1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 13
Capítulo XI


Notas iniciais do capítulo

Olááá, queridas! Tudo certinho?
Aparecendo para lançar mais um capítulo dessa historinha para seus olhos expectadores. Uma parte dele já estava pronta há um tempinho, e nesses últimos dias eu fiz um speedrun para terminá-lo e lançá-lo para vocês logo. Isso porque estou na última semana que, suspeito, será mais tranquila para mim. Não estou muito certa de quando sairá o próximo capítulo, porque na próxima semana meu job começa, e suspeito que a facul também retorne, de modo que ainda não sei bem ainda como minha rotina ficará. Em meus planos, vou conseguir equilibrar tudo bem e não planejo demorar mais que o comum para postar, mas who knows? Muitos surtos ainda podem ocorrer, por isso quero deixar um prévio pedido de desculpas caso esse se torne o caso.
Anyways, eu não vou desistir dessa história! Nem de vocês! Gosto muito dela, e estou gostando muito de escrevê-la e seguir nessa jornadinha com todas vocês. De verdade, é uma das poucas coisas que levantam meu ânimo nos momentos de surto XD
Enfim. Fiquem com o capítulo!



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Londres, 1812

 

Jo saiu cedo para caminhar.

O dia mal tinha começado, mas ela ficou mais que feliz quando a Senhorita Bianchi surgiu à porta da Casa Dashwood, com um convite direcionado à Cecily para dar um passeio pelo Hyde Park. Quanto mais próximo seu début estava, mais Ceci se via inquieta. Se tornara quase impossível fazê-la focar em suas aulas, e a governanta tinha tentado todas as abordagens possíveis, da mais bem humorada à mais rígida. A única coisa na qual sua cabeça parecia ser capaz de focar era nos bailes, saraus e visitas ao Almack’s que a aguardavam.

Naquela manhã, após passar duas horas tentando fazê-la prestar atenção nas partituras de um solo de piano particularmente simples que escolhera, na esperança de que ela conseguisse aprender algo. Não conseguira. De modo que a dispensara ao próprio quarto para uma pequena pausa e sentara, sozinha, na saleta adjacente que utilizavam para suas lições.

Tentou se concentrar no trabalho que tinha para fazer. Uma semana antes, Cecily terminara uma redação em francês que precisava ser corrigida. Também estava se aproximando o aniversário de Lady Dashwood, durante o qual Cecily tinha dito que desejava tocar e cantar algo para sua mãe, como um presente. Ela pedira a Ophelia sugestões do que poderia reproduzir. Algo alegre, brilhante e isabelino provavelmente seria a melhor escolha.

Seria Ceci atrevida o suficiente para tentar algo ousado como tentar harmonizar voz e piano ao mesmo tempo? Ela era bem capaz, Jo sabia. Seu canto era admirável, acima dos padrões comuns, embora às vezes ela se interrompesse na metade de uma frase e caísse na risada ao se atrapalhar no tom ou na harmonia da canção.

Pensar no aniversário de Lady Dashwood fez com que Ophelia pensasse no début de Cecily. E o début de Cecily fez com que se lembrasse, mais uma vez, que o dia em que a deixaria e deixaria aquela sua função estava próximo. Jo já se resignara com o fato, de certo modo. E decididamente estava feliz em ver como sua pupila crescera nos últimos quatro anos, e como estava pronta para enfrentar a sociedade e tudo o que lhe esperava.

Além de uma dama nata, Cecily era extremamente inteligente. Tinha um grande potencial e um grande interesse em ciências, matemática e outras áreas que normalmente não eram abordadas à nenhuma mulher. Mas Jo cultivara nela aquele interesse, e ele florescera com o passar do tempo, criando raízes na jovem. Sabia que ela não aspirava nenhuma grande ambição relacionada a isso. Ceci tinha uma perspectiva de futuro muito mais simples e pacata, e estava satisfeita de verdade com aquilo.

Mas Ophelia orgulhava-se por ter mostrado a ela que havia mais na vida além de casamentos, casas a gerir e filhos a ter. Não que isso fosse algo ruim. E não que uma coisa tornasse a outra desprezível. Mas era importante lembrar que o mundo era bem mais amplo que aquilo. Ao menos, deveria ser. Para todos. Inclusive para as mulheres.

No caso de Jo, nenhuma das oportunidades era muito plausível. Seu interesse por ciência, em especial astronomia, estava eternamente fadado ao patamar de hobbie. Não só por conta de seu sexo, mas por conta de sua classe também. E as oportunidades de casamento, inclusive as oportunidades de amores não sérios, não se apresentavam com frequência para professoras.

Este último não era completamente impossível. Só extremamente improvável.

E aquela junção de pensamentos, diferentemente do habitual, deixaram-na extremamente desconsolada, de repente. Como se ela já não tivesse ciência daquilo há anos, ou como se fosse algo realmente tão terrível. Ela estivera bem tranquila, desde o casamento do Duque de Barclay, mas agora parecia que tudo nela, todas as partes de seu corpo, sua cabeça e suas emoções, giravam num redemoinho.

Leu atentamente a primeira das quatro páginas da redação de francês, e quando estava chegando ao final percebeu que não tinha entendido uma só palavra. Era muito bom recordar que, por hora, ainda era uma professora com uma aluna. Esse era seu papel principal e o único verdadeiramente importante em sua vida, se lembrou severamente.

Era professora.

Começou a ler a página desde o começo, de novo. Mas foi nesse momento que Cecily irrompeu na sala, anunciando o convite que tinha recebido. Dessa forma, alguns minutos depois, Jo viu-se saindo na companhia das duas jovens em direção ao Hyde Park, com Doninha, a cadela de estimação de Cecily, seguindo em seu encalço. A pobre da criatura precisava sair um pouco também, às vezes, mas vivia tão presa quanto sua própria dona.

