1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 11
Capítulo IX


Notas iniciais do capítulo

Hellooo, people! How you doin'?
Vindo aqui para postar mais um capítulo para vocês. Mas, antes de qualquer coisa, quero dizer que tudo indica que as próximas semanas serão mais tranquilas para mim ( AS FÉRIAS VEMMM, BRASIL ), de modo que tirarei esses dias seguintes para responder a todos os comentários que estou devendo a vocês. A vida do proletário brasileiro não é fácil, mas a gente segue lutando e tentando manter a sanidade, porque alegria e brilho no olho ninguém tem mais, né, afinal, estamos em 2021. Brilho no olho só se for o das lágrimas mesmo.
Anyway, esse capítulo saiu mais comprido que a média anterior, por isso me desculpo previamente se ele ficou um tanto massante. Me esforcei ao máximo para compensar isso nas interações, tornando elas o mais leve possível. Mas, caso tenham sentido que ainda assim ficou meio cansativo, por favor me digam, porque é o feedback de vocês que faz com que eu vá moldando e adaptando essa história ao seu gosto! Isso também serve sobre as interpretações e os acontecimentos; se vocês acham que estou interpretando as personagens de vocês de algum modo errado, ou está faltando algo, ou as coisas estão indo por um caminho meio meh, comentem! Só assim eu vou saber e poder fazer mudanças para agradar vocês. Afinal, esta é história é das personagens de vocês!
Ademais, fiquem com estas narrações ( que, detalhe: ocorreram no mesmo dia em que o capítulo anterior ocorreu ) e boa leitura!



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Londres, 1812

 

Ophelia se escondera na ala infantil pouco após chegar na Casa Beaumont.

Preferia continuar se considerando uma criada ao invés de uma convidada. Tinha insistido em viajar na boleia da carruagem, junto com o cocheiro, ao invés de no seu interior, na companhia do Visconde e de Cecily, mesmo que eles tivessem insistido o tempo todo para que os acompanhasse.

Quando a carruagem parara de frente à mansão de estilo palladiano e Jo descera da boleia, Cecily já tinha pulado para fora do veículo e o Visconde descia os degraus logo atrás dela. Estava muito bonita no vestido verde-esmeralda que o irmão tinha dado a ela, os cachos acobreados domados num penteado simples mas de muito bom gosto. Ela pegara na mão da governanta, abrindo um largo sorriso:

— Oh, eu mal posso esperar! — exclamara, com as bochechas coradas de animação. — Será que os outros convidados já chegaram, Senhorita Wright?

Obviamente ela não sentia nenhum dos receios e dúvidas de Ophelia, só entusiasmo pela perspectiva de presenciar seu primeiro casamento do meio aristocrático. Jo lhe sorrira levemente em resposta, segurando sua mão entre as próprias:

— Acho que fomos os primeiros, Cecily.

A ideia trouxera uma nova razão para se ter pânico.

O Duque não a convidara diretamente. Talvez se quer soubesse que estava vindo. E era muito possível que, quando descobrisse, não gostasse de sua presença, mesmo se ela se mantivesse escondida pelos cantos da casa – como planejava fazer – durante o dia inteiro. O homem tinha a fama de ser um aristocrata frio e duro. Todos os Barclay tinham fama de ser arrogantes e altivos, na verdade. E Ophelia era filha de um cavalheiro de muita pouca importância social para além do local onde ele morara quando vivo. Além disso, ela não levava mais a vida de uma dama, embora fosse uma por nascimento. E tudo isso não era nada comparado ao fato que também era uma professora, uma governanta, e habitava um mundo completamente oposto ao do Duque.

Não que sentisse que suas condições a tornavam de algum modo inferior a ele ou aos de seu meio. Mas eram de universos diferentes e viviam em realidades muito distintas. Jo não estava certa se conseguiria se fazer confortável naquele meio, embora, tecnicamente, fosse parte dele. Tivera toda a sua educação voltada para tal. E, de qualquer modo, considerava toda essa definida estratificação social da classe aristocrática e o preconceito gerado por isso algo estúpido, para se dizer o mínimo.

Mas a última coisa que desejava era ser considerada – e se sentir – uma intrusa. E era incapaz afastar o pensamento de que era justamente isso.

Contudo, já era tarde demais para voltar atrás.

Um certo alvoroço tinha se seguido na chegada: Outra carruagem estacionara logo atrás da deles, e as portas da casa abriram-se, os anfitriões vindo na direção dos convidados recém-chegados. O resto dos passageiros desceram, os lacaios saíram afim de se encarregar da comodidade dos convidados e Cecily começou a subir energicamente as escadas junto com o Visconde em direção aos anfitriões.

Jo aproveitou a deixa e correu para dentro da casa por uma porta lateral junto com uma criada. Não tinha o menor desejo que a confundissem com uma convidada.

A governanta cumprimentou-a e apresentou-a à criadagem. Mas cerca de uma hora depois Jo notou que sua presença estava mais atrapalhando que ajudando – como aquele era um dia grande, mesmo a Sra. Parry, que tinha parado para recebe-la, parecia ansiosa para voltar ao trabalho. E por não estar integrada nos preparativos, dificilmente Jo poderia fazer algo útil para eles. Por isso pediu que a governanta mostrasse a ela o quarto das crianças, se a Condessa não fosse se importar, é claro.

Aquele parecia um esconderijo perfeitamente aceitável e prático no qual se entranhar.

Ela sobreviveria àquela provação em particular.

Tinha sobrevivido a coisas muito piores. Tinha passado dias e noites presa em sua própria letargia, desejando não ter sobrevivido.

Mas tinha sobrevivido.

E nos últimos anos se alegrava muito disso.

Quando se viu sozinha na ala infantil, Ophelia suspirou, permitindo-se relaxar mais. Havia uma babá sentada por perto, para o caso das crianças precisarem de algum cuidado, mas Jo se limitou a sorrir para ela e anuir quando esta levou o dedo aos lábios, pedindo que mantivesse silêncio. A governanta andou quase nas pontas dos pés até o quarto escuro onde o bebê estava dormindo em seu berço.

