Até você chegar escrita por Little Alice


Capítulo 2
I'm like the water when your ship rolled in that night


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas. Segue o primeiro capítulo da fic.

Espero que gostem e boa leitura! ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/801357/chapter/2

 

I'm like the water when your ship rolled in that night
Rough on the surface

Alguns anos mais tarde, Rose se lembraria das palavras que Lily Luna Potter usou naquela manhã cinzenta e pouco agradável de quarta-feira, ao ler a sua sorte nas folhas de chá, e sorriria com nostalgia. Pois saberia: a prima mais nova acertara. Ela vira, na ocasião, uma bifurcação, um sol e os ventos do destino mudando de direção. Aquele dia em questão, dissera-lhe, representaria um marco de virada em sua vida. Boas mudanças rondavam o seu futuro, embora tudo dependesse das suas próprias decisões. No fim, o destino nada mais era do que um encadeamento de escolhas tomadas ao acaso, que nos levaria a um determinado ponto, bom ou ruim.

Naquele dia em questão, porém, enquanto descia com um cuidado rigorosamente calculado da carruagem de Lord McLaggen, Rose não achou que a previsão da prima pudesse estar correta. Sentia sua própria vida estagnada como as águas de um pântano, impedida de dar qualquer passo para frente ou para atrás. Presa ao mesmo lugar de desconforto. E como aquele dia, que começou da maneira mais inóspita possível, poderia significar qualquer coisa além daquele velho aprisionamento, da confirmação de que tudo continuaria tão igual como sempre fora, ao menos até o final da temporada social de Londres?

Com um aceno formal de cabeça, a garota de cachos ruivos, pele dourada de sol e sardas delicadas, que salpicavam suavemente o nariz e as maçãs do seu rosto como pequenas constelações, desculpou-se mais uma vez e despediu-se de Lord McLaggen, que se encontrava encharcado da cabeça aos pés, suas vestes elegantes completamente destruídas pelas águas turvas do Serpentine. Rose tentava consolar-se, dizendo-se a si mesma que já vivenciara situações mais constrangedoras. Ela era um desastre total ou, como o seu primo Albus costumava brincar, um verdadeiro imã para o azar. A garota vivia tropeçando nos próprios pés, quebrando coisas e esbarrando em pessoas.

Certamente, o acidente daquela manhã não fora nada demais ― sequer fora culpa sua! No entanto, mostrava-se inútil pensar assim, pois Rose ainda o sentia como o pior de todos, o mais vergonhoso e o mais mortificante. Talvez por ser o mais recente, isso abria precedentes para determinados exageros. Subindo as escadarias de casa, ela desejou nunca mais ver aquele homem em toda sua vida, mesmo que isso soasse muito improvável. Não suportaria ter que enfrentá-lo outra vez. Lord McLaggen sempre se lembraria de Rose daquele modo pouco louvável: como a dona de um poodle gigante e incontrolável. Isso já era horrível o bastante.

Parando no último degrau, de frente à grande porta laranja, a jovem lançou um olhar à carruagem, que se afastava lentamente pela Bond Street, e então encarou o céu londrino, mais nublado e pesado do que nunca. Nuvens carregadas, escuras e furiosas compunham a tela cinzenta daquela manhã. Apesar da óbvia ameaça de chuva, não havia qualquer vento naquele dia, nem mesmo a brisa mais amena. Algo não muito diferente da sua própria vida.

― Como foi? ― perguntou uma Hermione esperançosa, ao ver a filha adentrar a sala principal, deixando o chapéu e o guarda-chuva no cabideiro.

Naquele instante, as Sras. Hermione Weasley, Ginevra Potter e Luna Scamander tomavam chá e discutiam, muito animadas, a próxima edição do Semanário das Bruxas, o periódico anônimo e feminista que criaram três décadas atrás e que causava opiniões bastante controversas entre os membros da alta sociedade inglesa; mas todas interromperam a conversa calorosa que travavam e levantaram o olhar para encará-la. Ronald Weasley, que revisava o livro de contabilidade da Gemialidades Weasley, também ergueu os olhos.