Já dentro do parque, Ophelia caminhava a passos curtos, impenitente, enquanto Doninha saltitava a seu lado e de vez em quando disparava atrás de algum esquilo descuidado o suficiente para descer da árvore onde estava, ou para erguer a cabeça acima da grama. Embora talvez não fosse falta de cautela, mas desprezo da parte dos roedores, pois Doninha não chegava nem perto de localizar a presa.

Ah, era muito bom enfim respirar ar fresco, ela pensou. E era glorioso não ver nada acima além de espaço aberto, primeiro na pista principal de caminhada, depois, quando a senhorita Bianchi encontrou com sua mãe e Jo pôde deixar as duas jovens aos cuidados da senhora, em meio às trilhas menores, rodeadas de margaridas e botões-de-couro espalhados pelo gramado.

Era puro prazer permitir que seu passo se alongasse além do que seria considerado adequado para uma dama ou uma mulher de sua posição, e saber que pelo menos por um tempo o horizonte era a única fronteira a contê-la. Não havia ninguém para testemunhar sua leve indiscrição, ninguém para arfar de horror ao vê-la. Porque a maioria dos caminhantes e cavaleiros estava na pista principal. Jo podia ouvir suas vozes e risadas ao longe.

Ela ocasionalmente começou a parar e colher botões de ouro, enquanto Doninha brincava ao redor. Então, com o pequeno ramalhete completo, voltou a caminhar a passos largos, uma sebe espessa de um lado, todas as belezas frescas da natureza esparramadas do outro, o céu se estendendo acima de sua cabeça com uma densa camada de nuvens através do qual ela podia ver o disco brilhante e difuso do sol. A brisa estava um pouco vigorosa e levemente gelada, mas ela não sentia o desconforto do frio. Na verdade, o saboreava.

Parou por um momento e levantou o rosto, aproveitando o pouco de sol que se entremeava pelas nuvens. Então, de súbito, foi atingida de forma inesperada não por outra brisa suave, mas por uma dura ventania de solidão, tão intensa que lhe roubou o fôlego e o desejo de resistir.

Solidão?

Nunca se considerara uma pessoa solitária. Sim, enfrentara alguns períodos bastante desagradáveis em sua vida, principalmente aquele após o incêndio, mas nos últimos anos tinha construído uma vida de paz e contentamento. E estava sempre rodeada por outros. Haviam seus colegas de trabalho, os outros criados da Casa Dashwood. Havia Cecily e a própria família Dashwood, que nunca a tinham destratado ou desconsiderado de nenhuma forma, pagando seu salário religiosamente e dando-lhe um lar em sua residência. Além de sua própria família – que, embora estivesse distante, mantinha um contato frequente e afetuoso consigo.

Sempre se considerara uma mulher de sorte. Então de onde surgira aquela súbita solidão? Aquela onda gigante que fazia seus joelhos tremerem como se houvessem lhe roubado o fôlego. Por que, de repente, sentia a aspereza das lágrimas presas na garganta?

Solidão?

Não, não era uma pessoa solitária, só estava um tanto inquieta desde que visitara Ade no Natal anterior. E preocupada quanto à sua inevitável partida da casa Dashwood em busca de um novo emprego e, por conseguinte, de um novo lar. Afinal, se adaptara a viver ali e seria desafiador enfrentar o mesmo processo novamente, num lugar novo repleto de pessoas e hábitos novos.

Sentia pena de si mesma, era isso. Mas nunca sentia pena de si mesma. Bem, quase nunca. E, quando isso acontecia, se esforçava para deixar logo o sentimento de lado. A vida era curta demais para perder tempo com lamentações. Havia sempre muito o que comemorar e, de qualquer modo, ela não tinha o direito de lamentar.

Mas e a solidão? Por quanto tempo ficaria à espreita, esperando o momento certo para o ataque? Sua vida era mesmo tão vazia quanto parecia naquele momento? Tão vazia quanto aquela trilha isolada e inóspita?

Ah, ela deveria ter ficado em casa trabalhando.

Jo espantou aquele pensamento. Olhou para o trecho que havia percorrido e então para frente, por onde a trilha seguia incansavelmente vazia. Mas não realmente. Não estava completamente vazia. Ela notou que havia uma figura vindo na direção contrária à sua, caminhando com tranquilidade despreocupada. Mesmo de longe, notou que era um homem, graças às roupas que vestia. Ia andando num ritmo constante, olhando distraidamente para o lado, com uma maleta abaixo de um dos braços.

Ophelia exalou um longo e audível suspiro. Sentiu um aborrecimento irracional por ter sua caminhada solitária interrompida. Foi como se tivesse assumido que aquela trilha em específico era sua. Mas é claro que não era. Fazia parte do parque, logo, era direito de todos caminharem por ali. Mas a razão para sua consternação mudou no momento em que reconheceu o rosto do sujeito, quando ele já estava um pouco mais próximo.

Havia espaço para os dois, pensou. A trilha era bastante larga, para permitir a passagem de carruagens, de modo que ela poderia passar por ele, acenar educadamente e seguir seu caminho, talvez até sem que ele a reconhecesse. Fora uma agradável surpresa que ele a tivesse desculpado pelo seu primeiro contato desastroso, é claro. E ela achara sua companhia agradável durante a curta conversa que haviam tido depois, após passado o primeiro momento de constrangimento.

Mas Jo não queria encontrar com ele de novo. Ao menos, não ali. Não naquele momento específico. Ficou parada, por um momento, decidindo o que fazer, enquanto o senhor Holroyd continuava caminhando, totalmente inconsciente de sua presença. Ele segurava um chapéu numa das mãos. Ela então lembrou de como havia sido fácil falar com ele, fácil demais.

Avançou, com a intenção de virar de costas e caminhar no mesmo sentido que ele, impedindo-o de ver seu rosto mesmo se olhasse em sua direção. Mas ele deve ter captado o movimento pela extremidade do olho, porque virou a cabeça, a viu e parou.

Teria sido grosseiro continuar andando no outro sentido. E, claro, a verdade era que não desejava seguir de volta por todo o caminho que já fizera, mesmo que não desejasse andar com ele tampouco. A contra gosto, avançou em sua direção.

