1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 15
Capítulo XIII


Notas iniciais do capítulo

Boas, minhas queridas!
Chego aqui humildemente diante de vocês com mais um capítulo dessa história, IHA!
Dessa vez, o capítulo, como prometido, vem com um quê a mais: um edit novinho, saído do forno, lá no tumblr! Esse edit foi feito pela talentosíssima e queridíssima Robinsu, que além de nos abençoar com a personagem incrível que é nossa Ophelia, também nos abençoa constantemente com seus edits sensacionais. Já mencionei a vocês que a capa da história foi feita por ela? Não? Então agora estou mencionando e, novamente, agradecendo de coração a dela, dessa vez publicamente, pelo carinho por essa história e por esses personagens que me são tão queridos. Você é demais, Liz!
Ademais, não as prenderei em excesso comigo. Por favor, aproveitem a leitura, e espero que gostem do que preparei para vocês dessa vez. O primeiro capítulo da Ophelia e de nossa Mãe de Dragões após o retorno da história, HERE WE GO!



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Londres, 1812

 

Ophelia mal pisou na soleira da porta pelo resto da semana.

Chovia quase sem parar, embora isso não seja estritamente preciso. Ela teria desfrutado de uma boa e honesta chuva. Mas aquilo era uma garoa e uma névoa, com céu cinzento pesado e temperaturas baixas.

Tempo para sopa de ervilha, lembrava-se de Bertha falando, o tipo de clima que se infiltrava por debaixo das portas e ao redor dos caixilhos das janelas mesmo quando bem fechadas, e fazia com que a pessoa se sentisse úmida, com frio e desolada, apesar do fogo crepitando na lareira e do xale de lã sobre os ombrs.

Nem se quer foi à igreja no domingo, uma rara omissão. Não que Jo fosse particularmente religiosa - mas com sua rotina lotada e devota em tempo quase integral à Cecily, a ida à Igreja se tornava uma das poucas oportunidades que tinha de sair de casa e tomar um pouco de ar para além do jardim da Casa Dashwood.

Cecily não estava em casa naquele dia. Fora encontrar com o irmão, o Barão Dashwood, a esposa dele e sua mãe que tinham recentemente chegado a Londres vindos do interior. O que significava que, além de presa dentro de casa, Ophelia estava completa e inteiramente entediada. E este vazio deu abertura para que pensamentos inoportunos surgissem.

Dali há uma semana, o Barão Dashwood realizaria o baile de début de sua irmã mais nova. Dali há exatamente uma semana, Cecily seria uma mulher aos olhos da sociedade e, logo, Jo deixaria de ser necessária. O Visconde a prometera que de modo algum ela seria deixada desamparada, mas Ophelia não podia deixar de sentir-se aflita, quiçá desesperada.

Oh bem, ela ainda não alcançara o ponto do desespero. Mas era fato que não conseguia parar de pensar sobre o futuro. O que faria dali para frente? Passa o último mês coletando todos os jornais publicados em Londres, e se candidatara para todas as oportunidades disponíveis que se encaixassem em seu perfil.

Mas nada.

Parecia que, de uma hora para outra, toda jovem de Londres não necessitasse mais de governantas. Ou talvez todas as governantas estavam chegando antes de Jo na fila, pegando o espaço que talvez ela tivesse a oportunidade de ocupar. O fato era que ela estava a uma semana de se tornar uma trabalhadora obsoleta, um fardo para uma família que, embora bondosa demais com ela, não era a sua, de modo que não poderia forçá-los a aturá-la ali dentro por muito tempo.

Mesmo que, de fato, aquela fosse sua família, Ophelia suspeitava que se sentiria do mesmo modo. Mais do que qualquer outra coisa, odiava sentir-se como um fardo. Não fora por isso que partira da casa de Adam, para início de conversa?

Mas a perspectiva da falta de um futuro emprego não era o pior. Não. Ela poderia encontrar outro emprego. Provavelmente faria isso, cedo ou tarde. Mas sempre acabaria do mesmo jeito; qualquer trabalho que arranjasse seria somente seu presente, mas não um futuro, não a longo prazo. E o futuro importava a Ophelia, embora ele nem tivesse chegado ainda, a não ser na sua imaginação. Não devia bastar a ela o presente?

Não era bem o futuro que precisava, percebeu, mas a esperança.

Era a sua falta de esperança que a fazia se sentir sozinha e ás vezes a levava aquele buraco. Viveria toda sua vida como uma governanta? Adorava ensinar, de verdade. Gostava muito da rotina, e aprendera a amar Cecily como se fosse sua própria irmã caçula. Se fosse possível, ela não ficaria nem um pouco triste em passar o resto da vida ali, na Casa Dashwood.

Mas claro que isso, por si só, era algo triste.

Esses pensamentos tiraram sua concentração e parte de seu apetite. Depois de ingerir quase nada de seu almoço, Jo voltou para a sala de estar, onde passara a maior parte de sua manhã, e tentou retomar o bordado que iniciara. Mas, quando a linha de seda se enroscou, seus dedos puxaram o nó sem a habitual paciência e enredaram o fio tanto que ela teve de cortá-lo, além de demsanchar o trabalho já feito, então deixou o tecido de lado.

Tentou ler, mas depois de passar os olhos com determinação por duas páginas inteiras, percebeu que não conseguia se lembrar de uma única palavra. Autopiedade era uma aflição terrível, pensou, irritada consigo mesma. E ela parecia estar sendo atacada por ela com uma constância alarmante naqueles dias. Primeiro no parque, antes e depois de encontrar com Sir Holroyd, e então naquele momento.

Sir Holroyd. Em meio a seus pensamentos conflitantes, ela pensara nele, também. Em sua caminhada no parque, e no convite que ele fizera depois. Hoje era sábado. O dia combinado deles repetirem aquela caminhada uma outra vez. Por um momento, ela lamentou ainda mais a chuva, até que lembrou-se com algum constrangimento da explosão de sentimentos na presença de Sir Holroyd.

O convite que ele lhe fizera era insignificante. E essa insignificância lhe parecia, ridiculamente, algo de muita importância. Ele, um cavalheiro – porque embora ele negasse, Jo sabia que ele tinha sido educado como um, o comportamento era inegável –, a tinha convidado para passear simplesmente porque queria passar mais tempo com ela. E ela tinha aceito pelo mesmo motivo. Era simples. Ou deveria ser. O que havia dado nela? Mais daquela ridícula autopiedade, é claro.

Não iria mais tolerar nem mais um segundo daquilo.

Olhou feio para o bordado antes de pegá-lo e confrontá-lo mais uma vez, com firmeza de propósito.

Quinze minutos depois, seus pensamentos foram interrompidos pelo som da aldrava na porta da frente. Ophelia ergueu os olhos, surpresa, a agulha suspensa acima do tecido bordado. Cecily? Não, claro que não. O Visconde Bedwyn? Dificilmente. O Visconde raramente visitava a Casa Dashwood, e o único motivo no mundo que poderia motivá-lo a tal era sua irmã, que ele sabia estar ausente.

