1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 12
Capítulo X


Notas iniciais do capítulo

Olá, como vão?
Como dizem por aí, quem é vivo sempre aparece, e cá estou eu.
Eu não esperava demorar tanto para postar este capítulo, mas acabou ocorrendo. Este fim de ano anda sendo uma loucura, e por mais que eu tenha tido espaços aqui e acolá, não estava me sentindo muito bem para escrever. E, quando isto ocorre, eu prefiro optar por não escrever. Porque sinto que, quando não estou legal, isso afeta diretamente na qualidade das coisas que crio e não quero entregar nada a vocês que não seja pelo menos bom. Não sei se consegui cumprir com meu objetivo neste caso, mas espero que sim.
O ritmo da história até então esteve bastante uniforme, mas a partir deste ponto vamos começar a ter mais movimentações e presepadas por parte de nossas chars e de nossos futuros casais hihi. Espero que vocês estejam comigo para acompanhar esta jornada.
Anyways, sem mais delongas, fiquem com o capítulo! Estarei respondendo todos os seus comentários nos próximos dias :)



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Londres, 1812

 

No dia seguinte ao dia de seu casamento, Khaleesi foi levada pelo Comandante e por Morgan para conhecer a Condessa Viúva de Trentham, a mãe deles.

Ela ficou sabendo do fato durante seu café da manhã, após suas núpcias – que não haviam ocorrido. Khal passara duas horas aguardando a vinda do homem, mas ele não aparecera. De modo que ela enfrentara sua primeira e solitária noite como uma mulher casada enroscando-se naqueles lençóis que não eram os seus, sob aquela cama que não era sua, naquela casa que não era seu lar. E parecia que jamais seria.

Pareceu que foi somente naquele momento, quando estava deitada naquele colchão obscenamente grande, que a realidade caiu nua e crua sobre sua cabeça. E ela sentira-se terrivelmente sozinha, como nunca tinha se sentido antes, nem nos piores momentos de sua vida. E não havia ninguém, além de Agatha, a quem recorrer – pois aquelas pessoas não eram sua família.

Mas teriam que ser. Não havia outra escolha. A decisão que tomara na noite anterior e a sensação de empenho que a tinha dominado acordaram junto com ela naquela manhã. Se aquele não era seu quarto, seria a partir dali. E se aquela casa não era seu lar, ela faria com que fosse. Notou que, apesar do início pouco auspicioso daquele novo capítulo de sua vida, havia qualquer coisa de emocionante na percepção de que sua vida agora era sua, para toma-la e fazer o que bem entendesse dela. Tudo dependia dela, ou melhor, de como encararia e levaria aquilo dali para frente; e ela estava cansada de ser simplesmente levada pelas marés dos acontecimentos, somente sentando e lamentando sobre eles. Fora assim durante toda sua vida, e ela estava farta.

Era hora de reagir. E era exatamente isso que faria.

Seu marido não tinha aparecido. Ao invés de decepcionada, contudo, ficara extremamente aliviada pelo fato. Sabia que aquilo teria de ocorrer cedo ou tarde e estivera pronta para fazer o que lhe era devido, mas não se podia dizer que estava ansiosa para tal. Deitar-se com um homem completamente desconhecido não estava na lista de seus maiores anseios, embora aquele homem fosse seu marido. Era esquisito estar casada com um estranho. Não tinha ideia de onde ele se metera nem do porquê não aparecera, mas não se importava.

Ainda que algo dentro dela tenha se ressentido pela falta de expressão do Comandante sobre o assunto.

Ele não tinha comentado nada sobre o tema, nem dera qualquer explicação ou desculpa esfarrapada, mesmo quando teve a oportunidade, ao encontrar com ela sozinha no corredor após o café da manhã – que ela tomara sozinha, pois, de acordo com o mordomo, o Duque tinha comido mais cedo – e ela também não falara nada. Oh, bem, provavelmente seria melhor assim. Ele não queria explicar nada e ela não perguntaria nada, pois não queria passar a ideia errada de que se importara com a ausência dele em seu quarto. 

Lady Gillingham, a Condessa Viúva de Threntam, estava em casa, mas ainda não saíra de seu quarto de vestir. Foi o que o mordomo dela informou ao Comandante quando desceram à porta da suntuosa casa localizada bem no centro da Queen’s Road, de um modo que demonstrava toda a deferência ao título de nobreza e, ao mesmo tempo, a inegável reprovação do criado.

Aquele não era, é claro, o momento adequado para uma visita social, mesmo no caso de uma pessoa tão importante quanto o Duque. O mordomo deu uma boa olhada em Khaleesi logo em seguida, sem esboçar qualquer reação digna – mas Khal era capaz de notar o vislumbre de desprezo em seus olhos emoldurados por aquele nariz empinado de criado de gente abastada.

Então mesmo ele sabia quem ela era. Estaria dividindo o sentimento de sua senhora? Khaleesi não duvidava. O Comandante dissera que escrevera uma missiva à mãe comunicando-a de seu casamento. Isso dificilmente teria feito Khaleesi ganhar pontos positivos com sua sogra, aquela que se quer a conhecera antes de se casar com o filho dela – não sabia se o Comandante fizera questão de explica-la com detalhes o contexto daquela união, mas se pudesse apostar, diria que não.

O Comandante não parecia o tipo de homem que dava satisfação a quem quer que fosse. Provavelmente julgava isso muito abaixo de sua dignidade ducal. Ela apostava que ele diria não ao próprio Papa, se este ousasse cobrar explicação de qualquer de seus atos.

De modo que muito provavelmente a primeira impressão que Lady Gillingham teria dela seria a de uma impostora que se aproveitara seu filho. Embora isso não fosse verdade, é claro. Khaleesi muito alegremente teria ficado sem se casar com o filho dela, se tivesse tido a escolha. E embora isso também provasse que ela conhecia muito pouco ao homem que dera à luz; Khal duvidava que alguém conseguia aproveitar-se daquele homem, independente de quem fosse.