— Senhor Holroyd. — disse, talvez com uma simpatia meio forçada demais, quando ficou perto o bastante para ser ouvida. — Estava caminhando com Cecily e uma de suas amigas, então tive a chance de escapar e decidi vir dar uma caminhada sozinha.

Pareceu que ele iria tocar a aba de seu chapéu, em cumprimento, mas então lembrou-se que o estava carregando.

— Lamento ter chegado para incomodá-la então, senhorita Wright. — falou educadamente. E sua atitude fez com que Ophelia se sentisse um tantinho envergonhada por sua falta de disposição em encontrar com ele. O pobre do sujeito não tinha culpa das mazelas que circundavam sua mente.

— Ah, não tem por que. — respondeu, com mais leveza. Sorriu, educada. — Acho que sou eu que incomodo você, na verdade.

Ele parara a pouca distância dela, na beira da trilha. Por um momento, pareceu não saber o que responder, além de lhe oferecer um olhar cortês que dizia que não, claro que não estava atrapalhando-o. Mas então pareceu se lembrar de algo.

— A senhorita Dashwood gostou do casamento? — indagou, com talvez mais interesse do que estava sentindo sobre o assunto.

Jo deu um sorrisinho amarelo.

— Ah, acho que sim. — falou. — Passou a semana tagarelando sobre isso, apesar de não ter sido uma festa propriamente dita. Acho que comparecer ao casamento do Duque de Barclay foi o evento de seu ano. Certamente fez muita inveja a suas colegas que só descobriram sobre pelas fofocas que correram após o evento ultra secreto.

Os dois sorriram um para o outro diante da imagem de Cecily se vangloriando por ter comparecido àquele casamento que fora, no mínimo, apático. O doutor, daquele seu jeito contido e enviesado que parecia bem característico seu.

— Eu deveria voltar para casa. — Ophelia disse, então, o sorriso desaparecendo. — Para lhe deixar em paz aqui.

Isso era o que ele desejava, certamente. Assim como era o que ela desejava. Não tinha ido até ali buscando companhia. Ninguém que seguia por aquela trilha o fazia buscando companhia. Por isso a governanta foi pega de surpresa quando o médico olhou-a por um longo momento, como se refletisse, antes de perguntar:

— O que você acha de caminharmos juntos por um momento?

— Ah. Bom, — olhou ao redor, por um momento indecisa. Então notou que já passara bastante tempo fora. Talvez estivesse na hora de voltar, de fato. — é claro. Sigo pela direita?

Posicionou-se ao lado dele, as mãos unidas reservadamente à frente do corpo.

Caminharam em silêncio por um bom momento. Ele ia contemplando o céu e as folhas das árvores que cobriam-no aqui e acolá, daquela perspectiva. Ela seguia olhando para frente, sentindo a ligeira brisa de antes atingir suas costas. Inspirou o ar fresco e sentiu que, aos poucos, seu estado de tranquilidade inicial estava retornando. Estava retomando as rédeas sobre suas emoções.

E a percepção do homem silencioso a seu lado se tornou quase agradável. Ele não fora forçado a caminhar ao lado dela. A convidara especificamente para fazê-lo, provavelmente por cortesia. Mas, de qualquer modo, ela poderia ter dito não e dado alguma desculpa. Não o fizera. Reconheceu que sua reação negativa inicial não tinha nada haver com ele em si, e muito haver com o estado anterior de seus pensamentos.

Aqueles persistentes e irracionais pensamentos.

— Você já se sentiu sozinho? — viu-se perguntando, de repente. E quando ele virou a cabeça para olhá-la, com certa surpresa, ela sentiu uma terrível onda de consternação invadi-la. Tinha mesmo posto aquilo em palavras? Em voz alta, em claro e bom tom para aquele desconhecido?

Ele franziu o cenho, por um momento. Talvez de confusão. Talvez estivesse achando-a uma esquisita agora, além de uma governanta sem muita capacidade de dominar suas próprias emoções e reações em circunstâncias de pressão. Mas o médico não disse nada disso, nem abriu um sorriso sem graça, tentando desviar de assunto. Em contrapartida, indagou:

— E você?

Ophelia desviou o rosto, pega despreparada por aquela resposta. A voz dele saíra muito suave, em contraponto à sua expressão. E Jo sentia-se cada vez mais constrangida por ter trazido aquela pauta à tona tão de repente. O que diabos tinha lhe possuído? Ela estava somente aproveitando a caminhada, reconhecendo a boa companhia que ele era mesmo em silêncio e então...

Ele esperava uma resposta. Jo precisava dá-la. Então decidiu usar os mesmos pensamentos que usara para combater aquela percepção que tivera mais cedo:

— Eu vivo numa casa de aristocratas. — respondeu. — Quase não tenho um minuto para mim. Tenho Cecily, que preenche todo o meu tempo livre quando está acordada. E tenho colegas queridos entre os criados. Além da minha família, que me escreve sempre. Como poderia sentir-me sozinha?

— Mas se sente? — insistiu ele, com delicadeza, após um minuto em silêncio.

De repente compreendeu que sim, que tinha verbalizado aquela pergunta não por curiosidade, mas por causa do que estava pensando e sentindo antes. Por algum motivo, achara que ele lhe daria uma resposta positiva, e assim não se sentiria tão só naquele barco. O que era ridículo. Porque não sabia praticamente nada sobre o homem, e porque era patético buscar consolo de algo que se quer merecia toda esta validação.

— Eu nem se quer sei o que é a solidão. — retrucou. — Se não é literalmente ser uma pessoa solitária, o medo da solidão é então o medo de estar sozinho consigo mesmo? Se for, não sinto esse medo. Eu gosto de estar sozinha.

O médico pareceu pensar sobre isso por um momento.

— Do que você tem medo, então?

Nesse momento, Jo parou de caminhar. Do que tinha medo? Do que tinha medo de verdade? Qual era a origem para aquele sentimento estranho e inoportuno? Nada lógico vinha à sua mente. A não ser o fato que era tola por se quer cogitar dar ouvidos aquele pensamento.