— O senhor Levi Holroyd, senhorita Wright. — anunciou o mordomo, em tom meio dúbio, ao abrir a porta, mas o cavalheiro passou por ele antes que Jo pudesse decidir se era ou não adequado recebe-lo, ou, para ser mais exata, se ela se importava que fosse adequado ou não.

— Senhor Levi — disse ela, deixando o trabalho de lado e se levantando. Percebeu que até então não sabia o nome dele. — Certamente não veio a pé, veio?

Ela ficou pateticamente feliz em vê-lo.

— Na verdade, peguei um coche alugado. — respondeu ele, tirando o chapéu. — Boa tarde, senhorita Wright. A senhorita Dashwood não está? Sinto muito. Eu não teria...

— Ela foi embora — contou-lhe Ophelia. — Foi visitar a mãe, o irmão e a cunhada.

Ele ficou parado, fitando-a enquanto o mordomo fechava a porta. As botas estavam molhadas e os pés não paravam quietos, trocando o peso do corpo entre si. De repente, Jo sentiu-se tímida com ele, como se aquele na verdade fosse um encontro romântico, ou algo do tipo. Que estupidamente patética devia estar parecendo, como uma garotinha com metade da idade.

— Então acredito que eu deva ir. — ele falou, por fim.

— Ah, não. — Jo soltou, antes que pudesse se controlar.

Sua voz soou entrecortada, percebeu. Como se estivesse quase à beira da histeria.

Estava aterrorizada porque ele iria embora, o que, é claro, era a melhor coisa que poderia fazer – por ambos. Não apreciaria escutá-la despejar sobre ele todas as desgraças e autopiedade que a andavam consumindo. E ela precisava de tempo para se recompor antes de conversar com alguém.

O médico ergueu um pouco as sobrancelhas.

— Vim só explicar por que não foi possível sair para caminhar — disse ele. —, embora creia que seja evidente. E também vim para conferir a senhorita Dashwood... Me parece que ela se recuperou bem, mas aquele tipo de febre costuma ir e voltar, e nesse clima.

Ele parecia um tanto desconfortável, parado ali naquela sala. Deslocado talvez fosse a palavra certa. Ele estava claramente ansioso para partir, e Jo, egoísta como era, estava tentando prendê-lo. Ela suspirou.

— Então o senhor veio só para me informar que está chovendo e saber da saúde de Cecily?

Ele hesitou. Então a pegou totalmente de surpresa:

— A saúde da senhorita Dashwood não me preocupa, na verdade. E a Casa Dashwood tem janelas. Vim ver a senhorita.

E se Ophelia havia pensado que ele parecia desconfortável um minuto antes, não era nada perto de como ela se sentia agora. O próprio ar na sala parecia ter mudado, de repente. Ela olhou pela janela, de repente meio ansiosa para deixar de encará-lo. E então foi que notou.

— Ah, a chuva parece ter parado enquanto conversávamos. Talvez, afinal, consigamos seguir com a caminhada?

Sem esperar resposta, ela se virou e foi buscar sua capa e um par de luvas novas, que pudessem proteger suas mãos da umidade do lado de fora e, principalmente, da visão do Senhor Holroyd. Eles partiram pouco depois, em direção ao Hyde Park. Era o mais próximo da Casa Daswhood, e o lugar mais seguro também – ao menos, era decididamente mais seguro que a própria casa.

As governantas de modo geral estavam sãs e salvas de possíveis escândalos. Isso porque, a bem da verdade, elas praticamente nem eram consideradas mulheres.  A maioria eram solteironas, como Jo e, mesmo que fossem suficientemente jovens, ainda assim antes de mulheres elas ainda eram governantas. Ninguém acharia minimamente desaprovador um cavalheiro ficar sozinho na companhia de uma governanta, porque ela era só uma governanta, afinal.

Mas não era com a própria imagem que Jo se preocupava. Não. Por alguma razão, ela achava que ficar sozinha num cômodo com o Senhor Holroyd era quase perigoso. Ele tinha um poder estranho de fazer com que ela agisse fora do que era seu comportamento usual.

E a falar de coisas que seria melhor manter para mim.

Contraditoriamente, quando chegaram ao parque, a primeira coisa que ela lhe perguntou foi:

— Por que queria me ver? Foi o que admitiu minutos atrás, que veio me ver.

Ela não sabia porque estava levantando aquilo novamente. Tinha conseguido escapar com bastante êxito e, agora, estava colocando seu pescoço no laço mais uma vez. Ela não queria saber a resposta. Ela queria saber a resposta.

— Não esperava encontra-la sozinha. — protestou o médico.

— Mas encontrou. E não foi embora.

Não que ela tivesse lhe dado muita chance, é claro. Tão rápido quanto possível, ela o convidara para sair. Mas ele poderia ter recusado o convite, mesmo assim. Poderia ter inventado uma desculpa esfarrapada.

— Fiquei — concordou ele. — Com certeza não queria vê-la depois daquele primeiro dia, na Casa Dashwood. E depois não quis falar com você, no casamento do Duque de Barclay. Mas como você apareceu, eu precisei respondê-la. E gostei da conversa que tivemos. Naquele dia e depois, no parque. Depois de quase um mês rodeado de homens, estava sentindo falta de companhia feminina, acho, e a senhorita me pareceu uma companhia segura.

— Segura?

— A senhorita é uma governanta. — ele fez uma careta. — Peço desculpas. Isso soou péssimo. Não quero dizer que isso seja um demérito. Nem estou interessado em flertar. Não estou à procura de uma esposa. Eu... — ele se atrapalhou.

— E, se estivesse, estaria procurando no lugar errado. — interrompeu Jo, firmemente. — Não estou no mercado em busca de um marido.

Ela não estava, mas ainda num desses dias passados, andava refletindo em como era triste o fato disso ser uma verdade que ela não escolhera, mas que fora fadada a aceitar, pelas circunstâncias de sua vida.

— Não. Claro eu não. — o médico concordou. — Gostei de sua companhia, senhorita Wright. Não é sempre que se consegue relaxar com alguém do sexo oposto que não seja da família.

— Então sou segura porque sou uma governanta — afirmou Jo. — Mas e se eu não fosse?

Ele a encarou por alguns instantes.

— Então a senhorita não seria de forma alguma segura. — disse ele.

Ela temeu a resposta que viria, mas perguntou, mesmo assim:

— Por que não?

Aqueles olhos azuis continuaram encarando-a atentamente, e Jo se sentiu de repente dolorosamente ciente de seu cabelo preso apertado num coque baixo, dividido milimetricamente no meio, de um modo muito pouco criativo ou atraente. E de seu vestido simples, escuro, fechado em todos os lugares, ultrapassado e sem graça.

O médico provavelmente via o mesmo, mas de qualquer modo, não respondeu como Jo esperava que respondesse.

— Eu ficaria tentado a... Atrair seu interesse. — ele falou.