Mas alguém convenceu-o a casar-se comigo. E não fui eu. Não importava o que a Condessa pensava. Khal já tinha se decidido que não deixaria se intimidar por ela nem por ninguém mais daquela família.

— Vossa Graça se importaria de esperar no salão rosa? Milady? — indagou o mordomo, deixando claro por seu tom que o mais correto a fazer era irem embora e voltarem em um horário mais respeitável.

Mas o Comandante já caminhava a passos firmes na direção do salão.

— Traga-nos algo para comer e beber. — ordenou.

Lady Gillingham levou o tempo que julgou necessário até descer. Khaleesi acomodou-se num sofá, e o Comandante permaneceu de pé atrás dela com as mãos atrás das costas. Morgan foi até uma das janelas da sala e ficou olhando para o lado de fora. Depois de cerca de dez minutos, durante os quais eles apreciaram os petiscos servidos sem trocar uma palavra se quer, as portas da sala foram abertas com um floreio e o mordomo se afastou para dar passagem à Condessa Viúva, vestida e penteada para uma saída matinal.

Ela era bem menor do que Khaleesi esperava. Era pequena e esguia como a filha, mas seu cabelo era escuro como ébano, embora tivesse alguns fios cinzentos despontando aqui e acolá. Seus olhos eram castanhos, nem um pouco parecidos com os de seus filhos, mas era evidente que em sua juventude a Condessa tinha sido belíssima; Ela ainda conservava bastante dessa beleza, apesar de já estar na casa dos cinquenta anos. Khaleesi podia notar semelhanças claras entre ela e Morgan. Mas nada nos traços delicados da mulher lembrava o Comandante, que era alto, corpulento e com traços duros; parecia que ele tinha herdado dela só a cor do cabelo. Nada mais.

Ou foi o que Khal acreditou, até ela abrir a boca:

— Aiden — disse, enquanto se aproximava, encarando o filho com severidade. Ela segurava um lornhão numa das mãos. — Só você teria a audácia de fazer uma visita numa hora tão inapropriada e esperar ser recebido. Mas não é um bom momento. Tenho que comparecer a uma reunião de um dos meus comitês de caridade e sabe como sou rigorosa com pontualidade. Ah, abençoada seja minha alma, trouxe Morgan com você.

— Mamãe. — seu marido cumprimentou-a sobriamente, levando uma de suas mãos – cheia de anéis – aos lábios. — Imagino que tenha recebido minha carta.

— Oh, sim, seu bilhete, é claro. — Lady Gillingham ergueu o queixo altivamente, para o filho poder enxergar a insatisfação em seus olhos. — Podia ter simplesmente não me comunicado de nada, teria dado no mesmo, não?

— Peço perdão se não a avisei de meus planos previamente. — o Comandante respondeu, mas não parecia minimamente arrependido de nada. Ou minimamente feliz em ter de desculpar-se por isso. — Precisei apressá-los. Não tive muito tempo para me ater a caprichos.

Caprichos. — a mulher estalou a línga. — É assim que chama sua mãe? Um capricho? Garoto abusado. Ah, esqueça. Suponho que essa seja a mulher.

— Mãe. — ele fez uma cortesia para ela, ignorando deliberadamente todo seu drama anterior, provavelmente pelo bem da sua própria sanidade. — Esta é minha esposa, Lady Aiden Gillingham, a Duquesa de...

Ele não teve tempo de concluir a apresentação.

— Abençoada seja minha alma! — exclamou a Condessa Viúva, levando o lornhão aos olhos e avaliando Khaleesi de cima a baixo. — De que sala de aula a sequestrou? De quem essa moça era preceptora?

Khaleesi estava vestida com um vestido que gostava bastante – um de seus antigos vestidos, com o qual se sentia mais confortável, e que talvez não estivesse na última moda, apesar de ser bastante adequado. Mas Agatha tinha prendido seu cabelo num coque baixo e simples, sem nenhum adorno.

— Ela era a Senhorita Khaleesi Augustenborg, da Dinamarca. Filha do Duque Augustenborg.

— É estrangeira — disse a mulher, como se acusasse Khal de algum crime hediondo. — Eu deveria ter notado na carta. Nenhum cavalheiro inglês são colocaria um nome destes em sua filha. Suponho que ela sentiu o cheiro de seu título e fortuna de longe, e quando o viu, viu uma chance de ouro na sua frente, nesse homem tolo que você é.  

A expressão do Comandante endureceu mais – como se fosse possível.

— Devo lembra-la, mãe, que está falando da...

Mas Khaleesi já tinha chegado ao próprio limite.

— Não sou surda nem idiota. — disse em voz alta, pondo-se de pé. Seus olhos chisparam na direção da mulher. — Também não sou fraca de espírito. Não gosto que falem de mim na terceira pessoa, como se eu fosse tudo isso, senhora. E tenho enorme aversão por ser insultada. Também tenho muito orgulho de minhas origens. Por isso, talvez eu deva lhe informar que sou muito abastada, caso essa informação ajude a combater seus medos de que seu filho tenha sido enganado por uma interesseira. Na verdade, se quer casei com ele porque quis.

Talvez ela tenha dito um pouco mais do que devia. Mas não se importava. Não dava a mínima, de fato. Estava indignada, se sentindo humilhada. Independente de estar chateada ou não por não ter sabido ou comparecido ao casamento do filho, aquela mulher não tinha o direito de trata-la daquele jeito. Muito menos podia esperar fazer isso e sair ilesa. Khaleesi não tinha nada haver com suas picuinhas familiares.

