Como aconteceu? Foi um incidente?

Ele parou por um momento. Abaixou o garfo com o pedaço de bolo.

— Chamado guerra. — respondeu. — Especificamente uma bala. Muito bem ou mal mirada, não sei dizer qual.

— Uma única bala? Nas duas pernas?

O Conde pareceu prestes a sorrir de novo, aquele sorriso condescendente, e fazê-lo sorrir não fora a intenção dela.

— Na coluna.

— Como uma bala na coluna pode ter afetado suas pernas?

Ele deu de ombros.

— Levi disse que a coluna está ligada aos movimentos das pernas. — o Conde fez uma breve pausa. — Levi é o nome do médico que me tratou. Ele tentou me explicar com aquela linguagem de médico o porquê disso... Mas não entendi nada. Só que nunca usaria minhas pernas novamente.

— Quanto tempo faz?

— Quatro anos.

Tão novo. O Conde era jovem hoje, e não passava de um garoto quando fora para a guerra. O que poderia motivar um menino a embarcar nisso? Pobreza? O soldo de um soldado não era demasiado alto e, de todo modo, se hoje era um Conde, dificilmente Lorde Lannair teria crescido pobre. Obrigação? Diferente dos homens comuns, os cavalheiros não eram convocados – normalmente se prontificavam para o posto. Sonhos febris de glória e honra? Talvez. A vida poderia ser uma grande aventura fantasiosa quando se tinha quinze ou dezesseis anos.

 Ele olhou-a sugestivamente:

— Satisfeita?

Bella sentiu a própria mandíbula travar. O Conde estava tentando fazê-la se sentir mal? Se existiam regras oficiais sociais que ditavam como uma dama deveria se comportar diante de um homem aleijado, Isa não as conhecia. No entanto, estava bastante certa de que devia fingir que não notava a debilidade dele. A menos que Lorde Lannair precisasse de ajuda, caso em que ela deveria notar a deficiência, porque seria uma imperdoável falta de sensibilidade vê-lo empacar com a cadeira e não auxiliá-lo. Mas, de qualquer maneira, provavelmente não deveria fazer perguntas.

Não deveria indagar o que o deixara aleijado.

Mas, afinal, não era dever dele, um cavalheiro, não fazê-la se sentir mal pelo erro?

Ah, que tudo aquilo fosse para o inferno.

— Então o senhor não nasceu assim? Teve outros ferimentos?

O Conde parou por um momento. Ele pareceu, de repente, muito soturno. Então começou a listar, sem olhá-la diretamente:

— Uma bala abaixo do ombro, não muito longe do coração. Uma clavícula quebrada. Várias costelas quebradas ou fissuradas. Um braço quebrado. Cortes e contusões em lugares demais para enumerar. Sem ferimentos significativos na cabeça, o único milagre associado ao incidente.

Isa sentiu um leve aperto no peito diante da descrição. Aquelas palavras, embora ditas deliberadamente, carregavam uma dor física que ela jamais poderia se quer imaginar compreender.

— Nunca soube de ninguém que tivesse saído tão ferido. — foi sua resposta.

O conde abriu um sorrisinho sem humor.

— Os feridos de guerra não competem uns com os outros para descobrir quem sofreu mais, senhorita Ortiz.  — disse. — E há muitas maneiras de sofrer. Tenho um amigo que guiou seus homens a uma série de batalhas violentas e saiu praticamente sem nenhum arranhão. Em seu último combate, sobreviveu ileso, embora a maioria de seus homens tenha sido morta. Foi elogiado por generais, foi promovido a Comandante. Então caiu num profundo e turbulento poço em sua própria mente, que o impediu de continuar sua carreira. Tenho outro, que ficou cego em sua primeira batalha. Ficou furioso quando voltou para casa. Nunca é fácil decidir quais feridas são mais graves que outras.

Bella refletiu nas palavras do Conde. Elas continham sim bastante lógica. Mas ela era incapaz de deixar de pensar que o sofrimento que o Conde passara ultrapassava em muito o que tinham vivenciado aqueles seus amigos. Quão duro deveria ter sido, reaprender a se locomover sem a força de suas pernas, embora ainda fosse capaz de senti-las. Deveria ter demorado meses, quiçá anos.

E certamente fora doloroso.