Ela teria achado graça, se ele não estivesse tão sério.

— Minha afeição, o senhor diz?

Ele deu de ombros.

— Afeição nem sempre é necessário.

Ela ficou um tanto estarrecida.

— O senhor quer dizer que ficaria tentado a me seduzir, então?

— Claro que não. — ele franziu a testa. — Sedução é unilateral. Sugere certo grau de coerção ou pelo menos de enganação.

Embora não conseguisse crer em praticamente nenhuma palavra do que ele estava dizendo, Ophelia ouvia o coração saltando no peito. Ouvia seu martelar nas têmporas.

— Sir Levi, como exatamente nossa conversa tomou esse rumo?

Ele sorriu, muito de repente, e ela sentiu um estranho aperto no estômago, pois foi um sorriso consideravelmente charmoso. Quase pueril. Só que de pueril não tinha nada.

— Creio que tenha muito haver com a ausência da senhorita Cecily ou daquele bichinho que trouxe no parque da última vez. Teríamos falado apenas das condições do tempo e da nossa saúde se estivessem aqui.

— Com certeza. — concordou Jo fervorosamente. — Mas não precisamos nos preocupar, não é? Sou governanta há bastante tempo, sou uma companhia segura.

— Quantos anos a senhorita tem?

Ophelia ficou inexplicavelmente aliviada – e decepcionada, ao mesmo tempo – pela mudança no rumo da conversa.

— Que pergunta descortês. Uma mulher jamais diz a idade. Sou mais jovem que o senhor, no entanto. No fim, talvez eu devesse ter acreditado. Todo esse comportamento e perguntas indiscretas! O senhor não é um cavalheiro.

Mas ela estragou o efeito das palavras rindo. Ele sorriu de volta.

— Eu tenho trinta e dois, se saber isso lhe consola. Não sou tão velho assim, embora sim, aposto que seja mais velho que você.

Eles seguiram caminhando. A essa altura, já tinham entrado nas imediações do parque. As nuvens escuras tinham sumido quase todas e, embora o dia não estivesse de fato ensolarado, estava muito melhor do que antes. Ophelia desfrutou da sensação de estar do lado de fora, aspirou o perfume da terra e da vegetação molhada, e do som que seus sapatos faziam ao chapinhar na estrada.

A chuva podia deixa-la deprimida, mas o que vinha depois, a fazia se sentir viva de novo. Jo aproveitou para dar mais uns passos à frente, se afastando um pouco de sua companhia, absorvendo ao máximo o que a breve solidão ao ar livre lhe proporcionava. Foi um momento de grande alívio, uma benção. Depois de todo aquele tempo trancafiada, era como respirar uma vez mais, uma respiração longa profunda.

Também servia para que ela colocasse a cabeça de volta no lugar, depois daquelas palavras que tinha ouvido. Ele provavelmente só estivera brincando. Embora aquela tivesse sido uma brincadeira bastante indiscreta. Ou talvez tivesse tentado lisonjeá-la – embora aquela tenha sido uma maneira estranha de fazê-lo, se de fato aquela era a intenção.

Após mais alguns minutos, ela desacelerou e retornou para o lado de seu acompanhante, que não parecera exatamente incomodado com seu afastamento. Tão logo eles tinham retomado o passo lado a lado ele abriu a boca:

— Quantos anos a senhorita tinha quando se tornou governanta?

Jo sorriu.

— O senhor é bom em matemática, não é, senhor Levi? Me deixe poupá-lo do incômodo de fazer cálculos mentais. Cecily é minha primeira pupila, como governanta, e eu a acompanho desde nova. Tenho vinte e seis anos.

— A senhorita descobriu minha estratégia, não foi? — ele riu. — Estou tentando descobrir mais sobre a senhorita, sem soar tão indiscreto como soei mais cedo. Acho que não estou tendo muito sucesso.

— Você pode simplesmente perguntar. Eu não mordo e, se continuarmos numa conversa segura, não me negarei a respondê-lo.

Ele acenou com a cabeça. Então pareceu pensar um pouco.

— Conte-me sobre sua casa e sua família.

Jo hesitou por um momento. Ela não costumava falar sobre seu passado. Na verdade, era o assunto que mais evitava mencionar e, quando o fazia, tentava sempre ser o mais enxuta possível. Talvez pois ela então precisaria mencionar sua mãe, e Ade, e porque tudo sempre acabasse, de um jeito ou de outro, convergindo para o incêndio.

E Ophelia detestava falar sobre o incêndio. Ela detestava até pensar nele.

Ajeitou as luvas nas mãos, puxando-a um pouco mais para cima, como se mesmo com elas, ainda fosse possível ver as cicatrizes que marcavam sua pele.

— Meu pai era um cavalheiro por nascimento, mas sem título. Passei a maior parte da minha vida em Midlands, no interior, até que ele foi convocado para a guerra, e nela morreu. Minha mãe hoje vive com uma irmã, minha irmã está casada e eu... Bom, eu estou aqui.

Entre a morte de seu pai e o casamento de sua irmã, o incêndio tinha acontecido, destruindo a casa da família e suas chances de terem uma vida estável. Com os custos dos reparos, mais os custos dos tratamentos de Ophelia, se tornara insustentável ficar ali, ainda mais sem o principal provedor da família por perto.

Desse modo, sua mãe, Jo e sua irmã tinham sido forçadas a viver de favor com parentes. Ela conseguia lembrar-se daquela época, quando todos as recebiam e olhavam com toda a compaixão sempre que batiam à sua porta, e como logo seus olhares e expressões mudavam, quando o tempo começava a se tornar longo e elas, um incômodo.

Até que Adam surgira, e se propusera a acolher as meninas. Jo e Adelaide tinham partido para a casa dele, então. Adam não era nenhum parente delas, não realmente. Ele fora casado com uma das irmãs de sua mãe, que já tinha falecido quando elas tinham chegado em sua casa, de malas na mão. Seus filhos também já tinham partido, cada um para seu lado, e ele vivia essencialmente sozinho. Se não fosse contada a criadagem. Um nobre viúvo, abastado e solitário.  

Adelaide tinha se adaptado muito rápido a nova vida. Ela era naturalmente sociável, doce e carismática. Todos passaram a adorá-la com facilidade. O mesmo não podia ser dito de Jo, que sempre fora mais retraída, silenciosa e solitária, principalmente após o incidente.

Mas ainda assim ela conseguira se afeiçoar a Adam, a Bertha e a Casa, embora não o suficiente para tolerar a ideia de continuar ali para sempre. Não. Assim como Adelaide tinha feito, a seu próprio modo, ela também precisava construir uma vida para si mesma, com seus próprios esforços. Não suportaria ser um peso para Adam, ou para Bertha, ou para quem quer que fosse.

Se orgulhava de ter conquistado isso, apesar de tudo. Ela tinha uma boa vida. Poderia não ser uma vida maravilhosa, mas era uma vida. E era sua. Isso já valia de muito, por si só.