Era uma menina que devia ter uns dois anos, no máximo. Seu nome era Edith, a governanta dissera. Ela dormia com as mãozinhas apertadas em punhos ao lado da cabeça, como se tivesse a intenção de agitá-las assim que acordasse. Tinha o cabelo escuro como o Conde, seu pai, e o mesmo narizinho reto. O garoto, Jacob, também estava deitado numa cama, tirando uma tranquila sesta no meio da manhã, mas era mais semelhante com sua mãe; tinha o cabelo louro pálido dela, e Jo estava quase certa de que ele também herdara os olhos intensamente azuis da Condessa. O principal herdo do sangue Barclay, de acordo com o Visconde.

A governanta estava tão entretida observando a menininha se revirar em seu sono agitado que mal percebeu a aproximação de duas outras figuras. Ela só notou a Condessa quando esta parou bem ao seu lado, estendendo a mão para repousá-la sobre as costas pequenas da sua filha.

A governanta se sobressaltou, mas então lembrou que deveria estar fazendo silêncio, e ficou calada num semipânico mudo, encarando a mulher. A Condessa, por sua vez, permaneceu serena, deslizando os dedos suavemente sobre o braço gorduchinho da menina. Ela nem se quer deu atenção à Ophelia nos primeiros segundos. Só foi depois de um momento que murmurou, muito baixinho, praticamente num sussurro:

— Não resisti à tentação de vê-los antes do desjejum, embora tenha estado com eles duas horas atrás.

Jo notou, de rabo de olho, que o Conde estava parado pouco atrás da esposa, perto da cama do menino. Demorou um minuto para afastar o constrangimento e a intensa sensação de ter sido pega fazendo algo ilícito. Até esperou, por um momento, ser repreendida. Mas a Condessa não acrescentou mais nada à sua pequena e estranha confissão. Pior: parecia estar esperando que ela a respondesse, embora a governanta não fizesse ideia do que dizer.

No fim, acabou murmurando fracamente:

— São lindas crianças. — e depois de um segundo fez uma pequena reverência: — Me perdoe, Condessa, os deixarei contemplarem seus filhos em paz.

Contudo, antes que pudesse virar de costas, a mulher disse:

— Se não me falha a memória, você é a senhorita Wright, estou correta? Acompanhante da senhorita Dashwood. Lorde Bedwyn citou você na sala de chá há pouco. — não havia calor em sua voz, nem em seu olhar. Mas ela soava cordial e clara.

Jo comprimiu os lábios.

— Sim, sou eu, madame.

A Condessa anuiu. E pareceu que ela não tinha mais nada a falar, o que queria dizer que Ophelia estava livre para partir. Mas novamente, logo depois da governanta dar o primeiro passo de recuo em direção à porta, a mulher decidiu acrescentar, como se não tivesse nenhuma importância:

— Pode ser abominável, senhorita Wright, encontrar-se presa em uma mansão cercada por estranhos que você acha não terem nada em comum com você, e desejando estar em qualquer outra parte do mundo menos ali. Eu já provei disso uma série de vezes. — contou, inexpressivamente. — A princípio, me mantinha longe, observando tudo de um canto sombrio com um humor sarcástico. Mas então Joshua me encontrou, aquele homem terrível, e tive que sair do meu canto para salvar minha autoestima. No fim, acabei casada com o irmão dele, que era uma das pessoas que silenciosamente julgava.

Ophelia não imaginava como ela, a neta de um Duque e a irmã de outro, algum dia pudesse ter se sentido desconfortável no meio aristocrático. Ou em qualquer outro meio, na verdade. Certamente tinha a desenvoltura de se dar bem em qualquer ambiente. Mas não estava ali para julgar ninguém, muito menos a mulher que tinha aberto as portas de sua casa para si – embora não tivesse feito isso de modo voluntário, provavelmente. Joshua, ela compreendeu, era o irmão mais novo do Conde de Beaumont. O Visconde tinha citado alguns nomes para Jo, afim de que ela não ficasse tão perdida caso fossem mencionados.

E também compreendeu que havia algo por trás da atitude estranha da Condessa em conta-la algo como aquilo: Ela estava desafiando-a a sair de seu canto nas sombras, a ala infantil, para salvar o seu próprio auto respeito.

Foi nesse momento que o Conde surgiu, parando ao lado da esposa. Ele inclinou um pouco o queixo em direção à Ophelia, num cumprimento vago, mas polido, e abriu um leve sorriso que o fez parecer agradável, embora não fosse gloriosamente bonito. Definitivamente não chegava nem perto da beleza exuberante de sua esposa.

— Talvez devesse dizer com mais clareza a ela, Morgan — ele murmurou baixinho, assim como elas. —, que Gillingham expressou com todas as palavras ter notado a ausência dela durante a cerimônia. E qualquer palavra que saia da boca dele equivale a uma ordem imperial. Diga logo à pobre moça que ela não tem nenhuma outra opção a não ser aparecer.

Poucos minutos depois, Jo viu-se descendo as escadas em direção à sala de estar, onde os recém-casados e seus convidados estavam confraternizando após a cerimônia, enquanto aguardavam o momento do desjejum comemorativo que os criados tinham organizado com tanto afinco. Nesse momento, a Condessa permaneceu a seu lado, e Jo a seguiu, pois julgou que era aquilo que ela esperava que fizesse.

— Vou apresenta-la a todos, senhorita Wright. E aqui está Aiden, o primeiro. O Duque de Barclay.

Ophelia pensou que, mesmo que a maioria daquelas pessoas fossem desconhecidas para si, ela teria reconhecido a identidade do homem que tinha se aproximado dela em qualquer ocasião. Não havia modo de confundi-lo. Alto, moreno, e bonito de um jeito austero, quase ameaçador, era também o aristocrata consumado: reservado, imponente, presença poderosa. E ali estava ela, uma visitante não convidada em seu casamento.

Ela teria dado meia volta e fugido se isto não fosse soar extremamente contrário a sua postura sóbria de preceptora.

Ou talvez não. Afinal, Jo tinha certo orgulho, e ele fora despertado pelas palavras afiadas da Condessa pouco antes.

— Aiden, — disse a duquesa. — aqui está a senhorita Wright, a acompanhante da senhorita Dashwood.

Jo flexionou os joelhos, fazendo sua reverência, e meio que esperando ser banida para as trevas exteriores logo em seguida.

— Sua Graça. — murmurou.