Balançou a cabeça bruscamente.

— Ah, o que eu estou dizendo? — forçou-se a dar uma risada, sem muito humor. — Eu nunca disse a ninguém essas coisas. Eu não tenho se quer o direito de pensa-las. Me desculpe, senhor Holroyd. Acho que acabei divagando em voz alta e o entediando com meus pensamentos estranhos.

Para a eterna gratidão de Jo, ele não insistiu na conversa. Nem pareceu minimamente transtornado pelo seu pequeno e repentino deslize emocional. Somente recolocou o chapéu na cabeça, olhando-a de modo solidário:

— Às vezes é mais fácil confiar em um estranho simpático que num amigo ou parente.

— Você é isso? — Jo perguntou, virando-se para olhá-lo. O sol estava sobre o rosto dele nesse momento, mas a aba do chapéu o protegia das queimaduras.

Ele pareceu hesitar, por um momento, incerto sobre a reação dela quanto à definição que acabara de dar da recente relação de ambos.

— Um desconhecido simpático? — indagou. — Acho que sim. E a senhorita já reparou que as pessoas são capazes de reconhecer qualquer vício ou defeito, em vez de reconhecerem que se sentem solitárias? É como se fosse algo vergonhoso.

— Eu sinto-me sozinha, às vezes. — Jo admitiu, meio atropeladamente. — E sim, acho vergonhoso. Além de uma ingratidão. Eu tenho todas essas pessoas perto de mim.

— Eu também tenho amigos. — o médico falou. — Três bastante íntimos, que posso visitar em qualquer momento e com quem posso falar sobre qualquer assunto que exista sob o sol, além de outros que fiz desde que mudei para Londres. Também tenho um ajudante que trabalha comigo quase vinte quatro horas por dia, e uma mulher que me ajuda a organizar minha casa e meu trabalho também.

Ele não disse nada sobre ter uma família, ela notou. Nem pais. Nem irmãos. Ninguém.

— Mas você se sente sozinho? — supôs.

— Sinto-me sozinho. — reconheceu ele, sem parecer ter tantos problemas em admitir o fato quanto Ophelia.

Jo virou a cabeça para encarar o reflexo do sol nas folhas das árvores e nas flores que forravam a grama, tornando suas cores primaveris mais intensas. Não lembrava de ter dito aquelas palavras em voz alta antes, mesmo falando sozinha. E ainda sentia, em parte, que elas expressavam um sentimento ingrato e exagerado. Mas sentiu-se estranhamente confortada por aquele estranho e sua disposição em conversar sobre um assunto que parecia muito delicado e privado. Ao menos, para se falar com alguém que vira só duas vezes antes.

Ela estava mesmo grata. Ele tinha lhe oferecido um vislumbre de seus próprios pensamentos e sentimentos, como se os enquadrando dentro da experiência humana comum de sofrimento e incerteza, como se nos próprios sentimentos dela não houvesse nada de extraordinário ou patético demais. Quase a tinha convencido que tinha o direito de se sentir desse jeito.

— Obrigada. — falou, inesperadamente. Então inspirou, como se quisesse falar algo mais, mas desistiu no meio do caminho. Ainda sentia-se meio sem graça. Mas bem menos que de início. Definitivamente, o modo como ele reagia com total naturalidade e calma contribuía muito.

Contudo, sentia-se um pouco inquieta na presença dele. Não deixou de notar como, assim como quando tinham se encontrado no casamento do Duque, acabara falando mais do que pretendia. E sobre um assunto que jamais abordava.

— É melhor eu voltar para casa. — emendou. — Tenho trabalho a fazer. E Cecily já deve estar me procurando. Obrigada pela caminhada, senhor Holroyd. Foi um trajeto muito agradável.

— Talvez, se algum dia a senhorita Dashwood estiver novamente ocupada, e a senhorita achar algum tempo livre e desejar sair novamente... Poderíamos caminhar novamente, em outra ocasião, senhorita Wright. Talvez... Bom, não tem importância.

O médico pareceu meio embaraçado, de repente, de um jeito bastante meigo, até. Mas Ophelia tentou conter o riso, para não constrangê-lo ainda mais.

— Eu adoraria. — respondeu, sem pensar muito antes de responder.

— Sim? — ele parou e se virou para olhá-la de novo, como se estivesse surpreso por vê-la aceitar. — Este sábado, talvez? À mesma hora? Nessa mesma trilha?

— Sim. — Jo concordou, acenando.

Então os dois se encararam por um momento um tanto longo, que corria o sério risco de tornar-se desconfortável.

— Até amanhã, então. — ela disparou, antes de se virar e sair caminhando – com passadas longas – em direção a uma subida que daria na pista principal do parque.

No meio do caminho, Doninha surgiu de um arbusto. Ophelia quase se sentiu culpada por ter se esquecido da cadela por aquele par de minutos em que estivera andando com o Senhor Holroyd. Mas logo recuperou-se, galgando seu caminho de volta para a civilização comum e fugindo de seu recluso abrigo de reflexão – inicialmente solitária, então acompanhada.

Ela aceitara mesmo reencontrar com ele? Por mais que tivesse reconhecido sentir-se inquieta em sua presença? Balançou a cabeça. Precisava tomar mais cuidado com o que dizia.

— Vamos, garota. — chamou o animal, enquanto diminuía o ritmo dos próprios passos. — Já é hora de tirar essas coisas idiotas da cabeça. 

 

 

Mais tarde, naquela noite, Agatha ajudou Khaleesi a dar os toques finais na sua aparência para o baile.

Lady Gillingham fora uma mentora particularmente difícil. Desde o momento em que tinham deixado a Srta. Baxter, mais de uma vez Khaleesi tinha se aborrecido com ela. Como na manhã em que o cabeleireiro da Condessa chegara à Mansão da Viúva, como era chamada a casa dela, com instruções de cortar os cabelos de Lady Aiden Gillingham mais curtos, no estilo em voga na época. As pessoas daquela família adoravam dar ordens, em vez de consulta-la e se contentarem em oferecer conselhos. Khal permitiu que o homem cortasse seus cabelos em um estilo que ambos concordaram que iria melhorar sua aparência, mas sem encurtá-los demais.