Rose resmungou, infeliz com toda a atenção que recebia, e mirou a mãe com uma expressão exasperada. Ela soltou Apolo da coleira, que imediatamente correu para o colo de Ron em busca de carinho, como o grande puxa-saco que era, pegou o livro de botânica que lia antes de saírem para aquele passeio idiota no Hyde Park ― e que, pensando bem, nem deveria ter acontecido, considerando o clima horrível que fazia ― e sentou-se na namoradeira, ajeitando-se ao lado do pai. Se dependesse dela, aquele assunto morreria. Só que, claro, não dependia.

― Foi horrível! ― contou Lily, dando um beijo na mãe. A prima fora como sua acompanhante no passeio, já que a sua dama de companhia, a Srta. Mary Ann Creevey, acordara má-disposta e precisou ficar de repouso. ― Rosie derrubou Lord McLaggen no lago.

― No Serpentine? ― interrogou Ginny.

Apolo derrubou Lord McLaggen no lago ― corrigiu Rose, olhando feio para o cachorro. ― E, sim, no Serpentine.

A imagem daquele incidente ainda estava fresca em sua mente. Apolo jogando-se contra o peito do homem, sujando-o de terra e de grama. O cavalheiro, surpreso e horrorizado, desequilibrando-se e caindo da ponte, onde antes tentavam manter uma conversa superficialmente agradável, embora estivesse muito claro que ambos possuíam muito pouco em comum, além do fato de que ainda não tinham almas gêmeas. Lily, que não conseguiu conter o riso, e ela própria, que precisou se esforçar muito para não se deixar levar pela situação como a prima. Perguntou-se se a odiosa Lady Skeeter¹ escreveria algum comentário maldoso ao seu respeito no dia seguinte, em seu ultrajante folhetim de fofocas. Provavelmente sim, se ficasse sabendo do ocorrido. Não seria a primeira vez.

― Eu sinto muito, Rosie ― disse Hermione, séria.

― Está tudo bem ― deu de ombros ―, não creio que McLaggen pudesse mesmo ser a minha alma gêmea.

― Ainda é cedo para dizer isso. Você sabe como o seu pai e eu…

― … Como vocês descobriram que foram feitos um para o outro ― completou a moça, com um tom de voz arrastado. ― Como a conexão demorou para se manifestar. Sim, eu sei. Só que vocês ainda estavam nos anos dourados do amor.

Rose estava cansada daquilo tudo. Cansada de continuar procurando. Aquele era o seu aprisionamento, estar onde não queria estar, em busca de algo que, pouco a pouco, foi perdendo o sentido de ser, indo do dourado da fantasia juvenil para o cinza pálido da realidade adulta. Ela sonhou com aquilo por muitos anos, mas, nos últimos, eclipsou um desejo por outro, por um que lhe parecia muito mais auspicioso e que lhe enchia o coração de esperança e de força. Um sonho que poderia prová-la como pessoa, como uma mulher certamente muito à frente do seu tempo.

Rose queria, mais do que tudo, desistir da sua última temporada em Londres, a derradeira antes de ser verdadeiramente considerada uma alma única, e de todas aquelas esperanças meio mortas. Nunca fora boa naquilo, afinal. Nunca conseguiu agir dentro daquele emaranhado de etiquetas e de restrições estúpidas. Ela era uma garota dos campos, da liberdade verde das matas e da paz azul dos riachos, e não da cidade grande. Permanecer vivendo dentro daquela dinâmica vazia a afastava da sua verdadeira ambição, tão distante do brilho dos salões de festa.

― Lord McLaggen só está atrás de uma noiva rica ― suspirou, por fim.

Ninguém a contestou, todos sabiam que, antes de morrer, o pai deixara uma série de dívidas para o filho mais velho. Agora, Gregory McLaggen tinha um título de nobreza, mas nada além. Como estava a poucos meses de completar vinte e sete anos, tampouco poderia ansiar tão arduamente por uma alma gêmea e, ainda que o destino pudesse lhe surpreender, uma quimera muito improvável, o tempo e os credores não estavam a seu favor. Restava-lhe casar-se o mais rápido possível com uma mulher desenganada (ou quase) daquele amor místico que, a cada ano que passava, soava mais como uma lenda para o mundo do que como uma realidade.