Algo parecido com admiração começou a vibrar dentro dela. O Conde de Lannair continuava rude e irritante, e ela não gostava da companhia dele, mas pela primeira vez desde que o tinha conhecido, Isa começou a sentir algo que não fosse desprezo por ele. Ele era forte. Não do tipo que se gabaria dizendo “Olhe só a facilidade com que ponho uma jovem dama em cima de um cavalo!”, não.

O Conde de Lannair era forte por dentro, onde realmente importava. Tinha que ser, para ter suportado aquela provação.

Isabella estava preparada para tudo quando se tratava do Conde de Lannair; esperava rudeza, cinismo, grosseria e muito mais. Mas aquilo? Não tinha se preparado para aquilo.

Francesca lhe devia uma por isso. Possivelmente lhe devia três.

Não sabia três do quê, mas seria de algo importante. Muito importante.

Ficaram quietos, sentados ali, por mais cerca de um minuto, e então o Conde falou:

— Não acho que sua prima vai voltar com o bolo.

Ele apontou muito discretamente com a cabeça. Fran conversava com o marido. A expressão no rosto dela era de puro deleite enquanto ria de algo que ele havia dito. Hartfield, por sua vez, somente a observava como se ela fosse a criatura mais bela que Deus ousara criar no mundo. 

— Ele a adora desesperadamente. — observou Isabella, aliviada por terem ido para outro tópico.

Ainda não estava olhando diretamente para o Conde, mas ele pareceu ter concordado com a cabeça.

— Ela tem jeito com as pessoas. — ele disse.

— É um talento.

— De fato.

O Conde tomou um gole de vinho.

— Um que deduzo que a senhorita não possua.

— Não com todo mundo.

Ele sorriu de forma zombeteira.

— Presumo que esteja falando de mim.

Quando ela não se dignou a respondê-lo, ele riu.

— Não deve se criticar por seu fracasso. Sou um desafio até mesmo para a mais afável das pessoas, senhorita Ortiz.

Isabella se virou, olhando para o rosto dele totalmente confusa. E incrédula. Que tipo de homem dizia uma coisa dessas sobre si mesmo?

— Creio que eu tenha o dito que fui encarregada do seu bem-estar.

— Deveria parar de me bajular, senhorita Ortiz. Isso vai me subir à cabeça.

— Não fugirei do meu dever.

Ele a encarou por um longo momento e, depois, fixou o olhar nos outros convidados.

Isabella respirou fundo. Então se colocou de pé.

— Imagino que tenha a intenção de acompanhar os outros do lado de fora, Conde.

— Não acho que tenha outra opção.

— Então eu seguirei na frente. Estarei aguardando-o no jardim.

Enquanto saía da sala, Isa passou por Francesca e Hartfield, e encontrou três de suas primas tomando o mesmo caminho. Seria aquela mais alta a Joana? Ou a Iris? Talvez a Margarida? Isa não saberia dizer, eram muitas primas, e todas pareciam-se demais entre si. Pedro estava com elas, assim como Henrique. Havia muita risadagem e vozes finas tagarelando ao mesmo tempo.

Bella entrou dentro da nuvem, ansiosa para conviver com alguém que não fosse um aleijado ranzinza e resmungão.

Má ideia.

Houvera um grito e alguém tropeçou em Isabella. Ela cambaleou para frente, balançando a mão livre em busca de equilíbrio, mas em vão. Caiu primeiro no degrau que dava para o jardim, depois no chão duro, levando Pedro junto.

Ela gritou ao sentir uma dor aguda no tornozelo. Acalme-se, disse para si mesma, foi só um susto. Como dar uma topada. Seu dedo do pé dói loucamente por um segundo e então você descobre que foi mais do susto do que de outra coisa.

Então ela prendeu a respiração e esperou a dor passar.

O que não aconteceu.

Isabella passou o resto do dia com o pé inchado feito uma ameixa, apoiado em travesseiros, presa no próprio quarto.

Francesca tinha ido visita-la, assim como Iris – que talvez fosse Joana – e as outras primas. Pedro também fora até lá para vê-la, assim como Henrique, seus pais e sua tia Maria. E, embora Bella gostasse das visitas de seus parentes para entretê-la, não ficou tão contente ao receber notícias de todas as atividades maravilhosas que tinham ocorrido fora de seu quarto.