Ele a saudou com uma ligeira inclinação de cabeça, e encarou-a fixamente com olhos tão afiados que ela jurou serem capazes de ver através de sua cabeça. Somente este mero olhar foi francamente aterrador.

— Senhorita Wright. — o Duque disse. — Lamento o fato de que eu e minha irmã fomos francamente omissos em não recebe-la devidamente. Você talvez tenha a bondade de nos perdoar.

Ele certamente sabia, assim como a Condessa, que na verdade Jo fugira e se escondera na primeira oportunidade que tinha encontrado, sendo ela a omissa e mal educada da história. Logo, ele não parecia lamentar nada, de fato. E embora suas palavras fossem cordiais, seus perturbadores olhos – ou seu rosto – não sorriram para Ophelia.

— Ela esteve ocupada na ala infantil, Aiden, durante todo este tempo. — declarou a Condessa.

— Então é melhor que fale com o resto dos convidados também. Não a prenderei aqui. — o Duque pareceu francamente aliviado por poder se afastar e retornar para perto do homem com quem antes conversava; um jovem numa cadeira de rodas, que estivera observando a cena inteira de longe, com olhos aparentemente desinteressados.

A Condessa apresentou-o como o Conde de Lannair, e seguiu levando-a rapidamente para que conhecesse o resto das pessoas que ainda não conhecia. Ophelia se esforçou para lembrar que era uma dama por nascimento e, por consequência, tinha todo o direito – e capacidade – de circular pacificamente naquela sala. Ao menos brevemente. Certamente não tinha interesse em participar do desjejum que seria oferecido, mesmo que a Condessa pusesse uma faca em seu pescoço afim de convencê-la a tal.

Não havia muitas pessoas a conhecer, na verdade. A cerimônia fora bastante intimista, nas palavras da Condessa, que Jo traduziu como sendo um casamento realizado com licença especial – quando se tinha pressa de realizar a união e nenhuma vontade de se fazer um grandioso evento na igreja de St. George, como era costumeiro para a aristocracia fazer. Além de sua irmã, do marido dela e dos sobrinhos, o Duque só convidara alguns de seus amigos – incluindo o Visconde Bedwyn e Cecily, que veio praticamente como um extra, assim como Jo.

Ela não deixou de notar, no entanto, que aparentemente a noiva, agora a Duquesa de Barclay, não trouxera nenhum convidado particularmente seu.

A nova Duquesa pareceu para Jo bastante apática, embora tivesse sido educada quando a Condessa a apresentou. Ophelia teve uma forte e desagradável sensação de que aquela não era uma união particularmente feliz. A mulher parecia estar indo para a forca, e a governanta foi incapaz de evitar se perguntar qual seria o motivo para isto. Teria aquele sido um casamento arranjado? Fazia sentido, considerando as condições nas quais fora realizado. Ou então haveria algum outro motivo por trás desta apatia? Como talvez o aspecto do noivo?

Jo não conhecia o Duque, é claro, por isso não se permitiu ir longe demais nas teorias desonrosas sobre ele. Mas mesmo Cecily, que estivera bastante empolgada com a percepção de presenciá-la, parecia ter notado que havia algo de errado ali, pois toda sua animação tinha sido reduzida a sorrisos abertos muito mais com educação que com alegria genuína.

 — Ah, — murmurou a Condessa, pouco depois de deixarem a Duquesa para trás com Cecily sentada a seu lado, tentando engatá-la numa conversa animada. Certamente para tentar levantar mais seu espírito. — ali está o Senhor Holroyd.

No instante em que ouviu aquele nome, um estremecimento passou pelo corpo de Jo. Tinha se esquecido de que ele estaria ali. O Visconde tinha acabado de tatear seu caminho com a bengala até ele, que estava sentado sozinho em um canto meio escondido da sala, enquanto todos se organizavam em duplas relativamente concentradas num outro canto. O seu patrão cumprimentou o médico calorosamente, com um tapinha que deveria ter sido no ombro mas bateu mais no braço dele. Então Cecily o chamou, do outro extremo da sala, e ele voltou a se afastar.

Ao mesmo tempo, a Condessa teve sua atenção tirada pela chegada da babá, que trazia sua filha pequena num dos braços e o menino segurando sua mão livre, os dois bem acordados. Ela desculpou-se e se afastou, deixando Jo sozinha a alguns passos de distância do médico.

Ela se sentiu terrivelmente mal, de repente. O Visconde a garantira que ele não ficara nem um pouco ofendido com o tratamento pouco lisonjeiro que ela tinha lhe dado naquela última vez. Mas ela não se desculpara diretamente com o pobre do sujeito, não de fato. E aquela pequena falha em sua normalmente impecável postura como governanta, sempre serena e composta, tinha a incomodado de verdade.

Foi por isso que deu o primeiro passo em direção ao homem, antes que perdesse a coragem. Naquele ritmo, se sentiria pior ao sair dali do que ao chegar. Percebeu, de repente, que não podia deixar que aquela manhã acabasse antes de falar com o Senhor Holroyd, embora não soubesse se ele queria falar com ela. Certamente a tinha considerado bastante rude e indiscreta – com razão.

Quando ele notou sua aproximação, levantou a cabeça bruscamente. Então se colocou de pé de imediato.

— Senhorita Wright. — disse.

Jo notou algo no modo como ele se movimentou e em como falou que deixou claro que ele realmente teria preferido ficar sozinho naquele canto; que gostava dali. Não que ela não o compreendesse. Mas tinha acabado de estragar seu isolamento particular.

Ele se vestia com bom gosto, embora suas roupas definitivamente não fossem da moda vigente. Elas não eram velhas e desgastadas, tampouco. Estavam em boas condições e ele parecia estranhamente elegante, mesmo sendo o menos abastado dos homens presentes. Outra coisa que notou era que ele era bastante alto. Só não era mais alto que o Duque, mas era maior que os homens costumavam ser de modo geral.

Jo lembrou de repente onde estavam e achou intrigante a presença dele ali. Seria ele amigo do Duque, assim como o Visconde?

Seria o Duque, gélido e altivo, amigo de um simples médico?

— Eu deveria ter ficado na sala por um momento a mais naquele dia. — Jo respondeu.

Ele olhou-a em silêncio por um momento.