― Seria muito mais fácil se vocês simplesmente aceitassem que eu não sou como vocês, mas que, ainda assim, posso ser feliz.

Hermione a encarou, tristemente. Ginny e Luna se entreolharam, sem saber o que dizer. Rapidamente, Ron afastou Apolo de si e se aproximou da filha. Ele a envolveu com delicadeza, e o aroma do seu perfume, que possuía um toque de cânfora em suas notas de coração, a atingiu e a tranquilizou. Sempre fora assim; o colo do pai sempre conseguira produzir aquele efeito sobre Rose. Desde menina, aquele era o lugar no qual podia se refugiar, ainda que, nos últimos anos, convicções e expectativas diferentes os colocassem em margens opostas.

― Eu sinto que você vai encontrar dessa vez ― confidenciou ele.

― Você sente? ― riu.

― Sim, eu sinto isso bem aqui. ― Apontou para o próprio peito. ― Da mesma maneira como senti que precisava entrar naquela livraria, a livraria onde conheci sua mãe, eu sinto que dessa vez você vai encontrar a sua alma gêmea. Quem sabe na festa de hoje? ― Ron deu uma batidinha no nariz da filha. ― Por alguma razão, hoje me parece um dia importante.

Rose ousou lançar um olhar para Lily. O semblante da prima indicava que também acreditava naquilo, as palavras do tio só confirmavam sua leitura nas folhas de chá, a leitura que fizera horas antes. Para tentar alegrar Ron, ela sorriu fraquinho. Seu sorriso, entretanto, era apenas externo. Porque, por mais que tentasse, não conseguia mais divisar qualquer transformação naquele sentido e todas aquelas falsas esperanças doíam mais do que a falta de esperança. Com esta, Rose já aprendera a lidar.

Já conseguira reinventá-la.

 

 

Não muito distante dali, em uma mansão que parecia esculpida em mármore e, certamente, por anos de muita exploração, encontrava-se o herdeiro indireto do duque de Wiltshire, em uma situação tão complicada quanto. Sentado em uma poltrona verde-esmeralda, na enorme biblioteca da família, Scorpius Malfoy tentava assimilar as palavras que o seu avô Lucius lhe dissera há poucos minutos, antes que deixasse o sufocante quarto do ancião. Porém, não conseguia. Tudo aquilo ainda lhe soava como um pesadelo. Ele encarou o seu copo de uísque de fogo, cujo conteúdo brilhava junto aos raios de sol que adentravam pelos vitrais góticos, e suspirou.

O rapaz parecia que não dormia há muito, muito tempo. Havia olheiras profundas ao redor dos seus olhos acinzentados e sua expressão estava abatida, cansada. Seus cabelos loiros estavam uma verdadeira confusão e suas roupas amassadas não ajudavam a melhorar o seu aspecto. Scorpius sequer percebeu quando uma mulher esbelta e morena entrou no aposento e, cautelosa, aproximou-se dele. Estava tão absorto em amaldiçoar a própria sorte que só a notou quando viu o copo de uísque escapar-lhe das próprias mãos.

― Bebendo antes do meio-dia, Scorpius? ― censurou Astoria Malfoy, com um balançar de cabeça. Ela agora segurava a bebida e o seu olhar dizia claramente “não foi assim que o eduquei”. ― Álcool não faz mal para o fígado? ― provocou-o.

― Mãe…

― Você não está estudando medicina? ― continuou, com sarcasmo. ― Achei que eles ensinassem isso na faculdade. Nós pagamos muito caro por sua educação.

Deixou o copo em uma mesinha e sentou-se na poltrona ao lado do filho.

― Sabe o que ele me pediu? ― perguntou com outro suspiro, referindo-se ao avô.

― Sim, eu sei ― respondeu Astoria, sem rodeios.