— E quanto ao senhor? — perguntou, virando o rosto para o médico. — E sua família e sua casa? Onde estão?

Jo o viu hesitar por um momento. Ele chegou a entreabrir os lábios, mas então algo que viu à frente o fez selá-los novamente. Ele levantou o chapéu em cumprimento:

— Lorde Berwick. Viscondessa.

Um casal jovem vinha na direção deles, de braços dados, caminhando no sentido contrário.

— Holroyd. — o tal Visconde respondeu, acenando. O cabelo dele era loiro escuro, como mel quente, e seus olhos azuis estavam levemente semicerrados, como se ele estivesse sonolento. Ou entediado. Mas havia uma curvatura meio cruel, zombeteira, em seus lábios. Era bonito, de um jeito preguiçoso e ligeiramente sacana.

— Sir Levi, é um prazer encontra-lo. — a Viscondessa respondeu. Ela tinha o cabelo mais claro que o marido, e olhos acinzentados. Uma beleza sóbria, que seria comum, se ela não fosse mais alta que a maioria das mulheres. Jo achou que isso a tornava estranhamente elegante, como uma espécie de deusa gaélica ou coisa parecida.

Talvez isso tivesse algo haver com o sotaque levemente galês em seu timbre. A Viscondessa olhou para Jo com curiosidade.

— Não nos apresentará a sua amiga?

— Essa é a senhorita Wright, milady. Estávamos somente dando uma caminhada no parque, após tanto tempo trancados em casa por conta da chuva.

— Ah, sim. É totalmente compreensível. Eu e Erwin viemos em busca do mesmo, temo. — a Viscondessa respondeu, sorrindo levemente.

— Encontrei com George no White’s recentemente. — o Visconde comentou, casualmente. — Foi assim que descobri que ele está na cidade. Assim como o garoto, seu sobrinho, como é o nome dele?

De repente, toda a postura do senhor Holroyd mudou. Ele pareceu tenso, como a corda de um arco esticada.

— Brendan. — respondeu, evidentemente desconfortável. — O nome dele é Brendan.

— Isso, Brendan. — acenou o Visconde, parecendo meio alheio a reação do médico. Mas Jo achava difícil que qualquer dos presentes não tivesse notado aquilo. O Visconde parecia observá-lo atentamente, por debaixo da aba do chapéu, como se estivesse aguardando seu próximo movimento. — O garoto está enorme, por tudo que é mais sagrado. Ás vezes esqueço como George é velho. É mesmo lamentável o que aconteceu entre vocês dois. Tudo isso porque você decidiu virar médico, ora...  

— De todo modo, — a Viscondessa interrompeu, prestativa. — foi muito bom revê-lo, Levi. Tia Florence estava o mencionando um dia desses. Ela sente bastante sua falta. Deveria nos visitar quando puder, gostaríamos muito disso.

O senhor Holroyd conseguiu sorrir. Levemente.

— É claro, milady Haylock. Eu também ficaria feliz em rever a Viscondessa Viúva. Como sabem, ela me foi uma grande benfeitora, a considero muitíssimo.

— Ah, me chame de Gwyneth. Não precisamos de formalidades entre nós, somos família. — disse a Viscondessa, pondo a mão enluvada sobre o ombro dele, por um instante. Então voltou-se para Jo novamente. — E se quiser, senhorita Wright, também está convidada. Seria um prazer recebe-la em nossa casa.

Pega um tanto despreparada, Jo abriu um sorriso um tanto constrangido:

— Agradeço o convite, milady. Mas odiaria interromper um encontro familiar.

A Viscondessa negou, ela toda delicadeza, que sua presença seria de alguma forma um incômodo. Então seu marido pareceu entediar-se da conversa, pois sinalizou, de maneira discreta, que continuassem seu caminho. Assim, os casais despediram-se e prosseguiram, cada um em sua devida direção.

Os passos do Senhor Holroyd pareceram mais acelerados depois do breve encontro.

Após alguns minutos num silêncio que agora era tudo menos confortável, repentinamente, o médico soltou:

— Soube que seu tempo na Casa Dashwood está acabando.

Jo parou por um minuto.

— Foi o Visconde quem lhe contou? Ah, deve ter sido. Sim, senhor Holroyd, estou à procura de um novo posto como governanta, visto que Cecily logo não precisará mais de mim.

— E teve sucesso em sua empreitada?

Ophelia hesitou por um instante, mas notou que não ganharia nada mentindo, além de parecer um tanto patética. Voltou a caminhar.

— Não.

Ele pareceu pensar por um momento. Quando Jo achava que terminariam sua caminhada sem dizer uma palavra a mais, ele falou:

— Talvez eu possa ajuda-la.

— Não pedi sua ajuda, senhor.

Ophelia não soube porque disse aquilo. Ou porque falara daquele modo; tão deliberado, tão ríspido. Deveria estar feliz por alguém estar desejando ajuda-la em sua missão até então fracassada. Mas não estava. Talvez porque a tivesse chateado o modo como o homem se fechara abruptamente, após aquele estranho encontro com os nobres na estrada do parque.

Talvez notando a chateação em seu tom de voz, a expressão dele suavizou-se.

— Me perdoe, senhorita. Estou sendo novamente indiscreto. — disse, num tom de desculpas. — Não farei nada, se a incomodar. Não a convidarei novamente, nem falarei coisas indiscretas, nem oferecerei minha ajuda, se não quiser. Parece que ultimamente estou simplesmente forçando-a a aceitar minhas palavras e ações, sem esperar que concorde com elas.

Jo soltou um suspiro. Ficara um tanto estarrecida mais cedo, sim. Então ficara um pouco brava, primeiro porque percebera que aquele homem fizera aquilo de novo; a fizera falar sobre coisas que não costumava falar, coisas que trancafiava fundo dentro de si, e por uma excelente razão. Depois, pois ele se fechara em seguida, fugindo de respondê-la a mesma pergunta que lhe fizera pouco antes.

Mas não podia dizer que não queria vê-lo de novo.

Ele havia admitido abertamente que ficaria tentado a atrair seu interesse se ela não fosse uma governanta e, portanto, uma companhia segura. Ela deveria ter se virado e lhe dado uma bofetada. Ou tê-lo mandado embora naquele momento.

Mas essa era de longe a coisa mais bonita que alguém lhe dizia em muito, muito tempo.

Ah, céus, temia que fosse se lembrar das palavras imprudentes dele por dias e dias. Como ela era patética!

Balançando a cabeça, por fim disse:

— Deixe para lá, senhor. Vamos só aproveitar o fim da caminhada, sim? Cecily deve estar voltando para casa hoje à noite, com a família. Então é pouco o tempo que me resta para aproveitar.

Abençoadamente, ele acatou seu pedido sem mais protestos.

 

Paralelamente, no outro lado do Hyde Park

 

Khaleesi não ficaria mais à deriva.