— Lamento ter aparecido de supetão. — falou então, meio abruptamente. — Não era essa minha intenção.

Palavras amáveis, ditas com cortesia. No entanto, ela sentia que ele de fato não tinha se agradado muito do modo como ela o recebera. Percebeu isso na relutância que ele estava tendo em falar com ela.

— Não, você não me entendeu. Sou eu que lamento, senhor. Vim para lhe pedir desculpas pelo meu comportamento. Sinto muito, realmente.

O que mais poderia dizer? Tentar explicar sua conduta só apagaria todo o efeito de sinceridade das desculpas. Novamente um silêncio ligeiramente desconfortável reinou entre ambos. Ela quase virou e foi embora. Já tinha dito o que queria dizer. Não havia mais nada a acrescentar.

— Você estava tensa e preocupada, além de bastante cansada. — ele voltou a falar, agora com mais suavidade. — Estou certo de que não deve ter dormido muito, cuidando da senhorita Dashwood.

Isso significava que ele a estava desculpando. Ela não sabia se ele tinha mudado de opinião sobre sua pessoa, mas isso não importava realmente. Sorriu-lhe levemente e assentiu, novamente pronta para se afastar.

— Não quer se sentar, senhorita Wright? — o médico indagou, indicando a poltrona próxima àquela que ele estava ocupando.

Ophelia hesitara por tempo demais e a cortesia tinha obrigado ele a fazer o convite. Tinha demorado demais para pensar e ele tinha se sentido no dever de convidá-la a estender a interação. Jo teria preferido se afastar. Não queria estar perto dele. Mesmo que ele tivesse lhe desculpado, ainda parecia haver certo constrangimento pairando silenciosamente no ar.

Mas ele a convidara. E, a não ser que tivesse uma desculpa realmente muito boa, não poderia recusar sem cometer outra gafe mal-educada. Por isso ela se sentou na poltrona, embora tenha escolhido ficar bem na beirada, com as costas bem retas e as mãos unidas no colo.

— Tratou dos ferimentos do Visconde, senhor Holroyd? — perguntou amavelmente, já que sua mente tinha ficado em branco de repente, e não conseguiu achar nenhum assunto interessante sobre o qual puxar assunto.

— Sim. — o homem respondeu.

E ela não tinha ideia de como continuar com o tema. Não sabia absolutamente nada do que realmente acontecera com o Visconde para que ele perdesse a visão, nem tampouco sabia detalhes da recuperação dele. Fora somente no dia em que o médico fora tratar Cecily que ela descobrira que fora ele quem também cuidara de seu patrão. Mas o homem pareceu notar sua ausência do que dizer e se compadeceu, acrescentando:

— Também tratei o Duque e o Conde de Lannair. Foi dessa forma que nos conhecemos. Fomos mandados de volta para casa, da Península, em épocas próximas.

— O Duque? — ela perguntou, erguendo um pouco as sobrancelhas. Podia compreender porque o Conde de Lannair precisara de algum cuidado médico; sua cadeira de rodas gritava o fato para qualquer um que estivesse por perto. Mas o Duque não tinha qualquer mazela evidente, em lugar nenhum de seu corpo.

— Sim, o Duque. — o médico anuiu, mas não disse mais nada. Nem se quer uma pista que amainasse a dúvida de Jo. Na verdade, suas palavras afloraram outras perguntas. Ele insinuara que também tinha servido na Península. Um médico de campo, provavelmente. Teria sido escolha dele? Ou algo o levara a isso? Jo não podia conceber como alguém, tendo a opção de não envolver-se com a guerra, faria isso voluntariamente. Seu pai certamente nunca teria se envolvido se tivesse sido dada a ele opção.

— O senhor disse que foi mandado de volta para casa. Deve ter ficado muito aliviado em finalmente voltar.

— Na verdade não, senhorita. Preferia ter continuado lá.

Sua resposta só deixou Jo mais intrigada. O que aconteceu na Península?, quis perguntar. Se ele não ficara feliz em voltar, mas tivera que fazer isso mesmo assim, algo deveria ter ocorrido. Quando aconteceu? E como você acabou se cruzando com o Conde, o Visconde e o Duque?

Mas é claro que não podia fazer essas perguntas.

— Que comentário mais estúpido este meu. — disse. — Assumindo conhecer os sentimentos de alguém que nem conheço.

Os olhos azuis dele encontraram os seus, e por um instante pareceram duros, severos. Como se ele estivesse prestes a dá-la um belo de um corte. Mas então ele piscou e, surpreendentemente, abriu um sorriso. Ah, não exatamente um sorriso. Mas seus lábios se curvaram levemente, de um jeito enviesado que suavizou sua expressão até então séria.

— Senhorita Wright, que tal concordarmos, pelo nosso bem, em fingir que aquele dia na Casa Dashwood nunca ocorreu e que esta é a primeira vez que nos encontramos?

Jo se sentiu relaxar na poltrona, finalmente.

— Ah, isso seria ótimo. Eu adoraria, senhor.

O próprio homem pareceu ficar mais tranquilo após isso. Voltou a se encostar na poltrona e cruzou a perna sobre o joelho de modo despreocupado.

— Eu estive terrivelmente intimidada durante toda a manhã.

— É mesmo? Por que?

Assim que pronunciou aquelas palavras, Jo se arrependeu de ter feito isso. Não as tinha pronunciado com verdadeira atenção; tinha sido somente um desabafo repentino que deveria ter mantido para si mesma. Mas ele estava esperando uma resposta agora.

— O Visconde pediu que eu viesse para acompanhar Cecily, a senhorita Dashwood, visto que ela ainda não debutou e ainda necessita dessas formalidades. Sou governanta dela há quatro anos, então acaba que essa responsabilidade cai sobre mim. Mas eu não esperava ser tratada como uma convidada.

Pelo silêncio dele, Ophelia notou que tinha revelado um par de coisas sobre si para aquele homem. Ela nem mesmo planejara falar tanto assim. Mas aqueles olhos continuavam sondando-a, e ela sentia que devia continuar falando, mesmo que não fosse hábito seu fazer isso.

Por sorte, ele se pronunciou antes que ela abrisse a boca para proferir mais absurdos.

— Mas a senhorita é uma dama por nascimento, tal como o resto presente. — o homem argumentou.