Mas, a partir de agora, terei. Porque sou parte dessa família, uma vozinha em sua mente a lembrou. E isso só serviu para aumentar seu aborrecimento. Ela não queria ficar no meio de um cabo de guerra daqueles.

— Vejo que não foi de uma sala que a tirou, e sim de uma caverna. — a Condessa Viúva ergueu as sobrancelhas, como se estivesse pouco surpresa com o fato, mas a posição torta da sua boca deixava claro como o comportamento inapropriado de Khaleesi a tinha consternado. Ela balançou a mão bruscamente. — Sente-se, menina, e você Morgan. Você também Aiden, e pode parar de me encarar dessa forma. Pode intimidar seus soldados, mas não me intimida. Saiu de dentro de mim, garoto, caso não se lembre.

Nenhum dos três se moveu.

— Ora, vamos — Lady Gillingham reclamou. — Já me atrasaram para meu compromisso, e duvido que tenham vindo aqui somente para me apresentar à Lady Aiden Gillingham.

— Leu a minha carta. — declarou o Duque. — Suponho que tenha organizado o que pedi?

— Fala do baile? É claro que sim, embora só Deus saiba porque você julgou que precisava de minha ajuda para isso, já que claramente não precisou dela na escolha de uma esposa.

Um baile. Khaleesi piscou. Então lembrou que o Comandante tinha falado algo sobre isso, no desjejum do casamento. Mas um baile agora?

A expressão no rosto do Comandante permaneceu inabalável.

— A Duquesa deve ser devidamente apresentada à sociedade como minha esposa. — começou. — E deve ser preparada para isso. Gostando ou não, mamãe, ela é minha esposa. E a senhora a orientará no que precisar.

— É mesmo? — Lady Gillingham perguntou, com arrogância. — Está muito seguro de si, meu filho. O título lhe serviu muito bem, não é? Parece que estou de frente ao fantasma de meu sogro.

Nada mudou no rosto do Comandante. Khal teve a impressão que aquele era o tipo de homem que quanto mais se queria brigar com ele, mais contido e controlado ele ficava. Nada parecia atingi-lo, nunca. Por isso ela não teria dado tanta atenção àquelas palavras se Morgan, que passara todo aquele tempo parecendo muito interessada em olhar a rua pela janela, não tivesse desviado os olhos ligeiramente na direção deles.

Parecia que algo havia sido dito. Algo que não deveria ser dito, não para o Comandante.

— Sim, irá. — ele retrucou, sem cortar contato visual com a mãe. Falava com ela como falava com qualquer outra pessoa; com aquele tom que deixava claro que todos estavam abaixo de seu comando, mesmo ela, que era sua mãe. A única diferença é que ele mostrava um mínimo de respeito no modo como se referia a ela. Mas era só. Ele podia ser seu filho, mas antes era chefe daquela família. Khaleesi quase simpatizou com ela naquele momento, por ter de suportar aquilo. — A senhora é uma Gillingham, e pode nunca ter sido duquesa, mas sabe o protocolo. Não há ninguém mais qualificado para presidir este baile e ajuda-la que a senhora.

Aparentemente, fora a vez dele de cutucar alguma mágoa antiga. Um relacionamento familiar muito saudável. Não que o de Khaleesi fosse tão melhor.

A mulher mais velha limitou-se a encará-lo com o lornhão nos olhos.

— Leve-a a uma modista elegante e ache um vestido para ela. Explique para ela o que será esperado dela e como funcionará o evento. — orientou o Comandante. — Assumirá esta tarefa, mamãe?

— Eu ficarei bastante feliz em fazer isso sozinha, coman... — Khaleesi começou, erguendo o queixo ferozmente na direção do homem. Mesmo que não tivesse recebido a melhor das recepções de sua sogra, ela odiava ainda mais aquele comportamento do Comandante.

— Ao que parece — Lady Gillingham a interrompeu, soltando um suspiro. E aceitando a derrota. — não tenho escolha. Não posso deixar que a Duquesa de Barclay comprometa a imagem da família. Será um desafio interessante, nunca orientei uma nórdica. Ao menos, ela tem uma aparência passável e feições toleráveis. Mas é óbvio que algo precisa ser feito sobre esse cabelo.

Khal, por sua vez, não estava tão disposta a perder. Não sem brigar.

— Se eu aprovar o que for sugerido, madame — interrompeu-os novamente, impedindo que voltassem a falar dela em terceira pessoa. — então permitirei que mudem meu cabelo. Quanto às roupas e o comportamento, devo aplacar seus temores e dizer que tive a educação de uma dama, apesar de ser uma selvagem, como parece me considerar graças aos país onde nasci. Mas aceitarei seus conselhos e apreciarei sua ajuda, antes de decidir por mim mesma o que é apropriado.

— Deus me abençoe — a Condessa Viúva abanou-se com uma mão. — Arrumou uma mulher de garras afiadas, Aiden.

— Sim, mamãe. — ao dizer isso, o Comandante manteve os olhos fixamente em Khaleesi. Aqueles olhos terrivelmente vazios. Como hábito, ela foi incapaz de interpretar o que havia neles. Aprovação? Desaprovação? Não importava. Khaleesi não ia ficar simplesmente parada ouvindo aquelas pessoas decidirem sua vida como se ela fosse um objeto inanimado.

Pise nele.  

— É melhor que ela mantenha essas garras longe de mim. — sua sogra avisou. — E eis aqui sua primeira lição, menina: Trate de me chamar de mamãe. Afinal, é esposa de meu filho.

Khaleesi estava prestes a abrir a boca e dar outra de suas respostas, mas o Comandante, talvez precedendo o caos que se instalaria, a interrompeu:

— Deseja, então, madame, ser deixada nas mãos de minha mãe? — ele indagou, olhando-a. Como se ela tivesse alguma escolha. Supunha que poderia rejeitar a ideia, mas suspeitava que não daria em nada. E só complicaria mais a própria vida. Não poderia fugir para sempre da convivência com sua sogra. — Garanto que estará nas melhores mãos.