Essa fora uma decisão que sua mente começara a tomar em sua noite de núpcias, que não chegara a ocorrer, mas que fora definitivamente selada na noite de seu baile de apresentação à sociedade inglesa. Ao invés de lamentar-se sobre a realidade de sua atual vida, a aceitaria. A abraçaria. De nada adiantava chorar suas perdas ou as perspectivas de seu futuro sombrio. O que estava feito estava feito. Faria algo com isso. Faria alguns planos, tomaria algumas decisões.

Tornaria aquela vida algo. Algo definitivo, desafiador e até mesmo interessante. Algo para tirá-la da melancolia que pairava sobre ela como uma nuvem cinza por tanto tempo. Aquela era sua chance de construir para si uma nova vida – ela poderia não ser perfeita, mas Khal se esforçaria para usá-la da melhor forma possível.

Não ficaria mais à deriva.

Após tanto tempo tendo sua vida controlada por outros ou pelas ocorrências externas que lhe acometiam, havia realmente algo muito emocionante sobre o pensamento de que o resto de sua vida era finalmente seu para ser tomado. Ela sonhara com isso a vida toda e agora finalmente a oportunidade surgia.

O primeiro passo para isso foi se adequar a seu novo lar. No dia seguinte ao baile, quando Khaleesi deixou seu quarto, encontrou a criadagem da Casa Barclay enfileirada e à sua espera no saguão de entrada. O mordomo, Oliver, apresentou cada criado por nome e função. Khal teve certeza de que não lembraria de nenhum deles mais tarde; era gente demais. Governanta, cozinheira, criadas do andar de cima, criadas do térreo, criadas da cozinha, criados, cocheiro, cavalariços... Mas ela jurou a si mesma que ainda tiraria um tempo para decorar aqueles nomes e rostos, todos eles. Como nova senhora da casa, era o mínimo que poderia fazer.

Quando a governanta questionou-lhe sobre se a Duquesa preferiria manter a criada que trouxera ou arranjar outra, Khaleesi a disse que estava bastante satisfeita com Agatha.

— Mas, de qualquer modo, tome Mary, Vossa Graça — a mulher dissera, apontando para uma jovem sorridente e ansiosa, vestindo uniforme preto impecável. — Ela dará suporte a sua camareira até que ela se adeque a casa e à sua rotina. Mary, por favor, apresente o resto da casa para a Duquesa.

— Sim, senhora. — Mary quase pulou de entusiasmo. — Por favor, Vossa Graça, venha comigo. — depois que se distanciaram dos outros, Mary falou durante toda a subida pela escada. — Estou tão contente que esteja aqui, todos estamos.

—... Obrigada. — Khaleesi disse, um tanto aturdida.

Com certeza uma camareira inglesa iria sentir-se, no mínimo, hesitante por se ver a serviço de uma duquesa que, até pouco tempo atrás, era a filha de uma nação inimiga. Não? E, afinal, uma criada deveria ser tagarela daquele modo? Não era algo que a incomodava, particularmente, mas não parecia-lhe o tipo de coisa que o padrão inglês fosse tolerar com facilidade.

— Nunca hesite em nos chamar. — a jovem continuou. — Estamos aqui para servi-la de todas as formas.

— Você é muito gentil.

— Gentil? — Mary exclamou. — De maneira nenhuma, Vossa Graça. É óbvio, só de olhar, que vossa senhoria é doce e calorosa. Além de belíssima. Assim que o duque se afeiçoar por Vossa Graça, tudo irá ficar muito melhor.

Khaleesi achou encantadora a espontaneidade da jovem servente... E também sua inocência. O Duque se afeiçoar por ela? Chegava a soar como uma piada. Mas a garota parecia crer piamente que aquilo ocorreria. Por compaixão a ela e a seus sonhos juvenis de amor e contos de fadas, Khal pegou-se dizendo:

— Lamento desapontá-la, Mary. Mas receio que tenha entendido mal. Meu casamento com o Duque... Não foi motivado por afeição. Este foi somente um acordo.

— Ah, sei disso! — ela exclamou. — Mas Vossa Graça precisa ser esperançosa. Eu me sinto, desde que a vi. Os outros dizem que estou sendo tola, que isso é baboseira... Mas ah, eu espero muito que aconteça! O Duque anda muito infeliz, desde que voltou da guerra, e isso tornou a vida dos criados insuportável. Ele raramente sai de casa, nunca recebe visitas. Nunca pede à cozinheira nada além dos pratos mais simples. A equipe se sente tão solitária e entediada quanto o próprio duque e, além do mais, estamos a serviço de um patrão cujo humor varia de ruim a péssimo.

Khal escutou com atenção aquelas palavras. Tinha a impressão que aquilo era o mais perto de uma descrição  de seu marido ou coisa semelhante que já ouvira, desde que o tinha conhecido. Ela tinha a impressão de que não era a intenção da menina fazer fofoca... Ela só estava desabafando. Mas, sem perceber, também estava oferecendo a Khal algumas pistas.

O Duque anda muito infeliz, desde que voltou da guerra. Falando daquele modo, a criada sugeria que nem sempre o Duque fora... Bom, ele. Mas aquilo talvez fosse apenas a percepção de uma jovem camareira tagarela. Quando perguntara ao próprio James, seu cunhado, o porque do comandante agir da maneira como agia, nem mesmo ele soubera dizer a resposta.

Ele nunca permite que ninguém chegue perto o suficiente para descobrir. Nem mesmo Morgan.

Foi naquele instante que Khaleesi decidiu que seria ela a primeira pessoa a desvendar de vez aquele mistério. Não porque se interessasse de alguma forma no Comandante mas porque, se realmente quisesse construir algo perto de uma vida satisfatória para si mesma, ela precisaria encontrar uma maneira de se entender com ele.

Poderia nunca amá-lo. Na verdade, estava certa de que nunca o faria. Não importava o que tivesse acontecido no passado do Comandante, Khaleesi era incapaz de amar a um homem como aquele. Mas precisava encontrar uma forma de relacionar-se com ele pois, se tudo corresse como supostamente deveria correr, algum dia eles dividiriam não só um laço selado dentro de uma igreja fria nos fundos de uma mansão aristocrata, como também uma vida eternamente ligada pela existência de uma criança. Ou talvez mais de uma.

Não era da intenção de Khaleesi viver longe de qualquer filho que concebesse, seja quem fosse o pai. Isso significava que, mesmo quando o Comandante obtivesse seu tão almejado herdeiro, ela não o deixaria simplesmente tomar as rédeas da vida do filho como parecia fazer com todos ao seu redor. Não. Khal faria questão de estar presente em todos os momentos, de participar na educação e desenvolvimento de seu filho e, principalmente, de dá-lo todo o amor que ele provavelmente não receberia do pai.

Khaleesi tinha a forte impressão de que o Comandante tinha uma grande dificuldade – para não dizer total incapacidade – em nutrir afeto, por quem quer que fosse. Mesmo perto de sua família ele era insuportavelmente cortês e formal. Ela sentia que, para ele, um filho seria apenas um título. Uma maneira de continuar sua linhagem e cumprir o dever que lhe era atribuído.