— E você é um cavalheiro por nascimento, tal como o resto presente. — Jo retrucou, sem antes raciocinar devidamente em suas palavras. Mas não achava estar errada nessa suposição. O modo como o homem falava, agia e até se vestia emanava o ar de alguém com alto grau de instrução. Um cavalheiro.

Suas palavras trouxeram uma seriedade densa ao rosto dele.

— Não sou Sir algum, madame. Somente Senhor. — afirmou. Então voltou a suavizar o rosto. — Também não esperava ser tratado como convidado. Mas acredito que o Conde e a Condessa se sintam obrigados a nos tratar bem por cortesia. Espero que Barclay não tenha a intimidado. Ele foi criado duramente, e isso o tornou alguém duro. Aprendeu bem as lições que a família e a vida lhe deram, talvez bem demais. Mas não é alguém mau.

— Eu o conheci hoje. — Jo respondeu. — Não foi rude. Embora eu tenha ficado tão desconfortável que desejei que a terra se abrisse e me engolisse, me teletransportando de volta para o quarto das crianças.

Ela deu uma risada e ele sorriu novamente, daquele jeito contido.

— Ele tem mesmo esse efeito sobre as pessoas. — nesse momento, ambos se voltaram, quase institivamente, na direção da Duquesa. Ela permanecia sentada com Cecily, parecendo pequena e pálida.

Então a Condessa anunciou que o desjejum já fora servido e que todos podiam se dirigir até a sala de jantar.

— Chegou o momento. — o senhor Holroyd declarou, pondo-se de pé. Olhou Jo interrogativamente.

— Ah, não irei. — ela abriu um sorrisinho sem graça. — Fique à vontade, senhor. Voltarei para meu exílio com as crianças.

Ele anuiu.

— Irei transmitir suas desculpas à Condessa. — garantiu. Então inclinou ligeiramente o queixo. — Foi um prazer conhece-la, senhorita. Tenha um bom dia.

Ele estendeu a mão e ela apertou-a ligeiramente antes de responder:

— Bom dia, senhor Holroyd.

 

 

Beatrice acompanhou Zachary para baixo com expectativas bem negativas.

Indagou ao irmão por que precisava acompanha-lo nas suas empreitadas inconsequentes, depois de coloca-lo contra a parede e dito que não estava gostando muito da atenção que ele estava dando para a Senhorita Dashwood. Desde o dia do piquenique, ela tentara arrancar dele alguma explicação – e enfiar em sua cabeça algum juízo, mas sem muito sucesso. Parecia que seu irmão tinha simplesmente cismado com a jovem, e nem mesmo as broncas de Beatrice pareciam estar surtindo efeito nele.

De um certo modo, foi por isso que concordou em acompanha-los. De alguma forma, sentiu que se estivesse perto, poderia manter um olho bem aberto sobre o irmão. Por outro lado, também estava desesperada por uma oportunidade para sair.

Desde a morte de sua mãe, o luto limitara bastante sua vida e sua rotina. É verdade que nas semanas inicias ela não desejara sair para lugar algum. Mas nos últimos tempos fora invadida por uma necessidade latente de fazer isso. Estava desesperada, como um pássaro engaiolado por tempo demais. Estava sendo perturbada fortemente por um anseio sem nome, um desejo desesperado e sofrido por algo. Algo à mais que apenas o vestuário pesado de luto, a tristeza e o arrependimento, que eram sufocantes demais, desgastantes demais, e nem um pouco frutíferos.

Havia algo nesse sentimento que a deixava extremamente culpada – afinal, ainda permanecia em luto, por mais que pudesse vestir lavanda, e não somente preto, graças à sua juventude e à temporada próxima.

Seu pai levava bastante a sério as tradições e as formalidades inglesas, de modo que, tirando isto, insistia que a família levasse o luto do modo mais discreto e apropriado exigido pela tradição. Ele mesmo ainda parecia extremamente imerso em sua tristeza, embora transparecesse isso de sua maneira particular. Não é que Beatrice não simpatizasse com ele, apesar de suas diferenças, nem que também não sentisse falta da mãe...

Mas simplesmente não conseguia convencer-se de permitir que a tristeza, ou ainda o remorso, a mantivessem eternamente incauta, presa em seu torturante e cruel laço. A vida já lhe dera desilusões e arrependimentos o suficiente. E ela se sentia exausta disso. E se sentia a pior pessoa do mundo por sentir-se assim.

A saída ao piquenique fora a primeira grande quebra em seu luto formal, e só fora aceito porque fora julgado como um evento sóbrio o suficiente para se comparecer. E um passeio pelas ruas também parecia se classificar no mesmo tipo.

O pouco de satisfação que tinha tirado daquela constatação, no entanto, sumiu no momento em que descobriu que não seria a única a acompanhar o infame casal.

Quando desceram a escada e foram para a porta principal ela já estava aberta e o Visconde Bedwyn estava de pé ao lado da irmã nos degraus em forma de ferradura. Ao ouvir seus passos, ele virou-se na direção de onde vinham, tirando o chapéu que usava e inclinando a cabeça

— Hoje está fazendo um dia esplêndido, parece. — ele falou, abrindo um sorriso com aqueles dentes ridiculamente brancos – quer dizer, era possível mesmo que fossem tão brancos? — Há algumas nuvens no céu, Cecily me disse, mas poucas. E todas brancas, pequenas e inofensivas.

Beatrice não desejara pensar tanto no Visconde desde seu encontro no piquenique, mas acabara pensando. Nos primeiros dias, ficou extremamente desconfiada, somente aguardando o momento em que seu pai chegaria a diria-lhe que ouvira de alguém sobre sua pequena fuga, que certamente ele faria parecer como o maior e mais horrendo dos pecados possíveis. Mas então o primeiro dia passou. E o segundo. E o terceiro. E nada ocorrera, de modo que ela notou que aparentemente o Visconde cumprira sua promessa. Ou então apenas não encontrara uma oportunidade para fofocar com a pessoa certa que traria a notícia aos ouvidos do Lorde Whitmore.

De qualquer modo, ali estava o sujeito, sorrindo-lhe afavelmente, como se não guardasse um segredo dela que ela nem se quer queria ter compartilhado com ele. Talvez fosse por isso que não conseguia afastar por completo a aversão que tinha criado sobre ele. Por isso e por outras coisinhas.