Havia também pessoas sobre quem aprender. Agatha continuava sendo muito eficiente, apesar do inchaço em seu ventre estar cada vez mais evidente. Tinha ajudado Khal a decorar todos os nomes que precisava aprender para aquela noite. Não só nome de pessoas, como de posições e quem era mais importante que quem. Khaleesi tinha vivido na Inglaterra nos últimos cinco anos, mas não costumava ir muito a Londres, de modo que não conhecia muito bem a toda aquela gente. Mas teria de conhecer, agora que era a Duquesa de Barclay.

Havia todo um sistema hierárquico a ser memorizado. Ela precisava lembrar que havia certos cavalheiros com quem deveria dançar, se lhe pedissem, e outros com quem não deveria. Certos convites deveriam ser honrados depois daquele baile de apresentação, outros eram opcionais, dependendo dos compromissos que ela pudesse vir a ter e de suas inclinações pessoais. Outros ainda deveriam ser firmemente recusados. E também havia... Ah, como ela comentara com Agatha naquela tarde... Havia outros milhares de coisas a aprender. Era um pouco intimidante, mas principalmente era empolgante e desafiador. Nem mesmo o jeito estraga prazer da Condessa conseguia arruinar isso.

Khaleesi não gostava de sua sogra. Ela raramente se aproximava e, quando estava presente, a tratava com um desdém frio que revelava muita coisa. O Comandante passava a maior parte dos dias e das noites fora, retornando apenas para jantar em casa e para dormir num quarto separado do de Khaleesi. Morgan, por sua vez, era tão reservada e contida quanto os outros dois. Mas uma estranha aliança parecia ter sido criada entre ambas desde o dia de seu casamento, e Khaleesi decidiu que gostava dela. De verdade. Sentia que, abaixo de seu escudo de frieza, nela havia certa humanidade que faltava em seu irmão e em sua mãe.

Lorde Beaumont – James, como ele insistira que ela o chamasse – parecia ser o único ser humano normal da família. Foi com o cunhado que Khal aprendeu a valsar. A Condessa tinha chamado um professor de dança, presumindo, ao que parecia, que uma nórdica selvagem criada no campo teria dois pés esquerdos. Mas Khaleesi sabia dançar. Só não sabia muito bem os passos de algumas danças inglesas mais recentes, pois não tinha tido a oportunidade de praticar.

Ela gostou das aulas de minueto e de valsa que teve durante a manhã e a tarde anteriores ao baile. James se oferecera para ser parceiro de dança da cunhada depois que ela mencionara as aulas a ele durante o café da manhã, e seguira os passos com Khal com uma paciência e bom humor admiráveis. Ela acabou se dando conta que o cunhado era realmente simpático, de seu próprio modo discreto. E com certeza ele sorria bastante, para compensar a sisudez do resto da família.

Quando a hora do almoço tinha chegado, ele tinha parado bruscamente o treino e dito:

— É melhor descermos. — oferecera o braço à Khaleesi. — Gillingham não achará a menor graça se nos atrasarmos. Muito menos mamãe.

— Ele acha graça de alguma coisa? — Khal tinha retrucado, pousando o braço sobre a manga dele. Então indagara algo que tinha se perguntado desde o primeiro momento em que tinha colocado os olhos sobre seu arrogante e antipático marido. — O Comandante é um homem infeliz, James? Ou apenas naturalmente frio?

Seu cunhado parara, então, por um momento. Como se hesitasse. Então dera de ombros.

— Ninguém sabe. Ele nunca permite que ninguém se aproxime o bastante para saber. Nem mesmo Morgan.

Mas, no dia em que eles haviam chegado na casa da Condessa, sua sogra parecia ter conseguido penetrar aquela armadura. Talvez ainda houvesse alguém dentro dela.

Parece que estou de frente ao fantasma de meu sogro. Foi o que a Condessa dissera. O que indicava que seu sogro tinha sido o último duque de Barclay, não seu marido. E isso batia com o fato que o Comandante tinha dito que a mãe nunca fora duquesa. Khaleesi sabia tanto sobre o avô de seu marido quanto sabia sobre ele. Não fazia ideia de que tipo de pessoa o antigo duque tinha sido. Mas queria saber, agora.

Khaleesi esperou o baile com animação e talvez um pouco de temor. Quase todas as suas roupas novas tinham chegado. Ao menos, a parte que fora comprada já pronta, não encomendada. Com exceção do vestido para o baile. As mãos da Srta. Baxter e de suas costureiras certamente tinham sido destruídas nesse processo. Esse vestido, em particular, fora guardado em um armário no quarto de vestir, cuidadosamente embalado. Khaleesi ficava tensa sempre que pensava nele.

Tensa, determinada e bastante orgulhosa de si mesma.

Se Kishan, seu irmão, pudesse vê-la naquele momento...

Khaleesi estava sentindo muita falta dele. Teria feito de tudo para dividir com ele o que tinha acontecido durante aqueles dias. Ele certamente teria feito ela rir, dando um olhar mais satírico a toda aquela provação que estava sendo seu casamento. Se perguntou o que ele tinha achado daquela união apressada e súbita. Teria ficado aborrecido por ela, ou teria acatado com a decisão do pai, como sempre fazia?

Mas o Comandante tinha dito que logo poderiam visitar sua família. De modo que poderia perguntar isso a ele, diretamente.

Era esse pensamento que ela manteve em mente enquanto descia as escadas do quarto que lhe fora designado, na Mansão da Viúva, para onde a família de seu marido – sua família – a esperava.