Ele a fitou, pasmo com a informação. O rapaz fora chamado de volta à Inglaterra às pressas, por conta do estado de saúde de Lucius Malfoy, o então duque de Wiltshire. Na carta que recebeu dias atrás, informaram-lhe que era grave, que o homem estava em seu leito de morte. Imediatamente, Scorpius sentiu o coração pesar. Lembrou-se de sua avó Narcisa, da carta de anos atrás. Lembrou-se de que não conseguira chegar a tempo, de que nunca pôde dizer adeus. Se não tivesse demorado tanto… Se não tivesse decidido ficar em Edimburgo por duas horas a mais, até que pudesse responder a uma prova de Anatomia…

 Foram escolhas que fez, escolhas das quais se arrependeria depois. Porque, se ele tivesse chegado duas horas antes, a encontraria viva. Diria seu adeus. Daria um último abraço e um último beijo. Scorpius não tinha uma boa relação com os avós e, se pudesse, renegaria todo o seu legado, mas ainda eram sua família. Isso era algo que seu próprio coração não podia ignorar ou deixar de sentir.

Assim, quando recebeu aquela segunda carta, não hesitou. Arrumou suas malas, alugou uma carruagem e partiu o mais rápido que pôde. Não cometeria o mesmo erro duas vezes. Fizera tudo isso, tantas noites sem dormir, sem parar em nenhuma estalagem no meio do caminho, apenas trocando de motorista e de cavalos, para encontrar um Lucius bem-disposto e com aparência saudável, andando como um antigo rei em seu quarto luxuoso.

Um Lucius que jurou não ter mais do que seis meses de vida, que afirmou que essas foram as palavras de seu médico particular, mas que não permitiu que Scorpius o examinasse. Um Lucius que exigia que o neto se casasse ainda naquela temporada e que lhe desse um herdeiro para o seu império de riquezas decadentes e imorais. Aquela, recordou-o, era sua obrigação por nascimento. A única que precisava cumprir. Que se recusasse ao resto, mas não àquilo! Que rejeitasse sua própria linhagem, mas que lhes desse uma criança!

― Você concorda com isso?

― Seu pai e eu não achamos a ideia de todo ruim. Você precisa de uma companhia, meu filho. 

― Uma companhia ― repetiu, sentindo uma vontade absurda de pegar seu copo de uísque novamente.

― Você não espera encontrar uma…

― … Uma alma gêmea? Por Deus, não!

Como Scorpius poderia sequer sonhar com aquilo? A família Malfoy não era amaldiçoada? Não eram o que todos diziam? O que todos sussurravam às suas costas, entre risos maldosos e olhares enviesados? Aquela irônica maldição estava em seu sangue, como uma marca negra cravada eternamente na pele. Seria impossível lutar contra a própria fatalidade.

Na sua árvore genealógica, tantas gerações com nomes de constelações e nenhuma delas agraciada pelo universo. Toda sua família, do princípio ao fim, era formada por estrelas esquecidas e resignadas a casamentos de conveniência. Scorpius deveria dar continuidade àquilo, deveria trazer ao mundo o próximo conjunto de astros solitários, suscetíveis a tantos erros. Ele deveria permanecer na Inglaterra, frequentar a temporada daquele ano, abrindo mão de um ou dois semestres na Universidade de Edimburgo, e encontrar uma esposa apropriada. 

Era o que Lucius queria.

Era a sua obrigação.

― Quando me casei com o seu pai ― começou Astoria com um ar preocupado e, carinhosamente, segurou uma das mãos de Scorpius ―, eu não esperava que um dia pudesse amá-lo de verdade. Eram tempos difíceis aqueles… para nós dois. Para o seu pai, que acabava de voltar de uma guerra, com uma cicatriz no rosto e sem qualquer perspectiva de amor. Para mim, com um pai morto e uma reputação prestes a ser manchada. O nosso casamento não foi uma escolha, nem mesmo uma vontade. Foi, na realidade, o nosso único caminho possível. Mas nós aprendemos que o amor se constrói, se constrói no dia a dia, no respeito mútuo, no apoio diário e incondicional, num gesto necessário ou num toque de carinho. Almas gêmeas ou não, hoje sei que Draco e eu pertencemos um ao outro. Ninguém jamais vai conseguir me convencer que o nosso amor é menor do que um amor místico. Draco foi e continua sendo o meu único caminho possível, mas, dessa vez, porque eu escolhi que fosse assim. Não tive escolha quando me casei com seu pai, mas todos os dias escolho permanecer ao lado dele. Eu quero que você experimente isso também, Scorpius. É tudo que quero, que encontre uma companhia que possa amar. Só que isso só vai acontecer se você permitir que aconteça.