Mas quando ele falou aquelas palavras, ficou muito perto de esquecer esse sentimento que tinha construído e quase sorriu, lembrando do que ele tinha dito na última vez em que tinham conversado. Então a cumprimentarei com um aceno de cabeça e farei um comentário sobre o esplêndido dia que está fazendo, evitando qualquer conversa mais profunda.

Se Zachary e a Srta. Dashwood acharam estranho o comentário avulso sobre o clima, estavam ocupados demais, se entretendo com a presença um do outro para demonstrar. Zachary deu o braço à jovem e eles seguiram alguns passos a frente. Sem ter mais onde se apoiar, Beatrice precisou envolver o seu braço ao do Visconde.

Tinha temido aquela tarde e a perspectiva de se encontrar com o homem de novo. Sobre o que conversariam? Ela não tinha a mínima vontade de conversar com o Visconde Bedwyn. Além do nome dele, não queria saber nada sobre ele. Tinha decidido que ele era um sedutor frívolo como qualquer outro, logo, não tinha nada que valesse ser conhecido. Com exceção de que estava mentindo para si mesma, é claro, porque por mais que ainda achasse o homem um sujeitinho vaidoso e superficial, também sentia muito curiosidade sobre ele.

Especificamente, sobre os pormenores de sua deficiência. A curiosidade era mesmo um de seus piores pecados. Queria saber o que tinha acontecido a ele para ficar cego. Nem a própria Triz compreendia bem como isso poderia ser, de alguma forma, instigante, mas era. Quanto mais pensava nisso, mais ela se via presa em indagações. Zachary tinha dito que ele servira na Península, e provavelmente tinha sido lá que tinha perdido a visão.

Ficar cego. Aquele talvez fosse o pior tipo de ferimento de todos, ela pensou. Não podia imaginar nada pior que isso, embora talvez estivesse sendo só ingênua. Ainda assim, o Visconde era – por tudo que era mais sagrado, ela realmente estava admitindo isso?— encantador e estava sempre sorrindo. Mas estaria sorrindo por dentro? Havia algo levemente perturbador em sua alegria, agora que refletia na devastação que a guerra talvez tivesse causado nele. Não só fisicamente, mas mentalmente também.

Até aquele reencontro com ele no piquenique, e até descobrir mais sobre aquele homem, nunca tinha pensado no esforço mental feito por um militar. Talvez porque tivesse conceitos muito específicos sobre guerra e política de modo geral. Para ela, guerras não eram nada mais que uma fraqueza humana; A vitória poderia trazer muita glória, mas a guerra tinha um alto custo independente de seus resultados; as pessoas sentiam a guerra. Talvez não as privilegiadas, de sangue azul. Ao menos não no início. Mas ela sempre vinha cobrar seu preço, cedo ou tarde.

De modo que Abby não compreendia – e até nutria certo desprezo – por aqueles que consideravam a guerra como um símbolo de patriotismo e orgulho.

Seria o Visconde uma dessas pessoas?

— Eu suspeito — a voz dele a tirou de seus pensamentos quando já tinham se afastado uns bons metros de sua casa, seguindo pela calçada. — de que minha primeira impressão sobre você estava errada, senhorita Rodwell.

Beatrice ergueu os olhos para o rosto dele, coberto pela sombra do chapéu. Mas então voltou sua atenção de novo para a rua.

— E qual seria ela?

— De que a senhorita não tem um pingo de senso de humor e é austera e rígida como uma professora. — ele disse, muito deliberadamente.

Ela encarou-o novamente, dessa vez um tanto chocada pelo comentário sem filtro nenhum. Mas não disse nada. Inexplicavelmente, não conseguiu pensar numa resposta mordaz o suficiente para dizer, o que não era normal no seu caso. Ela sempre tinha algo na ponta da língua, mas naquele momento nada vinha até sua mente.

— Seu silêncio é tão eloquente quanto acusador. — o Visconde falou no seu lugar, enquanto tocava a aba do chapéu na direção de um homem que tinha chamado seu nome, do outro lado da calçada. — Está claro que ainda acha que suas primeiras impressões sobre mim estão certas.

— E não estão? — Bea rebateu, finalmente, num tom talvez um pouco mais irritadiço do que queria. Sempre optava por manter a serenidade indiferente e superior; era mais fácil lidar com situações que não lhe agradavam assim. Essa atitude costumava intimidar as pessoas.

Mas aparentemente, não intimidava o Visconde. Ele suspirou, mas a resposta dela pareceu mais diverti-lo do que contrariá-lo.

— Ah, eu ainda sou um lobo mau para você. — ele lamentou, levando a mão ao peito num gesto teatral e exagerado. Mas seus olhos tinham um brilho zombeteiro.

— Eu não... — ela começou.  

— Eu tenho certeza disso. — o homem a interrompeu. — Nunca lhe ensinaram que é errado mentir? — ele balançou a cabeça, como se estivesse lidando com uma criança problemática. — O que é? É minha aparência?

— Sabe muito bem — Triz respondeu bruscamente. — que sua aparência é perfeita, milorde.

Então quis, assim que pronunciou aquelas palavras, retirá-las imediatamente. Não acreditou que tinha acabado de admitir aquilo em voz alta. Céu santo! Estava falando e agindo como se fosse mais uma das debutantes tontas que certamente ficavam rondando o Visconde feito moscas, desesperadas por um elogio seu ou um pouquinho que fosse da sua atenção.

Ele começou a rir. Sentiu que não deixaria que ela se esquecesse daquilo nem tão cedo.

— Sério? A cor dos meus olhos não parece meio afeminada para você? — indagou, erguendo as sobrancelhas sugestivamente.

— Sabe muito bem que não. — ela respondeu, a contragosto, com mais grosseria ainda. Como era possível que a conversa tivesse tomado um rumo daqueles? Como ela podia ter deixado que tomasse aquele rumo? Argh!       

— É que eu e minha irmã temos olhos parecidos, dizem, e acho que eles caem melhor nela. — ele continuou, inocentemente.

— Não poderia opinar sobre isso. — Triz murmurou de volta, querendo mudar o assunto de vez, querendo que aquela caminhada acabasse logo e ela pudesse sumir da mira daquele sorriso estúpido que a estava fazendo se esquecer como agir feito um ser humano decente.