Melhores mãos para ser torturada, você quer dizer.

— Obrigada, Comandante. — respondeu com frieza. — Desejo, sim. E obrigada pela disposição, madame.

A Condessa decidiu ignorar sua implicância e acenou novamente com a mão, levando o lornhão de volta aos olhos como se para analisar sua aparência melhor.

— Vamos, menina. Nós duas vamos fazer uma visita à minha modista agora mesmo. Seu baile será amanhã à noite, afinal. Muito pouco gentil de seu marido falar-me da ideia só uma semana antes. Mas sou ótima sendo o que sou, para sua sorte. — a mulher começou a tagarelar, enquanto arrastava ela para fora. — E você é a Duquesa, de modo que ninguém se importará em cancelar qualquer compromisso que tenha para comparecer ao seu baile. Todos querem vê-la e conhece-la, afinal, faz décadas desde a última vez em que uma Duquesa de Barclay foi nomeada.

Décadas? O Comandante tinha insinuado que sua mãe nunca fora duquesa. E de fato, ela era a Condessa Viúva de Threntam, não a Duquesa.

— Aiden, vá embora. — a Condessa ordenou, antes de sair pela porta. — Você não será de nenhuma utilidade até amanhã à noite. Morgan, pode vir conosco, se quiser, mas duvido que você queira. Então volte aos seus filhos ou faça o que bem lhe aprouver.

Morgan, que se mantivera calada durante todo aquele tempo, olhou para Khaleesi antes de dizer:

— Terminarei de organizar os preparativos para o baile, mamãe. Dessa forma você poderá gastar o tempo que for preciso com Khaleesi.

Estranhamente, Khal conseguiu entender o que a mulher realmente estava dizendo, ao menos o que seus olhos diziam para ela naquele momento: Este é seu desafio. Tem de cuidar dele sozinha.

Quando, na carruagem em que seguiam até Bond Street, Lady Gillingham mencionou que a Srta. Baxter, sua elegante modista, cancelaria todos os seus compromissos pelo resto do dia somente porque ela estava levando a Duquesa de Barclay para ser vestida para seu baile de apresentação, a ideia pareceu uma pretensão absurda para Khal. Ela não acreditou.

Agora acreditava.

Logo percebeu, sem restar dúvidas, que agora era mesmo uma personagem social importante – apesar de suas origens que, sabia, não cultivavam muita simpatia. Mas aquela aliança em seu dedo mudara tudo. Ela não tinha só casado com Aiden Gillingham. Ela era a Duquesa de Barclay agora, uma das figuras mais influentes na sociedade inglesa. Algo naquela ideia a empolgava na mesma medida em que a aterrorizava. Havia uma ampla gama de deveres a se cumprir, mas também muitos privilégios a se explorar. E era tudo dela agora.

Tecnicamente, ela só precisava de um vestido – para o baile da noite seguinte. Mas no fim as mulheres consultaram um croqui após outro, selecionando modelos de roupa a serem usadas pela manhã, outros para vestidos de tarde, roupas de noite, trajes de baile futuros, vestidos para andar de carruagem, roupas de montaria, capas, peliças...

A lista era infinita. Sim, ela tinha roupas bastante adequadas à sua classe social. Mas simplesmente não podia ser vista usando as mesmas roupas de sua solteirice aonde quer que fosse. Uma mesquinharia dessas refletiria mal na imagem do Duque, disse a Condessa. De algum modo, Khal conseguiu brigar e impor seu gosto pessoal sobre as escolhas – mas precisou ceder em um detalhe ou outro, senão tinha certeza que não sairia daquela loja nunca mais.

Quando chegaram à mais importante de todas as questões, o traje que Khal usaria no baile, houve um atrito maior. Khaleesi já estava cansada de embates. Ela preferia materiais mais leves e fluidos a veludos e padronagens ousadas, mas perdeu em praticamente todas as questões sobre isso, pois esses estilos estavam na moda e estava claro que na sociedade inglesa a moda era uma espécie de divindade que deveria ser obedecida sem questionamentos. As mulheres queriam cobri-la o máximo que podiam, mas Khaleesi gostava de mostrar um pouco mais de seu colo. Elas queriam um vestido de uma cor que ornasse com a decoração, mas Khaleesi não. E não queria que a Condessa impusesse sua vontade sem pelo menos uma ressalva.

— Para alguém que será apresentada como a nova Duquesa de Barclay essa noite, está decididamente desanimada, menina — comentou Lady Gillingham enquanto calçava as luvas, mais para o fim da tarde.

A carruagem delas estava à espera na frente da loja.

— Estou muito cansada, madame. — disse Khal. — Essa última semana foi uma loucura.

Tanta coisa acontecera em tão pouco tempo. Khaleesi ainda estava digerindo tudo.

— Deveria ter pensado nisso antes de casar com o Duque, então. — desferiu a Condessa, antes de sair da loja com o criado logo atrás para ajuda-la a subir.

Aquela foi a gota d’água. Antes de seguir sua sogra para dentro do veículo, Khaleesi voltou para dentro da loja.

— Sobre o meu vestido para o baile... — começou a dizer.

A Srta. Baxter ouviu bem atentamente.

 

Isabella estava radiante.

Poucas coisas deixavam-na tão feliz e animada quanto estar com sua família. Principalmente quando todos decidiam se reunir, juntos, como estava sendo feito. Ela retornara para Londres junto com Francesca, Hartfield e Henrique. A prima já estava um pouco grande demais para realizar estas viagens, de modo que foi acertado que aquela seria sua última até o nascimento do bebê, que era esperado a qualquer momento das próximas semanas. Com a família toda unida, não havia modo de Bella ficar triste. Não de fato.