Seu vestido era de um veludo pesado, com barras cravejadas com pequenas pérolas cintilantes, cintura alta e um decote que mostrava generosamente seu colo. Seus sapatos rasteiros abraçavam seus pés como se fossem pantufas. O cabelo tinha sido preso no alto, com muita elegância, numa profusão de cachos entre os quais Agatha prendera pérolas que combinavam com os detalhes de seu vestido. Khaleesi carregava um intricado leque de marfim numa das mãos.

Do tecido do vestido aos sapatos nos pés, estava totalmente vestida de negro.

— E então? — perguntou às figuras que a estavam encarando, quando desceu o último dos degraus.

— Escarlate? — James ergueu as sobrancelhas. Era essa a cor que Lady Gillingham tinha escolhido para suas roupas. Vermelho como as rosas que enfeitavam o salão de baile. — Por acaso estou daltônico, minha cunhada?

— Não, não está. — Khaleesi respondeu, com satisfação.

Lady Gillignham falou logo em seguida.

O que significa isso?! — exclamou. Seu choque foi tanto que ela até esqueceu de usar o lornhão.

— Estou atrasada? Me perdoe, mas estas pérolas ficavam caindo de meu cabelo. — respondeu Khal, terrivelmente calma.

— E onde enfiou o vestido que encomendei à Srta. Baxter? — insistiu sua sogra.

— Aqui está, madame. — falou, arregalando os olhos em falsa inocência. — É quase o mesmo que encomendamos. Só decidi fazer um ajuste na cor... Para combinar melhor com meu humor e minha opinião sobre essa situação.

Jacob, o filho mais velho de Morgan e do Lorde Beaumont, deu uma risadinha:

— Tia Khaleesi parece que vai para um funeral.

Morgan somente ficou encarando-a, aqueles olhos intensamente azuis e imutáveis como sempre. Mas, por um fugaz instante, Khal pensou ter visto um lampejo de satisfação atravessando-os.

— O vestido é preto! — a voz da Condessa Viúva saiu como um trovão quando ela declarou o óbvio.

— Sim, madame. — concordou Khaleesi, contendo-se para não abrir um sorriso triunfante.

Mas seu marido não permitiu que o caos prosseguisse – talvez porque não quisesse a esposa e a mãe saindo no tapa pouco antes do baile começar. Ou talvez porque não queria que Khaleesi aproveitasse mais de seu momento de glória. Ele tomou seu braço e começou a guia-la em direção ao salão, onde já haviam convidados esperando-os, ao que tudo indicava. Sua reação até então se limitara a um cerrar de lábios – E Khal não sabia como deveria interpretar aquilo. Como não sabia interpretar quase nada do que ele falava ou fazia.

Mas, se ele estivesse bravo, não permitiria que nenhuma reprimenda sua estragasse seu momento. Ele não tinha esse direito, não depois de tudo o que ela tinha aguentado – e teria que aguentar o resto da vida, agora que fazia parte daquela família. Decidida sobre isso, Khaleesi começou a falar, enquanto era levada para o salão.

— Comandante — ergueu o queixo — eu imagino que...

Eu imagino, madame — ele a interrompeu, muito bruscamente, o rosto severo. Ele estava impecavelmente vestido naquela noite; Enquanto ela deveria estar de vermelho, ele, tecnicamente, deveria estar todo em negro. Agora estavam os dois em paletas semelhantes, parecendo de fato estarem se dirigindo a um funeral. Mas a cor caía bem nele.

Se fosse sincera, Khaleesi teria de admitir que o homem era fascinante de um modo assustador. Ele sem dúvida tinha um belo perfil... E um físico que combinava perfeitamente com o rosto. Deveria ser reproduzido em mármore ou bronze, ela pensou, e exibido no parque de sua propriedade principal, para que futuras gerações de Gillinghans pudessem admirá-lo com fascínio.

 Ela franziu o cenho. Não, aquela não era uma descrição justa. Erik fora um homem bonito – de tirar o fôlego, na verdade. Mas Khaleesi não era mais uma debutante tola. E sempre fora esperta, de modo que não tinha sido só isso que tinha atraído ela a ele. Ele era afável, carismático e gentil. Uma pessoa boa, com inúmeras qualidades.

Qualidades que pareciam faltar no Comandante. O que acabava apagando toda a magia que talvez devesse haver ao redor de sua figura. Ele continuou:

— Que fez o que fez para nos colocar nos nossos lugares. Escolheu uma maneira impressionante de fazer isso e, por um golpe de sorte, saiu não apenas ilesa, como vingada também. — por fim, aqueles olhos terríveis encararam-na. E ela notou, estupefata, que algo pareceu estar contido neles... Humor? Um humor seco e duro. Mas parecia humor. Seria possível...? — Respeito qualquer um que consiga se impor aos Gillingham. Ouso dizer que não é fácil.

Ora, não havia resposta para aquilo, havia? Mas Khaleesi foi totalmente pega de surpresa. Desviou os olhos, um tanto constrangida. Mas ele continuou encarando-a fixamente.

— Achei que o senhor fosse me evitar a todo custo essa noite. — comentou, por fim.

— Achou? — perguntou ele, as sobrancelhas arqueadas, o tom arrogante. — É minha esposa, madame. E este é seu baile de apresentação. É claro que não iria evita-la.

Algo no tom dele deixou-a irritada. Falava dela como se fosse mais de uma de suas incontáveis propriedades, mais uma dentre as inúmeras pessoas que estavam abaixo de seu poder e influência. E por mais que estivessem casados...

— Isso não é verdade, Comandante. — Khal retrucou, lançando um olhar acusador em direção a ele. — Nós nos casamos por conveniência. A questão de sua superioridade e de minha subserviência nunca foi levantada entre nós, pela simples razão de que não sou sua esposa. Não de qualquer forma que realmente importe.

Agora ele também não parecia muito contente. Seu maxilar pareceu ficar mais trincado que o habitual.

— Tolice. — ele sibilou. Mas não disse mais nada.

De qualquer jeito, ela não teria prestado atenção. Porque a primeira visão que Khaleesi teve do salão de baile a deixou sem fôlego.