O Visconde levou a mão ao queixo, numa pose pensativa caricata. Neste momento, passavam perto de um outro casal que os olhou com curiosidade, cumprimentou-os e seguiu seu caminho. Céus, será que eles pensariam...?

— De modo que não é minha aparência, a não ser que tenha algo contra perfeição. — o Visconde raciocinou. — O que não faz muito sentido. Portanto, deve ser meu caráter.

— Eu não penso mal de você, Milorde — ela retrucou, dessa vez com mais firmeza do que grosseria, afim de que ele entendesse logo que aquela conversa estava na hora de acabar. Mas, ao mesmo tempo, não conseguiu mentir. Sempre fora uma mulher muito franca, que expunha suas opiniões, de modo que não conseguiu se segurar ao acrescentar: — Não vejo nada de errado em sua personalidade, a não ser o fato de que não leva nada a sério. E é um sedutor descuidado e irresponsável.

Era isso, Beatrice percebeu logo que as palavras saíram da sua boca. Era isso que dificultava tanto manejar um diálogo do jeito que queria na presença daquele homem; ele falava e agia como se tudo fosse uma grande piada, como se nada fosse sério. Seu olhar era sempre zombeteiro e ele parecia sempre estar querendo fazer graça, querendo fazer sua companhia sorrir ou rir para ele. Mesmo no meio das provocações que ele jogava claramente com a intenção de aborrecê-la, havia momentos em que ele fazia algo para soar engraçado. E não se afetava com nenhuma investida dura que lhe dessem. Fazia parecer que a vida era uma grande piada, sempre leve e despreocupada como suas palavras e ações.

Mas não era. E não tinha sido para ele, tinha? Então por que ele agia assim?

— Minha nossa! — ele exclamou. — Isso pareceu uma daquelas frases “não é por nada, amigo, mas...”, e esse “mas” tem uma tremenda carga acusatória. De modo que me acha um imbecil superficial.

Aquelas palavras não tinham sido formuladas como uma pergunta, mas ele estava esperando uma resposta. Pois bem: ela já tinha cansado de negar somente porque a educação a obrigava a isso. No fim, ele estava pedindo por aquilo.

— Exatamente, Milorde. — disse, sem dó, enquanto olhava para frente, onde Zachary e a Srta. Dashwood davam sua primeira curva no trajeto que estavam fazendo. Se perguntou quantas curvas faltavam para acabar.

— Suponho — ele começou, parecendo nem um pouco abalado por suas palavras. — que não vai acreditar em mim quando eu disser que não acho que sou assim?

— Essas são justamente as palavras que um homem superficial diria.

O Visconde fez uma careta, e Bea quase simpatizou com ele naquele momento. Teria simpatizado, se ele tivesse decidido calar a boca e mudar de assunto após aquilo.

— Ah, é mesmo. Você está certa.

— Mas... — reiterou, um pouco hesitante. — Seria injusto de minha parte acusá-lo de ser mentiroso... Eu acho.

— Por que? — ele parou de andar de repente. Quando fez a pergunta, virou a cabeça na direção dela, como se desejasse e pudesse vê-la.

— Porque não o conheço, senhor. — respondeu, evitando olhá-lo nos olhos. O que não fazia sentido nenhum. Não tinha porque se intimidar com olhos que nem a enxergavam.

— Sim. — o Visconde concordou. Então abriu um sorriso, muito lentamente. O tipo de gesto que teria feito o coração de qualquer mulher errar uma batida. Mas não o de Triz.  — O que você diria, senhorita Rodwell, se eu falasse a você que realmente acho que a julguei errado, e que acho você incrivelmente bonita, embora muito dura em seus julgamentos sobre o sexo masculino e um tanto fria e indiferente também?

Bea primeiro ficou ligeiramente sem ar. Mas não de encanto ou qualquer baboseira dessas, e sim de indignação. Quem diabos ele achava que ela era? Mais uma das mocinhas tontas que com certeza caíam aos seus pés sob o mínimo sorriso que abria? Mas então ela notou que havia um brilho nos olhos cegos do Visconde. Não era malícia, ou zombaria, era puro e simples...

Divertimento.

Algo absurdo ocorreu logo em seguida que percebeu isso: ela deu uma risada totalmente não planejada, e pareceu que toda aquela indignação de repente tinha se perdido no meio do caminho. Simplesmente não podia acreditar! Ele estava mesmo dizendo aquilo? Para ela? Mesmo ela tendo acabado de dizer como achava sua postura odiável?

Bea balançou a cabeça, desacreditada que acabara de dar o que ele queria; acabara de rir. E ele sorrira-lhe de volta diante disso, deixando claro que notara. Ah, ela não podia deixa-lo ganhar assim. De modo que fechou o semblante novamente, reiterando: 

— Eu diria que é estúpido, Milorde. Primeiro porque suas palavras deixam claro que você é o sedutor irresponsável que eu digo que é, e segundo porque não pode me ver, logo não pode dizer se eu sou bonita ou não. Nem me conhece, então não pode falar nada sobre meu caráter.

— Exatamente. — ele respondeu. — Nós não nos conhecemos. Então como você pode dizer que sou um sedutor? Como pode definir se a acho bonita ou não? Como eu posso saber que você é fria e indiferente?

Aquilo tirou completamente as palavras da boca de Beatrice. Definitivamente, não estava esperando por aquele raciocínio. Voltou o rosto para a rua de novo, a irritação ameaçando retornar a cada passo firme que dava. Não gostava de ser colocada contra a parede daquele jeito. Nem de não saber bem como reagir às pessoas.

— Em todo caso, Milorde, nada disso importa. — retrucou, por fim. — Porque eu não acho que queiramos nos conhecer. Então nada nessa conversa idiota importa.

— Ah, mas você está errada. — ele afirmou. — Eu quero conhecer quem é a Senhorita Rodwell. Quero muito mesmo, principalmente agora, que sei que ela pode rir. Meu Deus, você é capaz de fazer algo tão frívolo e mortal como rir! Como isso é possível?