Ao menos, não se não precisasse contar com a percepção de que precisaria aturar o Conde de Lannair durante a temporada de festividades que Francesca pretendia realizar. Naquele dia, o último de seus convidados tinha chegado, e o evento começaria oficialmente com uma recepção conjunta e um jantar.

Quando Isa desceu para jantar naquela noite, sentia-se um pouco melhor em relação a ter de passa-la com Lorde Lannair. A briga que haviam tido, da última vez em que tinham se encontrado no interior, fora horrorosa e ela não podia imaginar que algum dia pudesse se entender com aquele homem, como Francesca parecia intimamente esperar que ocorresse, muito menos que poderiam ser amigos. Mas ao menos tinham posto as cartas na mesa. Já que seria forçada a permanecer ao lado dele durante toda sua estadia com os Ortiz, pelo menos ele não pensaria que ela estava fazendo isso por querer a companhia dele.

Ela esperava que ele pelo menos tentasse se comportar bem. Não era possível que não houvesse pelo menos um resquício de educação dentro daquele homem, ou um mínimo indício de bondade que o fizesse ser ao menos polido, não constrangendo seus anfitriões com sua postura inadequada. Oh, bem, se Isa realmente fosse sincera, ela reconheceria que ele era particularmente terrível com sua pessoa. Mas parecia ser bem capaz de levar uma conversa aceitável com Hartfield, por exemplo. E até com Francesca.

No entanto, depois de cinco minutos na sala de estar, ficou claro que Lorde Lannair não estava à vista. Para seu alívio.

Isabella nunca gostara de ficar sozinha, principalmente em reuniões. Por isso se juntou a sua mãe e as suas tias perto da lareira. Conforme o esperado, elas conversavam sobre alguma baboseira amena – neste caso, sobre o esperado nascimento do filho de Francesca. E a festa que desejavam organizar para seu batizado. Bella ouviu sem prestar muita atenção. Depois de tanto tempo no interior com sua prima, não podia imaginar nenhum detalhe que ainda não soubesse sobre aquela cerimônia vindoura.

— É uma pena que não seja época de hortênsias. — disse tia Maria. — As que cultivamos em casa são exatamente do tom de lavanda que Francesca quer para a capela.

— É azul-lavanda. — corrigiu tia Íris. — E você deve entender que escolher hortênsias teria sido um erro magnânimo.

— Um erro?

— As cores variam muito, mesmo num arbusto cuidadosamente cultivado. — a mãe de Bella concordou. — Não daria para ter certeza que a cor combinaria com o manto do bebê. E se não combinasse?

— Ninguém esperaria perfeição, não das flores. — tia Maria torceu o nariz.

Eu sempre espero perfeição. — a mãe de Isa retrucou.

— Percebe-se. — disse Isa, com uma risadinha.

Sua mãe vivia para encontrar a perfeição que os encaixaria melhor na Inglaterra e os fariam ser aceitos por todos. Sempre estava em busca das roupas perfeitas, dos modos perfeitos, da decoração perfeita, estas coisas que eram de grande valor para a sociedade inglesa, mas de absoluto nenhum valor para Isabella. Aquilo era tudo uma imensa baboseira, em sua opinião.

Mas não na opinião de sua mãe. Ela a olhou duramente, enquanto suas tias piscavam em sua direção, aparentemente não entendendo muito bem a piadinha que soltara.

— Ah, olhem! Ali está Pedro! — Isa exclamou, aliviada, quando viu o irmão entrar na sala.

— Vá. — disse sua mãe, apontando com a cabeça na direção do filho. — Você não quer ficar aqui com as mais velhas.

Ela realmente não queria. Por isto abriu um pequeno sorriso de gratidão e saiu disparada na direção de Pedro, que estava em pé perto da porta, aparentemente procurando alguém. Haviam outros convidados além da família Ortiz; conhecidos e amigos de Hartfield e Francesca, em sua maioria. Pedro não poderia conhecer nenhum deles, poderia?

— Você viu Lady Bianchi? — perguntou Pedro sem rodeios, se quer dando-se ao trabalho de olhá-la.

Isabella parou abruptamente, sua animação murchando como uma flor no inverno.

— Quem? — indagou.

Ele fez um gesto brusco com a mão, então, como se mandasse ela esquecer. Foi só nesse momento em que abaixou os olhos para encará-la.

— Que há?

— Oh, bem, nada. Só pensei em vir conversar com meu irmão predileto, mas aparentemente ele está um pouco ocupado demais para me dar a devida atenção.

Pedro suspirou brevemente diante de sua ironia.

— Preciso encontra-la. — continuou, novamente erguendo os olhos para a multidão. Parecia bastante atônito. — Peço desculpas de antemão por abandoná-la, provavelmente sairei correndo no meio de uma frase no momento em que a vir.

— Talvez eu faça isso primeiro. — informou Isabella, erguendo o queixo. — Tenho deveres a cumprir esta noite.

Seu tom certamente revelou seu desagrado, porque Pedro se virou para ela com um interesse renovado.

— Serei a babá de Lorde Lannair. — contou, se sentindo – de novo – um pouco oprimida por aquela percepção. Mas isso era bom. Se era para ter uma noite terrível, pelo menos poderia se gabar disso antecipadamente.

Pedro franziu o cenho por um momento.

— Babá de... — então o reconhecimento invadiu seu rosto. Isa contara um pouco sobre o que tinha acontecido no interior a ele. E o que ocorrera antes disso, no sarau de Lady Haylock. — Ah.

— Não ria. — ameaçou Bella, levantando um dedo.

— Eu não ia rir.

Pedro estava claramente mentindo.

— Francesca insistiu. Acha que ele não se sentirá bem-vindo se algum de nós não assegurar sua felicidade e participação em tudo. — Isa torceu o nariz.