― Acha que vou encontrar esse tipo de companhia no Almack’s²? ― zombou. ― Almas gêmeas ou acordos financeiros, é tudo que é possível encontrar nas temporadas sociais. O primeiro infelizmente não posso ter, sabe bem disso, só me restaria… o segundo. E quem me garante que terei a mesma sorte que você e o papai tiveram?

― Rose não tem uma alma gêmea ― deixou escapar Astoria, com um sorriso ansioso. ― É uma única, ao que tudo indica. 

― O que quer dizer com isso? ― Scorpius ergueu uma sobrancelha, desconfiado.

― Nada demais ― Astoria deu de ombros, fingindo inocência. ― Na verdade, os avós dela darão uma festa esta noite. ― Ela se levantou e caminhou até a escrivaninha. Depois de remexer alguns papéis, voltou com um envelope nas mãos. ― Eles sempre nos mandam convites, apesar de todos os conflitos que já existiram entre as nossas famílias. Não seria de bom tom, imagino, nós ainda temos um ducado e isso deve pesar. Pode ser uma boa maneira de começar a sua procura, não acha?

― Por que seria?

― Você não costumava amá-la? Se me lembro corretamente…

― Rose foi uma amiga de infância, mãe. Nunca será mais do que isso. ― Scorpius não era burro, sabia o que Astoria estava insinuando. ― Não posso ir a essa festa. Eu acabei de chegar de viagem, preciso descansar um pouco, arrumar minhas coisas, tentar conversar novamente com vovô… 

― São apenas cinco horas de viagem, você chegaria a tempo em Londres, posso pedir para o Sr. Smith preparar os cavalos. ― Scorpius suspirou, parecia impossível argumentar com Astoria naquele momento. ― Seu avô ficaria furioso se decidisse se casar com Rose ou com qualquer outro Weasley. Já pensou? ― riu, seus olhos azuis brilhando de malícia. ― E enquanto você pensa, e espero que pense com carinho, vou ver se a Sra. Joy precisa de ajuda com o almoço.

Astoria deixou o convite na mesa de centro e se retirou. Por um tempo, Scorpius se recusou a olhá-lo, embora algo se agitasse em seu íntimo. Uma vontade de seguir o conselho da mãe. De ir àquela festa e rever seus velhos amigos, que, depois de tantos anos, talvez nem se recordassem mais dele. Toda distância, quando absolutamente voluntária, cobrava um preço, e o seu poderia ser o esquecimento de todos que um dia amou. Virando levemente o rosto, encarou aquele envelope, que de repente pareceu brilhar de um modo diferente. Um suave brilho dourado, que da mesma maneira como surgiu, fugaz e incerto, desapareceu. Ele piscou, certo de que se tratava apenas de uma miragem. Noites mal dormidas eram capazes daquilo, não?

Por fim, Scorpius o pegou e decidiu se arriscar. Aquela festa não significaria uma diversão frívola ou uma procura por uma pretendente que não queria. Significaria, antes de tudo, Albus e Rose. Significaria, mesmo que momentaneamente, revistar algo que ficou enterrado, mas da qual sentia falta, deu-se conta. Embora não soubesse naquele momento, aceitar o convite para aquela festa o levaria diretamente ao seu destino maior. No entanto, é válido ressaltar que Scorpius poderia ter ignorado. Poderia ter recusado. Poderia ter se deixado levar pelo próprio cansaço. Mas não o fez.

E eis o porquê as escolhas são tão importantes quanto o próprio destino; sem elas, o segundo correria o risco de sequer se concretizar.