Centenas de velas ardiam em três candelabros de cristal no teto e em castiçais presos às paredes ao longo de todo o salão, e a luz intensa fazia cintilar as paredes e o teto marfim e dourado. Outros supores presos às paredes e muitos vasos, alguns também dourados, guardavam uma imensa quantidade de flores em tons de amarelo, branco e principalmente vermelho. O perfume se espalhava pelo ar.

As portas francesas que levavam à varanda mais além estavam abertas e revelavam as lanternas coloridas pousadas ao longo da balaustrada. No tablado em uma das extremidades do salão, uma orquestra completa, com músicos em trajes formais, se acomodava atrás de uma faixa de flores no chão.

Khaleesi pôde sentir que, no momento em que entraram no salão, o ambiente se alterou. A entrada do duque foi suficiente para as damas presentes começarem a tagarelar com mais animação e seus sorrisos se abrirem, ao passo que os cavalheiros se puseram a rir com mais afetação e a se exibir de forma mais perceptível. Já aqueles de mais idade se empertigaram.

Era mesmo muito divertido.

Mas ninguém precisaria ter se dado a tanto trabalho. Mesmo que o cômodo estivesse lotado de vermes, o Comandante não teria olhado ao redor de forma mais altiva. A expressão naquele rosto frio e aristocrático dizia, com mais clareza que as palavras, que ele considerava toda aquela cena aquém de sua dignidade ducal e que seria trabalhoso demais sorrir ou parecer minimamente acessível.

— Você estragou mesmo os planos de mamãe de ornar a decoração com seu vestido. — Morgan surgiu de repente, de braço dado com James. Parecia que tinham vindo pouco atrás deles em sua entrada triunfal. O Comandante andou um pouco à frente, na direção da entrada.

— Que bom que mudou essa cor. Não acho que teria ficado tão bem de vermelho como ficou de preto. — James falou, com uma leve sugestão de divertimento nos olhos escuros.

— Estou sem ação. — admitiu Khaleesi para eles, um pouco sem graça.

— Não precisa ficar. — Morgan sussurrou de volta, impassível. — Sem dúvida, antes de mamãe enviar os convites, a notícia que o duque de Barclay se casou se espalhou por Londres como fogo na mata. Não pode haver maior recomendação que essa. Já ganhou toda a atenção da nobreza antes mesmo de conhece-la direito. Oh, Aiden está erguendo suas sobrancelhas de novo. Significa que você deve correr de volta até ele.

Khaleesi se virou e saiu apressada do centro do salão até a fila de recepção, o coração de repente batendo com força no peito. Ela não estava nervosa por estar no meio da nobreza. Tinha crescido naquele meio, embora num país diferente. Nem a intimidava a grandeza do evento. Não. O que mexia com ela era o fato que tudo aquilo era seu. Tudo aquilo era para ela. Havia certo prestígio em ser filha de um duque, mas nenhum prestígio em ser filha de um duque de uma nação inimiga na Inglaterra. E agora ela era esposa de um duque. Um duque inglês.

O mundo estará abaixo de seus sapatos.

Foi somente naquele momento que Khaleesi viu como aquelas palavras eram reais.

Apesar da pouca antecedência do convite para o baile – e àquela época do ano, em que toda casa elegante recebia inúmeros convites por dia –, ao longo da hora seguinte muitos convidados chegaram à Mansão da Viúva, além dos já presentes. Khal chegou a se perguntar se teria lugar para todos no salão de baile. Ela ficou de pé entre o Comandante e a Condessa e com certeza fez centenas de reverências. Nunca tivera que manter um sorriso por tanto tempo no rosto. Sentia os músculos da face doloridos. Mas tanto para o Comandante quanto para a Condessa, Morgan e James parecia bem mais fácil.

— Vamos entrar e dar início às danças. — anunciou por fim o Comandante, durante uma pausa na chegada dos convidados. — Cumprimentaremos mais tarde os que vierem depois.

Voltar ao salão de baile foi um momento de aumento de nervosismo e animação para Khal. O lugar parecia duas vezes maior e mais impressionante agora que estava cheio de convidados. Apesar da troca anterior entre ambos, ela ficou grata por ter o braço rígido e firme do Comandante para se apoiar.

Diferente do comum, o baile seria aberto por uma valsa. Uma escolha tão moderna que poderia até soar meio escandalosa para os mais velhos e conservadores. Então a música começou e o Comandante tomou a mão direita dela em sua mão esquerda, daí pousou a mão direita ao redor da cintura dela. Khaleesi pôs a mão livre sobre o ombro dele, que estava mais acima dela do que o ideal – e teve que se controlar para não arquejar.

O Comandante com certeza a estava segurando a uma distância muito sóbria e correta. Mas naquele momento, ela compreendeu porque muitas pessoas ainda consideravam a falsa uma dança meio indecorosa. Quando dançava com outras danças, Khal não se sentia íntima daquele jeito. Não conseguia se lembrar da sensação do calor do corpo de seu parceiro, ou do aroma de sua colônia. Era tudo muito perturbador e...

Empolgante. Um adjetivo que ela nunca pensou que atribuiria aos ingleses chatos e extremamente conservadores. Ela começou a se sentir eufórica antes mesmo de começarem a dançar.

Então começaram.

E em poucos instantes Khaleesi se deu conta de que nunca valsara até então. Seu marido avançava com passadas firmes e longas e a rodopiava com firmeza ao redor da pista, de modo que a luz de todas as velas se confundia num único borrão. Até esta noite ela nunca tinha sabido o que era valsar. Não de verdade. Era um enlevo estranhamente sensual. Luz, cores, perfumes, o calor dos corpos, a colônia masculina almiscarada, a música, o piso liso e levemente escorregadio, a mão na cintura dela, a mão segurando a dela, o prazer ao sentir a leveza do próprio corpo e o movimento – tudo era puro encantamento.

Khal levantou os olhos para o rosto do Comandante e começou a rir, extasiada. Só naquele momento percebeu quanto tempo fazia desde a última vez que dançara por diversão. Desde que fizera qualquer coisa por diversão, pura e inconsequente. Ele a encarou de volta, indecifrável. Tudo pareceria ter saído de um verdadeiro conto de fadas, se o homem que estivesse ao lado dela não fosse o mais distante quando possível do ideal de um príncipe encantado.