— E ela te pediu para ser babá dele?

Para ser sincera, Francesca havia negado aquele termo, mas a história ficaria melhor se Bella se descrevesse como babá. Em funções como aquelas, a pessoa tinha que ter algo bom de que reclamar. Era um pouco como os estudantes de Cambridge que ela tinha conhecido antes, os amigos de Pedro que ela tinha visto na primavera anterior. Eles só pareciam felizes quando podiam se queixar da quantidade de trabalho que precisavam fazer.

— O que exatamente ela quer que você faça? — Pedro insistiu.

— Ah, algumas coisas. — Isabella deu de ombros. — Quer que eu me sente com ele nos cafés da manhã e jantares. E me pediu especificamente para tentar entretê-lo, independente do que isso queira dizer.

Pedro olhou por cima do ombro.

— Ele já está aqui?

— Não. — ela respondeu, suspirando feliz.

— Não fique tão feliz. — preveniu-a seu irmão. Ele abriu um sorriso maroto. — Lorde Lannair vai descer. Se Francesca pediu que cuidasse dele, pedirá a ele que desça para o jantar.

De repente, um pensamento invadiu a mente de Bella como um raio. Ela olhou o irmão, horrorizada:

— Você não acha que...?

— Não, não. — Pedro respondeu com um risinho. — Ela não ousaria bancar a casamenteira, não com você. Mas cuidado. Se mamãe perceber você dando muita atenção ao sujeito...

Isabella estremeceu.

— Bem, isso será ainda mais desolador. — respondeu. — Mas eu fiz uma promessa a Francesca e sempre cumpro o que digo.

Se Pedro estivesse tomando uma bebida, teria sujado a sala.

Você?

— O que quer dizer com “você”?

Ele parecia estar prestes a explodir numa gargalhada.

Ah, Isa, vamos lá.

A jovem cruzou os braços diante do peito, afrontosa.

— Não estou entendendo o que quer dizer. — insistiu, arqueando uma sobrancelha.

— Lembra do abril passado?

Ela balançou a cabeça.

— No começo da temporada, quando você não apareceu na festa que mamãe organizou, afim de te reunir o máximo de pretendentes possíveis para você? — Pedro insistiu. Então ela lembrou, sim, daquele ocorrido catastrófico.

— O que isso tem haver?

Seu irmão franziu o cenho, assumindo uma expressão mais séria que não era nada comum a ele.

— Você deveria ter aparecido.

— Mas Pedro, — ela começou a protestar. — você sabe a minha opinião sobre...

Eu sei. — ele a interrompeu, levantando uma mão. — Não estou dizendo que deveria ter dado atenção a qualquer um daqueles homens, se realmente não queria. Nem dizendo que deveria ter casado com algum deles só porque mamãe esperava isso. Mas ela se esforçou muito naquele dia, e você simplesmente não apareceu.

Isabella suspirou, impaciente. Não estava nada feliz em ser contrariada daquela forma. Não, em ser acusada de algo que nem ela entendia muito bem o que era. Mas que definitivamente não gostava. Nem um pouco.

— Pedro, — começou, como se estivesse falando com uma criança. —... eu estava tentando salvar todos nós da tortura horrenda que teria sido aquela festa...

— Estava tentando salvar a si mesma. — ele declarou, sem demais rodeios. Agora, havia certa frieza em seus olhos. Algo que parecia... Desaprovação.

Aquele olhar lembrava muito ela de Carlos, o irmão mais velho dos dois, que parecia viver afim de desaprová-la e repreender absolutamente tudo o que Isabella fazia. Ela teria sabido bem como reagir a este tipo de olhar vindo de Carlos, mas não sabia como fazer isso no caso de Pedro. Aquele irmão nunca a olhava daquele jeito. Ela apenas ficou em pé ali, prolongando aquele momento. Até o ponto em que não aguentou mais.

— Desembuche. — ordenou.

Pedro arqueou uma sobrancelha.

— Desembuche o que quer que queira me dizer. Obviamente quer me dizer algo.

Ele começou a piscar repetidamente, então, perdendo um pouco da dureza anterior. Como se estivesse tentando ganhar tempo para escolher bem as palavras. Então começou, muito lentamente:

— Você sabe que eu a amo.

Não era o que Isa esperava. Infelizmente, o que veio a seguir também não era:

— Sempre a amarei. — Pedro prosseguiu. — Assim como amo a toda minha família. Mas às vezes você consegue ser... Bastante egoísta. É como se não conseguisse enxergar muito além do seu próprio umbigo. E o pior é que nem percebe.

Isabella teve vontade de dizer alguma coisa. Precisava dizer alguma coisa, porque era isso que fazia quando se deparava com algo que não gostava. Pedro não podia chama-la de egoísta e esperar que ela fosse apenas ficar ali, ouvindo.

Contudo, foi exatamente isso que fez.

Bella engoliu em seco e umedeceu os lábios. Não conseguia formar palavras. Tudo o que podia fazer era pensar: não. Aquilo não era verdade. Não podia ser verdade. Ela amava sua família. Faria qualquer coisa por eles. Pedro chama-la de egoísta...

Doía muito. Mais do que o esperado.

Isa estava observando o rosto do irmão com tanta atenção que percebeu o exato momento em que o foco de Pedro mudou, em que o fato de que acabara de chamar ela de egoísta deixou de ser a coisa mais importante do mundo. Como se alguma coisa pudesse ser mais importante que isso.

— Lá está ela. — ele se apressou em dizer, se desviando. — Lady Bianchi. Preciso chegar até ela.

Deu um passo à frente, claramente ansioso para ir de encontro com a dama mais velha, que estava acostumada de duas jovens; uma loura muito semelhante a ela e outra pequena e ruiva a seu lado. Mas então ele fez uma pausa, virou-se e disse:

— Podemos falar sobre isso mais tarde. Se você quiser.