E ela jamais permitiria que um filho seu estivesse condenado a viver sendo tratado desta forma, de modo que o sufocaria com seu próprio amor, se isso fosse necessário para compensar a dúvida que certamente nasceria em seu coração quanto aos sentimentos do pai.

Ela sabia bem – terrivelmente bem – quão doloroso era não ter certeza se era, afinal, amada ou não pelo homem que supostamente deveria dedicar a vida a cuidar e zelar por seu bem-estar. A sensação de ser vista como nada mais que uma ferramenta.

Mesmo que nunca pudesse haver amor entre ela e o Comandante... Talvez pudesse haver respeito. Um pouco de afeição, até, se ela ousasse muito. Precisava haver algo, qualquer coisa que fosse, se ela desejasse de algum modo salvar o próprio futuro e o futuro de seus filhos.

Ao lhe propor casamento, o Comandante dissera que lhe daria a liberdade que desejasse, no futuro, dentro dos limites da respeitabilidade... Isso significava provavelmente que, cumprido seu objetivo, ela poderia viver em qualquer lugar, e isso incluía o mais distante dele, é claro. E talvez ela realmente quisesse fazer isso, algum dia; quando suas crianças estivessem devidamente criadas e ela não sentisse-se mais na obrigação de pairar por perto delas. Seria bom, pensou, viver seus dias em paz, em alguma propriedade do interior, não sendo obrigada a manter uma farsa de casamento pelo bem de outros.

Mas, por enquanto, aquilo não era uma opção. Não podia ser. Motivada por essa perspectiva, quando desceu novamente as escadas acompanhada de Mary, e flagrou seu marido tentando escapar – embora talvez essa não fosse uma descrição muito precisa, visto que ele nunca tentara se esconder – para passar mais um dia fora de casa, e então retornar tarde, quando não mais correria o risco de encará-la, não o deixou simplesmente ir. Fez questão de pigarrear alto, deixando claro que o vira.

Funcionou. Pois ele parou a um metro das portas do saguão, virando-se na direção dela lentamente. Ele inclinou o queixo:

— Madame.

— Comandante. — ela respondeu, com falsa doçura. — É um prazer finalmente vê-lo. Há quanto tempo.

O homem não pareceu se divertir muito com sua tentativa de fazer uma piada. Quando pareceu que ela não diria mais nada, ele virou-se novamente, pronto para sair. Sem conseguir pensar em nada melhor, Khaleesi pôs a mão no braço dele, detendo-o. Ele virou-se mais uma vez, parecendo um tanto aborrecido:

— Há algo que deseja?

Aquilo pareceu muito mais uma repreensão do que uma verdadeira pergunta. Tratando de controlar os próprios nervos, Khal tentou encontrar uma resposta que não a fizesse parecer uma idiota e, ao mesmo tempo, traçar um plano que pudesse ter uma mínima chance de funcionar:

— Eu quero jantar.

O Comandante franziu o cenho e olhou para o lado de fora, onde o sol brilhava no céu.

— Agora?

— É claro que não. Na hora de jantar.

— É claro que vai jantar, madame. Não lhe levaram a janta no quarto nessas últimas noites? Por acaso alguém está tentando mata-la de fome?

Khaleesi não pôde evitar revirar os olhos.

— Não estou dizendo que desejo apenas ser alimentada. — falou, como se estivesse conversando com uma criança com especiais dificuldades de aprendizado. — Eu gostaria que jantássemos juntos, Comandante. Eu e você. Não só nesta noite, mas todas as noites. Jantares de verdade, com vários pratos. E conversa.

A cada pausa que fazia entre suas palavras, mais as sobrancelhas de seu marido pareciam franzir-se. Pela expressão dele, alguém poderia imaginar que ela sugerira cirurgias abdominais todas as noites. Realizadas com agulha de tricô e colher.

Após um minuto, ele por fim indagou, parecendo esforçar-se para não soar impaciente – sem sucesso:

— E haveria algum motivo para este desejo em particular?

Foi a vez dela perder a paciência. Aquele homem parecia estar muito acostumado a ditar as ordens em seu mundo, mas não parecia adaptado a receber a mínima sugestão ou orientação que fosse. Pois bem. Talvez estivesse na hora dele aprender a ouvir algumas ordens.

— Estamos casados, Comandante. — disse, sem mais prelúdios. — Estamos casados e, no entanto, se eu o vi três vezes na última semana, estou sendo excessivamente bondosa. Deixou bastante claro os termos de nosso casamento quando foi-me oferecer sua mão. E eu os aceitei sem acrescentar uma palavra a mais, embora você tenha me dado a oportunidade de falar, recorda-se? — indagou, embora não tenha dado chance dele respondê-la, de fato. Cruzou os braços sobre o peito antes de continuar: — Pois bem: Aqui vai minha primeira contribuição a estes termos. Jantaremos juntos. Todas as noites. E seria muita falta de decência, além de uma grande ausência de palavra, negar-me isso, considerando que você foi quem deu-me o direito de opinar, para início de conversa.

Após seu pequeno sermão, Khaleesi esperou ser duramente rechaçada, embora tivesse se esforçado ao máximo para assumir a maior pose autoritária possível. O Comandante a olhou por um tempo longo – longo demais. Khal estava começando a sentir-se um tanto desconfortável quando ele, por fim, murmurou:

— Que seja. Se é o que deseja. Nos vemos mais tarde, madame.

Às oito da noite, Khaleesi viu-se sentada à ponta de uma mesa de jantar com um quilômetro de extensão. Ou quase isso.

A sala de jantar em si era uma câmara de teto alto e longa, com a mesa que ocupava a maior parte de sua extensão. Ela teve uma impressão imediata da grandeza e percebeu o candelabro de ouro e cristal que pendia do teto ornado e em arco e também a porcelana fina, os cristais e a prataria cintilando sobre a mesa à luz de velas. No entanto, verdade seja dita, a maior parte de sua atenção se concentrou na figura sentada numa das extremidades da mesa.

Ela mal era capaz de enxerga-lo, do outro lado da extensão de madeira. Mas sabia que só poderia ser ele. Isso a surpreendeu, de certo modo, embora ele tivesse dito mais cedo que compareceria ao jantar. Mas, se desejasse realmente falar com ele, ou até mesmo vê-lo... Bom, naquele lugar, precisaria de uma luneta. Ou de um megafone. Provavelmente dos dois.

Com um floreio, um criado abriu um guardanapo e o estendeu sobre as pernas dela. Vinho foi servido em sua taça. Outro criado apareceu com uma terrina de sopa, que ele serviu com uma concha na tigela rasa diante de Khaleesi. Aspargo, ela pensou, pelo aroma.

— O cheiro da sopa é divino. — comentou, casualmente, numa tentativa um tanto patética de puxar assunto. Mas tinha de começar de algum lugar, imaginou.

À distância, viu o Comandante sinalizar para um criado.

— Você ouviu. A Duquesa deseja mais vinho.

Já tinha tolerado o suficiente.