Infelizmente, o encantamento não durou muito tempo.

Ele havia acabado de rodopiar com ela na direção de um canto próximo das portas francesas quando um outro cavalheiro veio na direção oposta – e errada! – girando desajeitadamente com sua acompanhante. O Comandante puxou Khaleesi junto ao peito – no que depois ela percebeu ter sido uma tentativa de evitar o desastre -, mas ainda assim o gesto veio tarde demais. O cavalheiro pisou com força no pé esquerdo dela, e nenhum dos cinco dedos escapou  ileso.

Khal se apoiou no pé restante enquanto o Comandante passava o braço com firmeza ao redor de sua cintura, e prendeu a respiração quando começou a ver estrelas de tanta dor. A dama que acompanhava o rapaz deixou escapar uma exclamação de lamento e lembrou a seu acompanhante que tinha avisado a ele que estavam dançando na direção errada. O jovem se desculpou profusamente, muito infeliz.

— Pobre duquesa — a moça falou. — Deveria Richard leva-la para seu quarto e chamar uma criada?

Mas Khaleesi apenas acenou, rejeitando a ideia, cerrou os dentes e tentou não chamar tanta atenção para si nem para aquele mico. Maldição! Por que aquele tipo de coisa tinha que acontecer com ela, mesmo quando estava inocentemente cuidando da própria vida e tentando se divertir?

— Podem ir. — foi a ordem do Comandante que fez com que o casal seguisse trotando adiante, por fim, dessa vez na direção certa. Então grunhiu para Khaleesi: — Permita-me, senhora.

Muito deliberadamente ele se abaixou, pegou-a no colo e rumou na direção do jardim. Sem uma palavra ou um olhar na direção de qualquer pessoa, inclusive dela. Ele simplesmente saiu andando com determinação para fora, e estava inegavelmente satisfeito com o mundo, em especial com a parte do mundo que carregava nos próprios braços. Sua expressão antes indiferente agora era severa.

Ele levou-a só um pouco além das portas e a sentou sobre um banco de madeira que circundava o tronco enorme de um carvalho antigo.

— Ah, Deus. — comentou Khaleesi. — Devo ser pesada demais.

— De forma alguma, madame. — ele assegurou.

— O senhor parece terrivelmente mal-humorado — ela continuou. — Imagino que esteja acostumado a ter seus empregados resolvendo situações assim.

— Pessoas não costumam pisar em pés alheios e machucar seus dedos na minha presença, ou na presença de meus empregados. — ele retrucou, e por fim ela desistiu de provocá-lo.

O constrangimento que antes a tinha dominado agora já estava começando a ser substituído por certo humor depreciativo. É claro que, de todos os momentos, ela tinha que ter escolhido aquele baile importantíssimo para passar vergonha como não costumava passar.

O Comandante se apoiou num dos joelhos, bem diante dela, e começou a desamarrar a fita do redor de seu tornozelo que prendia o sapato e o descalçava. Ela não se constrangeu com o fato, como talvez uma dama de respeito teria feito. Mas sentiu que aquele gesto era estranhamente íntimo, considerando que mal tocara o marido desde que o tinha conhecido. Ele estava estupidamente bonito, e parecia prestes a pedi-la em casamento. O que era ridículo, é claro, porque já tinham ultrapassado esse capítulo há um tempo.

Era estranha essa capacidade de sentir uma dor excruciante e, ao mesmo tempo, achar uma cena extremamente divertida. Khaleesi fez uma careta.

Ele não era médico, mas pareceu julgar que não havia nenhum osso quebrado. Também não havia nenhum inchaço perceptível no pé de Khal, embora ela o estivesse mantendo rígido e sentindo muita dor, conforme talvez desse para perceber por sua respiração entrecortada. O Duque pousou o pé ainda com a meia em sua palma, segurou o calcanhar com a mão livre e ergueu o pé ligeiramente, dobrando um pouco os dedos para testar sua funcionalidade antes de abaixar novamente o calcanhar.

— Acho que vou sobreviver. — disse Khaleesi um instante depois. — Quem sabe até consiga dançar de novo um dia.

Ele não reagiu diante de sua tentativa de fazer uma piada.

— Foi uma surpresa ver que dança tão bem, Comandante. — ela emendou, sem saber muito bem porque estava tagarelando daquele jeito. Talvez só quisesse preencher o silêncio desconfortável que de repente havia entre eles, agora que não estavam mais no meio de um salão lotado. Percebeu que nunca tinham ficado completamente a sós antes, a não ser quando ele lhe propusera casamento.

O duque franziu o cenho.

— Felizmente, não me escondi de minhas aulas de dança. — falou. Parecia que não estava muito acostumado a ver pessoas rindo dele. — Antes de aprender o abecedário, um cavalheiro de respeito já domina a arte de bailar como uma pluma.

Ali estava. De novo. Aquele tom dúbio, que sugeria humor. Um humor árido, definitivamente. Mas ainda humor. Khaleesi franziu as sobrancelhas. O que tinha pensado mais cedo? Que ele era atraente de um jeito duro? Atraente? Por acaso ela estaria maluca? Abaixou os olhos para encará-lo. O nariz dele era grande demais. Não, não era. Era de tamanho adequado, perfeitamente reto, e ornava bem com seu maxilar marcado e sobrancelhas cerradas.

Mas ele parecia incapaz de rir. De qualquer coisa. Como um homem daqueles poderia ser atraente?

— Acho que meu pé já está como novo, Comandante. — murmurou, começando a colocar-se de pé. Ainda doía bastante, mas ela não queria passar nem mais um minuto sozinha na presença daquele sujeito. — Vamos voltar?

Ele a encarou, como se duvidasse que estava realmente bem com seu pé. Mas ofereceu-lhe o braço mesmo assim:

— É claro, madame.


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