Seu segundo dia de recuperação foi muito parecido, exceto que, por pena da irmã, Henrique decidira ler para ela todos os nove círculos de Inferno – A Divina Comédia – de Dante. Ela ainda estava prestando atenção no Terceiro Círculo. Mas então cochilara por alguns minutos, e quando acordara, eles já estavam num lugar chamado Sexto Fosso, que parecia fazer parte do Oitavo Círculo, onde quer que isso ficasse.

À tarde foi pior. Vivian apareceu com Philipp, e trouxe o violino. Vivian já não era a pessoa preferida do mundo de Isabella, mas Isa precisava admitir que ela era uma boa mãe para Philipp, o que fazia com que ganhasse alguns – embora poucos – pontos com a espanhola.

Contudo, como violinista, Vivian era uma excelente mãe. E Vivian não conhecia peças curtas.

Então, quando Isa acordou de um cochilo da tarde que usara como desculpa para tirar Vivian de seu quarto, jurou para si mesma que desceria as escadas e se juntaria ao resto da humanidade – ou morreria tentando. Realmente jurou isso. E deve tê-lo feito com muita convicção, porque a criada empalideceu e fez o sinal da cruz quando a ouviu falar.

Mas, quando ela desceu, descobriu que a maior parte dos convidados ainda estava se preparando para o pequeno baile noturno que Francesca tinha planejado para aquele dia.

Havia sido suficientemente humilhante descer nos braços de um lacaio – ela não havia especificado como desceria a escada. Então, assim que encontrou os corredores da casa vazios, Isa se levantou do banco onde fora sentada e deu um passo cauteloso. Poderia pôr um pouco de peso no tornozelo, desde que tomasse cuidado, imaginou.

Mas teve que se apoiar numa parede.

Talvez devesse ir para a biblioteca. Não gostaria de ficar no salão de festas, quando todos ao seu redor estariam dançando, enquanto ela ficava sentando remoendo o fato de não poder fazer o mesmo. Poderia encontrar um livro, sentar-se e ler. Não havia nenhuma necessidade de forçar os pés. A biblioteca não ficava tão longe de onde estava.

Ela deu outro passo.

Ora, não precisaria atravessar toda a casa.

Gemeu. Quem estava tentando enganar? Nesse ritmo, demoraria metade da noite para chegar à biblioteca.

Precisava de uma muleta.

Isso a fez pensar no Conde de Lannair. Não o via desde que se machucara. Afinal, ele não a visitaria enquanto ela estivesse no quarto – já deixara claro que não gostava dela e de sua companhia. Ainda assim, andara pensando nele. Deitada na cama com os pés apoiados em travesseiros, perguntava-se por quanto tempo ele precisara fazer o mesmo. Quando se levantara no meio da noite e se arrastara até o penico, começara a se perguntar... e então amaldiçoara a injustiça biológica daquilo tudo.

Um homem não precisaria se arrastar até o penico, não? Provavelmente poderia resolver tudo na cama.

Não que estivesse imaginando o Conde na cama.

Ou usando um penico.

Mas, ainda assim, como ele havia conseguido? Como ainda conseguia? Como realizava as tarefas diárias sem ter vontade de arrancar os cabelos e amaldiçoar os céus? Isabella detestava ser assim tão dependente de outros. Tudo o que ela queria era ir a algum lugar com os próprios pés. Sem informar ninguém dos seus planos. E, se tivesse que sofrer uma dor aguda sempre que pisasse, paciência. Valia a pena só para sair do quarto.

Se ela já sentia-se assim com um mero tornozelo torcido, como deveria se sentir o Conde, com suas pernas inutilizáveis? Será que ele sentia dores o tempo todo, mesmo quando não as forçava? Provavelmente. Ela já o vira fazer expressões de dor, mesmo quando sentado.

Isabella mancou um pouco mais pelo corredor e desistiu, desabando em uma poltrona. Alguém acabaria aparecendo. Uma criada... Um lacaio... Um convidado. Era uma casa cheia de gente aquela.

Alguns minutos depois, ela realmente ouviu alguém fazer a curva do corredor. Deveria chama-lo? Realmente precisava de ajuda, mas...

— Senhorita Ortiz?

Era ele. Isa não entendeu por que ficou tão surpresa. Mas ficou. A última conversa deles não havia sido a melhor, mas quando viu o Conde vir em sua direção, ficou tão aliviada que foi quase espantoso. Ele vinha andando com as muletas. Não, não andando. Suas pernas não faziam nenhum movimento ou exerciam nenhuma força. Ele as estava arrastando, sustentando-as com as muletas. A seu lado vinha um lacaio alto, com o cabelo castanho-claro.