Ela sabia, novamente, que ele estava só caçoando da sua cara. Mas quase sorriu novamente. Um sorriso que lutou para impedir de imediato. Parecia que aquele era um efeito automático que o sujeito tinha sobre todos ao redor, que o inferno o levasse.

— Eu não...

Ele levantou a mão.

— Tarde demais. Eu já tenho a suspeita que você é uma pessoa interessante que merece ser conhecida a fundo. — ele fingiu lamentar o fato, suspirando dramaticamente. — E eu, como o narcisista superficial, frívolo, sedutor, irresponsável... Estou esquecendo algum adjetivo?... Que sou, sinto a necessidade que me conheçam, preciso justificar minha existência e fazer com que todos me adorem incondicionalmente. Eu não posso existir se não for adorado, senhorita Rodwell, sinto dizer.

Beatrice olhou-o, sem de fato enxerga-lo. Que tipo de homem era aquele? Ela não lembrava de ter conhecido alguém assim. Já conhecera inúmeros homens com esse charme quase sufocante, e essa consciência de que eram atraentes. Mas nenhum nunca fora tão persistente, tão exasperador, tão...

Intrigante. Era isso mesmo que ele era? Não podia ser. Mas mesmo naquele momento, Beatrice ainda queria saber mais sobre ele. E ele acabara de dizer que queria conhecer ela. Por que? E de que modo? Estaria o Visconde buscando uma esposa? Ele era solteiro, bonito e rico. Talvez estivesse. Mas Beatrice não estava disponível. Ainda não estaria por um longo tempo, suspeitava. E nunca estaria para um homem como Visconde.

Quando estivesse pronta, ela precisaria de alguém que a compreendesse. Precisaria de alguém que a amasse a ponto de entender e respeitar os desejos e ambições que tinha. Alguém que sonhasse seus sonhos com ela e a ajudasse a alcança-los – pois eram grandes sonhos, ao menos, grandes para uma mulher limitada por seu sexo e por sua classe. Não achava que algum homem inglês teria esta disposição, não alguém de seu meio. E definitivamente, não o Visconde, cujo mundinho parecia extremamente limitado à sua gloriosa pessoa.

Estreitando os olhos, decidiu colocá-lo contra a parede de uma vez:

— Mas por que eu, exatamente? Por que não correspondo aos seus flertes como as outras mulheres?

O Visconde ficou muito sério, então. O que foi uma transformação estranha para seu rosto que parecia sempre estar sorrindo ou prestes a sorrir. Voltou os olhos extremamente verdes para o lado, para Beatrice, e parou de caminhar por um momento, como se quisesse que ela prestasse bem atenção ao que diria:

— Eu não estou flertando com você, senhorita Rodwell. — falou, severamente. Parecia ter ficado bravo diante daquela mera sugestão. — Nem com nenhuma outra mulher. Não tenho interesse nenhum em romance, nem em casamento. Mas tenho a horrível suspeita de que você é uma mulher inteligente. Você é?

— Como quer que eu responda a isso? — ela retrucou, mais intrigada pela repentina transformação no Visconde que exasperada. Na verdade, ela estava quase estupefata; pois nenhum dos cenários e possibilidades que tinha imaginado poderiam ter previsto que a conversa teria tomado aquele rumo. Teria ele ficado verdadeiramente irritado? Por quê?

Ah, o mundo tinha enlouquecido, ou era ela que tinha ficado tempo demais dentro de casa, longe por tempo o suficiente da sociedade para perder todo seu senso?

Ele sorriu, então, e seu rosto voltou a se suavizar, e ele voltou a ser o homem superficial e desprezível com o qual ela tinha conversado no piquenique. Mas não havia zombaria naquele sorriso. Era um sorriso franco e doce.

— É uma das coisas que quero saber sobre você. — explicou. — Acha que poderíamos ser amigos, se nos esforçarmos, senhorita Rodwell? Quer tentar ser minha amiga?

Nesse momento, Bea percebeu que estavam parados na calçada próxima à sua casa novamente. O tempo parecera ter acelerado meio de repente. A Senhorita Dashwood e Zachary estavam parados na frente da residência Whitmore, conversando e rindo, tão alheios a seus acompanhantes como estavam no começo do passeio. Ela piscou.

Ele estava convidando-a a fazer amizade com ele? Era isso mesmo? Como se não pudesse pegá-la mais despreparada. Beatrice esperara muitas coisas daquele passeio. Admitira a si mesma que estava cismando, talvez um pouco desnecessariamente, com aquele homem. Ainda achava que ele era frívolo e que flertava com descuido, fosse intencionalmente ou não. E normalmente não apreciava ficar perto deste tipinho de homem. Eram bastante cansativos e normalmente não tinha nada de verdadeiramente interessante sobre o que conversar.

Além de geralmente se aproximarem sempre com segundas intenções. Ela era naturalmente cautelosa, mas com esse tipo de sujeito, costumava ser ainda mais desconfiada. Talvez porque eles lembrassem-na de Dylan.

Mas ele dissera que queria ser seu amigo, e abrira-lhe aquele sorriso repentinamente doce e sincero. Além disso, a cada palavra que aquele homem pronunciava, mais teorias Beatrice criava em sua mente acerca de sua persona e de sua história. Era incapaz de impedir. Talvez fosse a sua mente de escritora querendo enxergar um potencial personagem literário em qualquer um. Ou talvez ela só realmente estivesse tempo demais longe de qualquer pessoa que não fosse sua família, de modo que estava perdendo toda a racionalidade.

De qualquer modo, o Visconde não era um personagem. Era uma pessoa bastante real – e bastante exasperante. Ela não tinha razões para ter algo haver com ele, fosse o que fosse.

— Lorde Bedwyn, não acredito que possa interessá-lo ser meu amigo. — respondeu, por fim, embora talvez não com tanta firmeza quando pretendia.

Enquanto falava, eles deram os passos finais em direção à porta. O Visconde parou ao lado de sua irmã, que se despedia de Zachary. Então inclinou um pouco o queixo na direção de Triz, e pôs sua máscara zombeteira novamente no rosto:

— Mas você, senhorita Rodwell, não me conhece o suficiente para saber o que me interessa ou o que não me interessa, não é verdade?

Foi só quando ele partiu que Beatrice notou que não tinha dito o sonoro “não” que deveria ter-lhe dito.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Xoxo e até os comentários!



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