— Prefiro que não, obrigada. — Isa respondeu com firmeza, deixando sua personalidade ressurgir de onde quer que tivesse se metido.

Mas Pedro não ouviu. Já tinha lhe dado as costas e ia na direção das duas jovens. Bella permaneceu sozinha naquele canto, abatida como uma noiva abandonada.

E foi só então – claro – que ela notou a presença de Lorde Lannair.

Ela não sabia quando ele chegara, mas não parecia ter sido naquele momento. Para sua decepção, ele parecia bastante à vontade na presença de Hartfield e de George. Ao menos, o mais confortável quanto aquele homem conseguia se fazer. Sua expressão não era das mais animadas, mas ele parecia estar participando ativamente da conversa, sentado em sua cadeira de rodas, olhando para cima afim de ser ouvido. Não que estivesse sendo ignorado. Seus companheiros era educados demais para fazê-lo sentir-se dessa forma.

O estranho foi que Isabella imaginou que estivesse com raiva. Pensou que estava furiosa com Pedro, que o irmão deveria ser mais sensível aos sentimentos dos outros – embora ele nunca tivesse dito nada parecido para ela antes. Ainda que ele tenha sentido a necessidade de chama-la de egoísta, pelo menos podia tê-lo feito em um local mais reservado. E sem abandoná-la depois! Isabella entendia que Pedro precisava falar com Lady Bianchi – ou talvez estivesse mais interessado nas jovens com ela – mas, de qualquer forma, ele devia ter se desculpado.

Então, de pé em seu canto, imaginando por quanto tempo poderia continuar fingindo não ter notado Lorde Lannair, Bella respirou fundo.

E precisou conter o choro.

Aparentemente sentia algo mais do que raiva e corria um grande risco de cair em pranto ali, na sala estar lotada da casa de Francesca. Que ridículo! Dar ouvidos aquelas palavras que não faziam sentido nenhum...

Ou talvez fizessem. E por isso machucavam tanto.

Virou-se rapidamente, determinada a não permitir se rebaixar daquele jeito. Que estúpido que seria ser pega chorando naquele lugar. Ou pior, ser pega fugindo dali afim de chorar. Sentir raiva era uma opção muito mais digna, naturalmente. Ela tinha maneiras melhores de descontar a raiva. Como, por exemplo, mirando-a no Lorde Lannair e apostando tudo na acidez que qualquer diálogo que tivessem certamente teria.

Mas isso só faria com que ela estivesse descumprindo sua promessa com Francesca. De novo. E isso seria admitir que Pedro estava ao menos um pouco certo em suas afirmações.

Oh, isso era inaceitável.

Abaixo desse pensamento, ela começou a marchar na direção do homem sentado na cadeira de rodas. Estava tão absorta em seus próprios pensamentos conflituosos que só percebeu na metade do caminho que ele não estava mais na presença de Hartfield e George – o que talvez fosse uma pequena misericórdia, pois queria dizer que não teria de aturar as duas criaturas exasperantes ao mesmo tempo. Quem estava a seu lado, por sua vez, era Philip.

Philip era o primeiro e até então único neto de seus pais, o filho de Carlos com sua esposa Vivian. Isa nunca se dera muito com Vivian. A mulher inglesa sempre lhe parecera uma dondoca particularmente sem sal e sem força de espírito. Suspeitava que ela casara-se com Carlos por mero interesse – o seguia como um cãozinho atrás de um petisco, de um lado para o outro. Talvez não tivesse o direito de julgá-la tão cruelmente.  Mas sua relação com Carlos também já não era a das melhores na atualidade.

Em contraponto, Isa adorava seu pequeno sobrinho.

— Olá, Lorde Lannair. — conseguiu ouvi-lo dizer, a certa distância. — Gostaria de um pouco de bolo?

Ele segurava dois pratos, um em cada pequena mão. Um deles continha uma gigantesca fatia de bolo e o outro, uma fatia apenas enorme. Ambas cobertas generosamente por glacê azul e pequenas violetas de açúcar. O garoto ergueu um dos pratos alguns centímetros no ar, como se para mostra-lo melhor ao convidado.

O homem piscou, por um momento. Então disse:

— Claro.

O menino se sentou perto dele, então, numa cadeira que estava vaga à beira de uma mesinha, pondo os pratos nessa mesa.

— Você parecia solitário. Por isso eu trouxe bolo.

Isabella quis rir. Esse era o tipo de coisa que um adulto nunca diria em voz alta. Exatamente o motivo pelo qual ela adoraria muito mais conversar com Philip do que qualquer outra pessoa presente naquela sala. Lorde Lannair, por sua vez, franziu o cenho naquela sua carranca tão usual:

— Eu estava sozinho, não solitário.

Foi a vez de Philip franzir a testa, como se estivesse tentando entender o que ele dissera.

— Tem certeza?

— Estar sozinho é uma condição passageira, — explicou o Conde. — enquanto estar solitário...

Eu sei. — Philip o interrompeu abruptamente.

O Conde só o encarou em silêncio.

— Eu só estava perguntando se alguém sempre sabe quando está solitário. — o menino explicou. Sempre tinha sido um pequeno filósofo.

— Quantos anos tem? — Lorde Lannair indagou, parecendo que não ficaria surpreso se o garoto abrisse a boca e dissesse que tinha quarenta e dois.

— Oito. — o menino respondeu, espetando o garfo no bolo e raspando o glacê afim de enfiá-lo na boca. — Mas sou meio precoce.

— Percebe-se.

— Meu pai diz que isso é porque não tenho outros irmãos, então concentrei toda a inteligência que eles deveriam ter em mim. — Philip continuou, parecendo nem notar a brevidade das respostas que recebia. Ele engoliu mais glacê. — O senhor tem irmãos ou irmãs?