— O que faz aqui? — o Conde perguntou, olhando-a.

— Descansando, eu acho.

Bella empurrou o pé para frente alguns centímetros.

— Minhas ambições superam minhas capacidades.

Ele olhou-a demoradamente.

— Você irá para o baile? — Isa acabou perguntando, quando ele não disse nada.

Os cantos da boca de Lorde Lannair se contraíram e ele ergueu as sobrancelhas em uma expressão irônica quando disse:

— Não posso dançar.

— Ah. Ah.

Ela falara sem pensar. Tola, estúpida, onde estava com a cabeça? Não fora justamente por esse fato que tinham entrado naquela espiral de desprezo mútuo?

— Estava pensando em ir para o jardim. — O Conde falou. — E imagino que você estivesse indo para o salão?

— Não. Não, na verdade.

— Pois deveria ir. Ou está ansiosa para retomar seu papel como perseguidora?  

Antes que Bella pudesse rebater, ele tirou uma das muletas de debaixo do braço e ofereceu-a ela. Ela o olhou, espantada. Então, percebendo que o homem começava a perder o equilíbrio, a pegou, curvando os dedos ao redor do cabo liso. O Conde apoiou a mão livre no ombro de seu lacaio.

 O ato pareceu quase íntimo, segurar o objeto que se tornara praticamente uma extensão do corpo dele.

— Obrigada. — ela disse, meio sem graça.

Ele deu de ombros.

— Duvido que sairia do lugar sem isso. Se vai com sua família ou vai prestar seu papel de carrapato, precisa pelo menos andar sozinha, não? Eu definitivamente não poderia servir como seu apoio, e Isaac só consegue carregar uma pessoa por vez.

Isabella se levantou, colocando a muleta abaixo de seu braço direito. Testou-a. Parecia um pouco alta para ela, considerando que o Conde era mais alto, mas serviria. Quando deu o primeiro passo, aliviou-se ao notar que nenhuma pontada aguda seguiu seu movimento.

O trio seguiu seu caminho, e enquanto mancava ao lado do Conde e de seu lacaio, Isabella tentou decidir para onde seguiria. A biblioteca ainda era sua melhor opção, embora certamente não a mais empolgante delas. Ela poderia ir para lá, ou se condenar ao salão de festas, onde ficaria sentada tomando chá de cadeira, ou então poderia ir com o Conde para o jardim.

Ela não sabia dizer qual seria uma maior provação.

De todo modo, logo sua decisão foi tomada. Embora não por ela.

A prima Margarida – essa era inconfundível, Isa tinha quase certeza – surgiu num corredor no meio do caminho. Sua primeira reação foi franzir a testa diante da cena estranha. Deveriam estar parecendo meio patéticos, os três, daquele modo; O Conde e Isabella apoiados cada um numa muleta, o lacaio ereto, como se fosse a terceira muleta que estivesse em falta.

Sua segunda reação foi esfuziar-se, correndo até Isa:

— Bella! Bella! Você está de pé! — exclamou. — Estávamos todos esperando você melhorar, que tédio que foi esse tempo sem você... Ah! Vamos para o salão, a música está prestes a começar!

— Ah, bem... — Isa começou. — Eu não sei se isso é...

— É claro que você não pode dançar com essa coisa, mas ainda pode nos ver dançar!

O que era essencialmente a coisa que Isabella detestaria mais fazer.

— Marga, eu acho que...

— O que a senhorita Ortiz quer dizer — interpôs o Conde. — é que ela já prometeu dedicar a noite à mim.

Margarida olhou para ele com espanto.

— Não entendi.

O Conde deu um falso sorriso e explicou:

— Também não posso dançar, senhorita...

— Daisy.

— Senhorita Daisy. Então sua prima se ofereceu para me fazer companhia.

— Mas...

— Estou certo de que a Senhora Hartfield já tenha pedido para os músicos começarem. — continuou o Conde.

— Mas...

— E raramente tenho alguém que me faça companhia em noites como esta.

— Mas...

— Temo que não possa liberá-la do compromisso. — explicou Griffith, soando impaciente agora.

— Ah, eu nunca faria isso! — Isa disse, finalmente cumprindo seu papel, antes que o Conde jogasse sua muleta restante em cima de sua prima. Ela encolheu os ombros num gesto de impotência. — Eu prometi.