Khaleesi empurrou a cadeira para trás, levantou-se e, sem aguardar que um criado viesse realizar o serviço para ela, pegou a tigela de sopa com uma mão e a taça com a outra. Os criados se entreolharam, numa mistura de pânico mudo e absolutamente nenhuma ideia de como prosseguir, enquanto ela percorria a extensão da mesa, terminando sua pequena jornada ao colocar o jantar de um dos lados do Comandante.

Ele pareceu incomodado. Ela honestamente não poderia se importar menos com isso.

— Comandan... — Khaleesi interrompeu-se no meio de sua segunda tentativa de iniciar um diálogo, franzindo o cenho. — Como eu devo chama-lo agora que estamos casados? Com certeza “Comandante” parece pouco apropriado, e “Vossa Graça” ainda menos.

Ele não parecia concordar muito com seu posicionamento. Contudo, de um modo ou de outro, respondeu:

— Barclay. Ou Duque. O que preferir.

Céus. Barclay? Duque? Será que o homem algum dia presenciara em sua frente um casamento? Ou já vira um casal casado? Não que Khaleesi acreditasse que chamar um ao outro de maneira mais informal fosse algo, de fato, muito relevante. Mas parecia ser um começo. Provavelmente seria difícil criar qualquer relação que fosse referindo-se um ao outro de uma maneira tão empolada.

Não estava ali para usar títulos e falar sobre o clima.

— Sou sua esposa. Isso deve significar que tenho o privilégio de chama-lo de algo mais que seu título, não? Do que o chamavam quando era mais novo, antes de herdá-lo? Você não era Barclay, então.

— Eu era tratado por meu título de cortesia.

Não serve.

— E quanto a seu nome de família?

— Gillingham? Não costumo utilizá-lo.

Khaleesi também não sentia muita vontade em utilizá-lo.

— Seu nome de batismo, então?

— Acredito que Duque ainda seria o mais adequado.

Era exaustivo o modo como ele se desviava. Khaleesi mal conseguia acompanha-lo. Na verdade, estava com dificuldade em acompanha-lo desde o momento em que havia o conhecido, naquela fatídica tarde em que ele lhe propusera casamento. Khal lutava para compreender as intenções do Comandante, duelava com sua frieza. Adaptava-se às próprias reações impulsivas que ele parecia fazer florescer nela.

Ele era exaustivo. Mais que um homem, aquele sujeito era um ginásio. E ela precisaria ser a melhor das atletas, se desejasse vencê-lo.

Não. — respondeu. — Não, querido marido, acredito que este não seja adequado, de modo que não vou escolhê-lo.

O Comandante encarou-a fixamente. Os olhos azuis inescrutáveis perderam toda a emoção. E isso era pior do que qualquer emoção que pudesse ter demonstrado. Khal preferia que ele parecesse aborrecido, incomodado. Qualquer coisa que pudesse ser lida.

Mas intimidada pelo fato ou não, ela negou-se a desviar os olhos.

— Se significa tanto para você, madame, — ele disse, por fim. — Aiden deve servir. Isso significa que devo chama-la de Khaleesi, imagino.

Apesar de sua disposição intrépida de desafiá-lo, Khaleesi sentiu-se – o que foi um tanto inconveniente – um tantinho trépida. Embora estivesse em seus planos, dar um passo a mais para o mínimo de intimidade a deixou um pouco desconcertada. E chamar seu marido pelo nome – Aiden— parecia estranhamente íntimo.

Ela notou, não pela primeira vez, que não sabia quase nada a respeito dele. Ainda assim, o homem era seu marido. Era esquisito, pensou, estar casada com um estranho. E era estranho não sentir-se confortável em chama-lo pelo próprio nome. Estranho e um tanto patético. Sim, o casamento deles fora um arranjo atípico, para dizer o mínimo. Sim, ela sabia que nunca passaria de uma mera formalidade.

Ainda assim, por mais bizarro que fosse, Khaleesi percebeu que, além dos motivos que já construíra em sua própria mente, ela ansiava por um pouco de intimidade. Após ter estado sozinha durante anos, com exceção de sua família e de Agatha, ela sentia-se faminta por algum tipo de verdadeira intimidade, qualquer que fosse. Desejava criar novos laços, vivenciá-los. E agora ela estava fadada para sempre a um futuro com um homem que não desejava de modo algum o mesmo.

Nunca sentira-se tão sozinha em toda sua vida.

O jantar acabou sem mais conversas.

Quando recolheu-se aos próprios aposentos, Khaleesi só desejava deitar na própria cama e esperar que o próximo dia chegasse. Talvez ele trouxesse, junto com a manhã, mais ideias de como ela poderia cumprir seu objetivo de tentar completar um verdadeiro diálogo com seu marido. Mas acabou sentando-se diante da pequena escrivaninha na sala de estar dos aposentos dourados, que supostamente dividia com o Comandante. Os quartos eram separados por uma sala de vestir e um banheiro, além da sala de estar.

Ela ali que ela estava quando ele subiu após o jantar. Escondendo o espanto em vê-lo, ela limitou-se a levantar a cabeça e explicar que estava escrevendo para o irmão.

Ele sentou-se numa poltrona funda e ficou observando-a. Ficou tamborilando com os dedos na poltrona enquanto a esposa secava a tinta da carta que fizera, dobrava a folha e a colocava de lado. Então, incapaz de continuar a própria tarefa, incomodada como estava com a vigília, Khaleesi levantou-se, com certa impaciência, e sentou-se no pequeno sofá de frente a poltrona que seu marido escolhera.

— Por que aceitou o jantar? — ela perguntou, sem prelúdios. O questionamento implícito ali era “por que aceitou, se ficaria negando-me até mesmo a chama-lo pelo seu nome?”

Não que ele soubesse de seus planos particulares. Mas ele fizera com que ela perdesse um precioso tempo. E pior. Fizera com que ela parecesse uma pateta, insistindo em algo tão tolo, que deveria ser extremamente simples. Natural. Mais que isso; a fizera perder quase toda esperança de um dia conseguir construir uma relação minimamente tolerável no próprio casamento.

Se o homem hesitava até mesmo em ser chamado pelo próprio nome, que saída ela poderia sonhar ter para aquele tormento?

— Eu poderia ter recusado. — argumentou o Comandante, após um minuto. — No entanto, a questão é que, embora esse não seja o caso, se eu quiser posso partir amanhã e retornar ao meu modo de vida habitual, como se nada houvesse acontecido. No seu caso não será tão fácil. Continuará aqui, perto de vizinhos que não a conhecem, alguns que talvez nem simpatizem com você, numa casa grande demais, com pessoas estranhas que agora é forçada a chamar de família. Sozinha, sem o marido. Não quero que as pessoas pensem que não há nenhuma gentileza, nenhum... Respeito, entre nós. Confesso que fiquei surpreso quando me fez aquele pedido mais cedo... E quando falou aquilo no jantar, mas não levei muito tempo para perceber que na verdade é apenas algo necessário.