Nesse momento, Bella aproximou-se um pouquinho mais, curiosa para ouvir aquela resposta em especial. Percebeu que não sabia nada sobre o Conde ou sua história de vida.

— Não. — o Conde disse. Então pegou o prato que tinha sobrado, cortando com o garfo um pedaço do bolo e colocando-o na boca. Mastigou e engoliu, parecendo que não teria mais nada a dizer. Mas então acrescentou: — Mas eu tenho dois amigos. Um deles é cego feito um morcego, mas tem um coração tão bom que me dá ânsia de vômito. E o outro é um urso grande, feio e estúpido que finge não ter coração.

Philip pareceu consternado com aquela resposta. Ele tombou sua pequena cabeça de cabelos escuros para o lado.

— Mas eles não têm o mesmo sangue que você.

— É, eles não têm. — cedeu Lorde Lannair. Então algo no seu rosto mudou. Ele não sorriu, mas algo em seus olhos sugeriu que talvez ele estivesse se segurando para não fazê-lo. — Mas é como se tivessem.

Foi assim que concluiu aquelas palavras que ele pareceu notar a presença de Isabella, não muito longe deles, parada como uma estátua, somente encarando-os. Aquela sugestão de leveza que vira nos olhos dele um segundo antes desapareceu por inteiro. E ela forçou-se a se aproximar, apesar do constrangimento, visto que fora claramente pega em flagrante.

— Lorde Lannair. Philip. — cumprimentou os dois, fazendo uma pequena mesura.

Philip levantou-se para abraça-la, exclamando um animado “tia Bella!” no processo. Mas o Conde somente continuou encarando-a como se estivesse tentando apunhala-la com uma espada imaginária devido à sua óbvia indiscrição em espioná-los.

— Ah, Phil... — Bella começou, quando o gelo começou a se tornar um pouco incômodo demais. — Você pode pegar bolo para a tia Bella?

A última coisa que desejava era ficar sozinha, naquele momento, com aquele homem. Mas desafiara a si mesma aquilo. Para provar que era capaz de trata-lo civilizadamente. Para provar que estava cumprindo sua promessa. Para provar que Pedro estava errado. Embora não houvesse ninguém além dela mesma verdadeiramente interessada naquela questão.

Quando Philip se afastou, o silêncio prosseguiu, quase como uma terceira presença naquele círculo.

— Lorde Lannair? — ela indagou, baixinho, com certa impaciência. Como se estivesse lembrando a ele que era a vez dele de falar algo.

O homem deu outra garfada no bolo, uma que mastigou e engoliu bem devagar. Só depois de parecer satisfeito foi que por fim abriu a boca para declarar:

— Minhas pernas doem.

— Ah. — Isa respondeu, desconfortável pelas palavras inesperadas. Sentou-se na cadeira afim de buscar algum lugar onde se apoiar e parecer menos uma idiota postada ali em pé. — Sinto muito.

— Não sinta. — ele respondeu brusca e rudemente, como costume. — Não é como se a culpa fosse sua.

Aquilo talvez devesse ter soado como um consolo educado. Mas não foi o caso.

— Sei disso. — engoliu a vontade de respondê-lo no mesmo nível de ignorância. Tinha que se manter íntegra. — Mas ainda assim sinto muito por estar doendo.

Ele lhe encarou com descrença e um tantinho de condescendência. Diante disso, ela recuou um pouco na cadeira e disse:

— Não sou desumana.

O Conde a observou atentamente por um momento. Parecia estar decidindo se ela estava sendo franca ou se estava caçoando dele de alguma maneira implícita. Ou talvez estivesse decidindo se responderia com franqueza ou se seria cínico e desagradável como sempre era.

— Até onde sei, a senhorita considera meu sofrimento mais que merecido.

É claro que ele optou pelo cinismo. Parecia que Philip era o único ser humano que ele julgava ser digno de seu bom tratamento. Estranhamente, isso deixou Isabella desconfortável. Não seu tratamento em si. Mas o modo como ele evidentemente duvidava que ela pudesse ter a intenção de trata-lo de maneira decente. Isso a incomodou como nunca tinha incomodado antes.

— Talvez eu tenha me sentido assim, — começou, forçando para soar o mais branda possível. — e não posso me imaginar algum dia sendo benevolente com o senhor, mas estou tentando ser um pouco menos...

Egoísta. A palavra veio até a ponta da sua língua, com um gosto ruim de lágrimas contidas. Mas Isabella balançou a cabeça, concluindo:

— Estou tentando ser uma pessoa melhor. E não desejo que sinta dor.

O Conde continuou encarando-a. Então, por um momento, pareceu que iria sorrir. Sorrir! Foi isso o que Isa esperou por um momento... Será que ele iria mesmo...? Mas então a estranha expectativa morreu no segundo seguinte. Pois ele não sorriu, mas sim riu. Não com ela. Riu dela.

— Ah, por favor, senhorita Ortiz, — ele falou, entre pausas, enquanto tentava controlar o riso descrente que insistia em brotar de sua garganta. — você? Sinceramente?

Aquela foi a gota d’água.

Isa não soube exatamente por quê. Talvez porque tenha ficado farta daquele homem. Ou talvez porque aquelas palavras e aquela reação tenham lembrado ela do modo como Pedro reagira poucos minutos atrás à sua tentativa de dizer que estava tentando fazer algo de bom. Algo bom para os outros.

A jovem ficou de pé, sentindo toda a fúria retornar como uma chaleira que entra em ebulição repentina. Mas ao invés de rebater ao Conde no mesmo nível, ou ao invés de encará-lo ferozmente e fazê-lo se arrepender do que tinha dito, como normalmente faria...

Ela começou a correr. Para fora dali. Sentindo que as lágrimas que lutara para conter mais cedo começavam a brotar dos seus olhos.


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