Margarida – que começara a ser chamada de Daisy na Inglaterra – parecia enraizada no chão, o rosto contorcendo-se um pouco a medida que percebia a derrota.

— Aproveite a festa, senhorita Daisy. — o Conde concluiu, quando cansou de esperar a resposta dele.

— Está ciente — perguntou Bella para Griffith, pouco depois. — de que está preso a mim pelo resto da noite?

Eles estavam sentados no gramado, sob tochas que de algum modo conseguiam aquecer o ar o suficiente para permitir que as pessoas permanecessem ali fora, desde que tivessem um casaco. E um cobertor.

Embora a maior parte dos convidados estivesse no salão de festas, dançando alegremente ao som da música, eles não eram os únicos que aproveitavam a noite do lado de fora. Uma dezena de cadeiras e poltronas fora posta na grama do lado de fora do salão e metade delas estava ocupada. Mas somente eles as tinham adotado como residência permanente, depois que Isaac, o lacaio, os deixara ali e partira.

— Se sair do meu lado — continuou Isa. —, Margarida surgirá do inferno e me arrastará até o salão.

— Isso seria tão ruim assim? — perguntou o Conde.

Ela o fitou e disse:

— Ficar assistindo a todas aquelas pessoas dançar sem poder fazer o mesmo? Sim, seria um tormento. — falou, antes que pudesse refletir devidamente no que dizia. Só depois percebeu. Se ela pensava assim, como deveria sentir-se o Conde?

Ele ergueu as sobrancelhas.

— De fato.

Após um minuto, ele conjecturou:

— A senhorita gosta de dançar.

Isa se sobressaltou.

— Gosto. — disse ela, ainda pestanejando de surpresa por ele optar em continuar a conversa. Ainda não se acostumara de todo a isso. — A música é boa. Realmente faz as pessoas se levantarem e... Desculpe-me.

Ela calou-se subitamente, lembrando uma vez mais que estava perto de alguém que não poderia se levantar nem se quisesse. Não sem apoio.

— Eu gostava de dançar. — falou o Conde.

Isa se manteve em silêncio, enquanto o Conde abria um sorriso jocoso e dizia:

— Agora é difícil, claro.

Embora muito súbita, aquela admissão pareceu a Bella muito custosa, principalmente por parte do Conde. Sentia que ele acabara de lhe confessar algo que não costumava confessar a qualquer um. E isso fez com que ela sentisse uma empatia muito repentina e indesejada por ele.

Talvez, por isso, que ela tenha dito:

— Às vezes gostaria de poder correr, dançar e gritar sem ser criticada e julgada.

Ele inclinou o rosto em sua direção.

— Sem ser julgada, você diz?

— Você vive na Inglaterra. — respondeu Isabella. — Sabe como é. As pessoas aqui... Vivem a base de padrões empolados, regras e proibições. De onde eu venho... As coisas não são assim. Eu não sou assim. Esse lugar é como uma gaiola, uma jaula.

— E você é o animal retirado à força de seu habitat natural, imagino.

Bella não respondeu. Nem anuiu. Mas ele captara bem a ideia. Desde que sua família fora forçada a partir da Espanha, devido a ocupação de Napoleão... A vida de Isabella não fora mais a mesma. Ela era somente uma criança, quando acontecera, e vivera mais tempo na Inglaterra que em sua terra natal. Mas nunca fora capaz de afastar aquela sensação de deslocamento, de falta de pertencimento, que a dominava.

Ela não era uma rosa inglesa e jamais seria, não importava o quanto tentasse. E ela achava que não queria tentar. Era exaustivo. Toda sua família parecia estar presa naquela peça em particular. Eles vestiam suas fantasias, decoravam suas falas, e faziam sua apresentação diária no cenário da sociedade inglesa. Mas Isa não conseguia. Não por inteiro.

Isso era pior que simplesmente fingimento para ela; era uma desonestidade consigo mesma. Com sua essência.

Isabella não queria viver o resto da vida performando um papel. Ela queria ser ela mesma... Vivendo num lugar em que a aceitasse, com a alguém que a aceitasse e a amasse como ela era. Aquele era o único e mais profundo desejo de seu coração. Não queria acabar descobrindo ser aquilo que os outros esperavam que fosse. Não.