Khal baixou um pouco a cabeça. Os modos dele eram muito formais, como sempre. Seria bondade ou senso de dever que motivava aquele inesperado gesto? Ela já tivera alguns vislumbres de uma certa gentileza na noite do baile, no modo como ele conferira seu pé possivelmente machucado, até mesmo humor da parte do Comandante, naquela mesma noite, mas...

Ele nunca sorri.

— O Comandante me deixa nervosa. — admitiu ela, depois de algum tempo em silêncio.

— Deixo? — ele parou de tamborilar os dedos e franziu o cenho em direção ao topo da cabeça baixada da esposa. — Por quê?

— É tão silencioso. — ela respondeu. — E fica me encarando.

Ele levou um minuto um pouco longo para dizer:

— Perdão.

Foi a vez de Khal franzir o cenho, erguendo os olhos para ele.

— Afinal, você sorri em algum momento? — perguntou. — Nunca o vi sorrir, nem uma vez se quer.

— Parece que não tive muito motivo. — retrucou ele.

É claro. Desde o momento em que tinham se conhecido, em seu casamento ou mesmo naqueles dias que tinham se seguido... O Comandante não tinha tido motivos para sorrir, assim como ela. O que eu esperava que ele dissesse? Que me abrisse seu coração e me contasse uma história trágica que me faria compreendê-lo e perdoá-lo pela frieza extrema e rude com que me trata?

Ela fora burra em achar que poderia forçar aquele homem a dizer qualquer coisa de significativa sobre si mesmo. E que um mero jantar o incentivaria a isso.  

— Lamento por isso. — optou por dizer, e levantou-se para retornar ao trabalho de sua carta.

Mas, quando ela menos esperava, ele murmurou, de súbito:

— Sou um assassino. Mato para ganhar a vida. Não há nada muito divertido a esse respeito.

Khal levantou os olhos para ele, surpresa. O que era aquilo, de repente? Ele abrira a boca para evitar o constrangimento do silêncio? Esperava que aquela declaração fizesse com que ela sentisse pena dele? Não. O Comandante não era o tipo de homem que buscava a compaixão ou empatia dos outros. Muito menos de sua esposa.

Aquilo tinha de ser, de algum modo, uma expressão sincera. Ou o mais perto que ele conseguisse disso.

Khaleesi voltou a se sentar.

— É assim que se vê? — perguntou. — Como um assassino?

Talvez ele tivesse desejado o contrário. Talvez quisesse chocá-la. Talvez quisesse sacudi-la e tirá-la da complacência da maior parte dos ingleses, motivada talvez pelo fato de a guerra estar longe demais deles, que estavam a salvo em sua ilha. Mas Khaleesi era diferente deles. Ela conhecera a guerra de perto e sentira na pele a dor que ela causava.

— Dizem que toda mulher é apaixonada por um uniforme — falou o Comandante. — No momento, acredito que toda a Inglaterra, homens e mulheres, ama um uniforme, desde que seja britânico, prussiano ou russo. Todos amam assassinos.

Não foi do cabimento de Khaleesi negar aquelas palavras, embora ela achasse que elas soassem um pouco inesperadas... Definitivamente não as esperava ouvir dos lábios de um soldado inglês.

— No próximo ano — ele prosseguiu. — ou no ano seguinte, talvez o inimigo seja a Rússia ou a Prússia ou a Áustria... E a França seja nossa aliada. A Inglaterra, é claro, sempre estará ao lado do que for bom e justo. Ao lado de Deus... Deus fala com sotaque britânico, sabia disso? Um sotaque inglês refinado, das altas classes, para ser mais preciso.

Khal entrelaçou os dedos uns nos outros, mas continuou a fitar o marido.

— Sou um assassino — ele repetiu. — A grande vantagem de ser um soldado, é claro, é que jamais serei enforcado pelos meus crimes. Em vez disso, serei festejado e adulado. As damas continuarão a se apaixonar por mim, ainda que eu seja casado... E ainda que eu não sorria.

Ela continuou encarando-o por muito tempo mesmo depois dele parar de falar. Estava abismada só pelo fato dele ter dito tanto em tão pouco tempo, expelindo tantos pensamentos tão rapidamente... Ela poderia arriscar até que poderia haver algum sentimento ali no meio. Embora ainda não conseguisse distinguir qual era.

Presa em seu próprio ressentimento pela guerra e o que ela fizera com sua própria vida, mesmo Khal às vezes esquecia-se que um exército, inimigo ou não, era feito de homens reais, com sentimentos de verdade e consciências próprias. Recordar-se disso era muito mais fácil que admitir a si mesma que seu marido pudesse ser um destes.

O Comandante pareceu um tanto desconcertado após as próprias palavras. Como se tivesse notado, assim como Khaleesi, seu excesso repentino de eloquência, e isso tivesse lhe deixado desconfortável. Ele se remexeu na cadeira... Então colocou-se de pé, virou-se de costas para a esposa e baixou os olhos para o carvão ainda não aceso na lareira.

— Peço que me perdoe. — falou. — Dei uma resposta tola a uma pergunta simples sobre por que eu não sorria. Acho que sorrio, sim, madame. Mas se isso realmente não acontece, sem dúvida é porque sou um Gillingham. Por acaso já viu Morgan sorrir?

Ele estava tentando despistá-la. Mas ela não permitiria que ele mudasse de assunto.

— Por que se juntou ao exército?

Seu marido inspirou lentamente.

— É o que um filho de aristocrata faz para provar seu valor. — ele respondeu. — Não sabia?

Khaleesi não cairia naquela, não tão fácil assim.

— Mas você nunca precisou provar valor nenhum. Foi o único filho de seu pai, não? Então sempre foi o herdeiro. Herdeiros são herdeiros, eles não precisam provar nada, e definitivamente não precisam entrar no exército. Alguns diriam que foi burrice, inclusive, arriscar a vida nisso, considerando o futuro que o aguardava como Duque  Barclay.

Ele não respondeu nada à aquilo, mas ela ainda não tinha parado por ali.

— Mas entrou no exército mesmo assim, e ficou lá durante todos esses anos, sentindo-se desse jeito — continuou Khal. — Por quê? Por que não vendeu sua patente? É um homem rico, que não depende de seu soldo.

— Existe algo chamado dever, madame. — seu marido respondeu, duramente. — Além do mais, a senhora me entendeu mal. Não disse que não gosto de matar. Disse apenas que minha vida de assassino não permite que eu seja um homem que ri de frivolidades.

Ele se fechara de novo, e Khaleesi perdera sua chance de fazê-lo falar mais.

Mas ela conseguira. Mesmo que por um breve instante, ela penetrara naquela armadura. Isso, por si só, já provara algo que ela até então sentia-se inclinada a não crer ser possível: Que havia alguém abaixo dela.


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Notas finais do capítulo

Então? O que me dizem? Me agraciem com suas opiniões aqui nos comentários, por favor. Adoro ouvir vocês
Um beijo, um queijo, e até!



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