Queria ser ela mesma, a pessoa que era de verdade. Ou acreditava ser.

Agora o Conde estava muito silencioso, a seu lado. Parecia pensativo. Ela daria de tudo para saber o que passava em sua mente naquele momento. Eles permaneceram ali, naquele silêncio, por um longo tão tempo que por um momento Isabella pensara que sua conversa findara ali.

Mas então, pegando-a despreparada, o Conde falou:

— Temos algo em comum, sabe? — disse, e sua voz soou estranhamente suave. — Também quero dançar. Às vezes é o que mais quero no mundo.

Antes que Isabella pudesse responder, uma voz cortou o ar:

— Bella! E Lorde Shawcross!

Francesca se aproximava, seguida de seu marido.

— Ficaram aqui fora a noite toda? — perguntou a prima de Isa, quando ela e Hartfield tinham se aproximado o suficiente de ambos.

— Na verdade, sim. — confirmou o Conde.

— Não estão com frio? — perguntou Fran.

— Estamos bem cobertos. — Isa sinalizou. — E a verdade é que, já que não posso dançar, fico feliz em estar aqui fora no ar fresco. Pelo menos isso ainda posso fazer.

— Vocês dois estão formando uma bela dupla esta noite — comentou Hartfield, sem malícia aparente. Na verdade, parecia que ele estava achando graça da muleta do Conde repousada ao lado de Isabella.

— Este deve ser o canto dos aleijados — disse o Conde, secamente.

— Não diga isso. — repreendeu-o Isabella.

Griffith olhou para Hartfield e Francesca.

— Esta foi uma mera ilustração. Ela vai sarar, é claro, então não pode ser incluída no grupo.

Hartfield e Fran olhavam um tanto confuso para os dois, então Isa fez o favor de explicar:

— Esta é a terceira ou quarta vez desde que chegamos que o Conde diz isso.

— Canto dos aleijados? — repetiu Griffith, e mesmo à luz da tocha Isabella percebeu que ele parecia estar se divertindo muitíssimo provocando-a daquela forma. É claro que estava.

— Se não parar de falar assim, juro que vou embora.

O Conde ergueu uma única sobrancelha.

— Não disse um tempo atrás que estou preso à senhorita pelo resto da noite?

— Isto é muito mais interessante do que qualquer coisa que esteja acontecendo lá dentro. — comentou Hartfield com a esposa.

— Não — disse Franesca com firmeza. — Não é. E certamente não é da nossa conta.

Ela puxou o braço de Logan, mas ele estava com os olhos fixos em Isabella e no Conde.

— Poderia ser. — disse.

Fran suspirou e revirou os olhos.

— Você é um tremendo fofoqueiro.

Então ela lhe disse algo que Bella não conseguiu ouvir, e Hartfield, ainda que relutante, deixou que a esposa começasse a arrastá-lo para longe. Mas Isa já não imaginava como conseguiria permanecer ali. Por isso, viu-se exclamando:

— Esperem! Retornarei com vocês. Para o salão.

Sua prima a olhou com curiosidade e talvez um tanto de dúvida:

— Tem certeza, Isa? Com o pé desse jeito, talvez você prefira...

— Já descansei o suficiente aqui fora. — Bella garantiu, energicamente. Então voltou-se para o Conde, com uma animação forçada: — Obrigada, milorde, por me acompanhar. Mas agora o deixarei em paz para desfrutar de algum descanso. Nos vemos amanhã?

O Conde a olhou demoradamente. Parecia estar um tanto confuso com a velocidade com que o cenário estava mudando.

—... É claro. — disse, por fim.

Isabella não esperou nem mais um minuto.

Ela colocou-se de pé com a ajuda da muleta, mas então soltou-a, usando o ombro de Francesca como apoio, e deixando-a ao lado de seu verdadeiro dono.

O salão de festas seria um tormento, decerto. Muito pior do que o jardim, com seu ar fresco, e a almofada para apoiar seu pé machucado. Embora não pior que estar na companhia do Conde. Afinal, lutou para lembrar a si mesma, ele era rude, mal-educado, presunçoso...

Mas ele também queria dançar. Isabella desejou que ele não houvesse dito aquilo. As palavras a tinham aborrecido, pois expressavam um sonho tão impossível que lhe dava vontade de chorar. O último homem na terra por quem queria derramar lágrimas era o Conde de Lannair.

Mas ele queria dançar.


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