 

 

Certamente, houvera mais risadas no passado, constatou com um suspiro. Enquanto Mary Ann terminava seu penteado em silêncio, Rose lembrava-se do movimento frenético das primas, das conversas amenas, das piadas proibidas que entreouviam em algum lugar e que decidiam compartilhar e do som das gargalhadas que explodiam pelos cômodos. Todas sempre reunidas na mesma casa ― ora em uma, ora em outra. Preparando-se para o baile da noite, para um balé ou para uma ópera, repletas de expectativas e entusiasmos.

Tudo fora infinitamente mais fácil nas suas primeiras temporadas, nos anos áureos do romance. Até os vinte e três anos, nada era impossível, nada estava realmente perdido e o amor ainda podia aflorar no momento mais inesperado. No entanto, não foi apenas a esperança de uma alma gêmea no futuro que tornou a experiência das temporadas iniciais mais tranquila para Rose. Foi também a presença das primas, o conforto e a alegria da companhia delas. Disso, ela sentia tanta falta.

Tinha um quê de melancólico em ser deixada para trás. Uma a uma, Rose as assistiu, as viu encontrando aquilo que tanto procuravam. Sabia, no entanto, que nem tudo tinha sido um sonho encantado para as primas, às vezes o que se acha simplesmente não pode ser. A primeira foi Molly II, um pouco antes que a própria completasse a idade limite dos anos dourados. A segunda, Roxanne, ainda aos vinte anos, em sua temporada de estreia. E então, Dominique.

Dominique, que jamais poderia ficar com sua alma gêmea porque a sociedade em que viviam não aceitava aquele tipo de relação. Dominique, que fora surpreendida pelo que sempre havia sido e pelo que ainda não tinha entendido. O mesmo acontecera a Albus. Ambos não eram almas únicas, mas precisavam viver como se fossem, precisavam passar uma existência inteira distantes daquilo que lhes fora predestinado. O destino, às vezes, era cruel demais. Incompreensível demais.

Ao menos, ela ainda tinha Lily. Só não sabia por quanto tempo.

― Pronto! Terminei aqui! ― sussurrou a Srta. Creevey, contente. Mesmo se sentindo um pouco indisposta, a moça insistira para fazer o seu penteado naquela noite. Rose sorriu, agradecida, e olhou-se no espelho. Os cachos ruivos foram presos em um coque elaborado e pequenas margaridas brancas enfeitavam os seus fios, formando uma delicada coroa. Ela estava inegavelmente linda. Em outro momento, até poderia ficar feliz com aquilo. Entretanto, sentia-se exausta demais para qualquer outro sentimento que não o próprio cansaço.

Quando seu irmão a gritou pelo que deveria ser a terceira vez, Rose colocou um pouco de perfume nos pulsos e atrás das orelhas, e saiu do quarto. Não estava tão atrasada assim, por Deus! Apesar disso, acelerou o passo. No último degrau da escada, quase tropeçou, mas conseguiu se segurar a tempo no corrimão. Um pouco sem graça, ajeitou-se e caminhou em direção aos pais e ao irmão mais novo, que a esperavam na antessala.

― Eu tenho mesmo que ir? ― foi a primeira coisa que disse, com um olhar suplicante.

― Vovó Molly ficaria muito chateada se você não fosse e sua prima Lucy também ― piscou Ron, levantando-se e ajudando a esposa a fazer o mesmo. ― Além disso, você está linda esta noite, Rosie. Não vai querer guardar isso só para você, vai?

― Bem, eu ainda acho uma noite com incensos de capim-limão, chás quentes de cidreira e livros de mistério mais agradável que a alternativa ― resmungou para si mesma. Ron ajudou-a a colocar o casaco sobre os ombros e então ponderou: 

― Você sabe o que penso sobre a noite de hoje. 

― Ah, sim, você tem um pressentimento ― não pôde deixar de rir.

Do lado de fora, uma chuva muito fininha começava a cair. Durante todo o dia, uma tempestade ameaçou desabar sobre eles, porém, jamais passou disso: de uma ameaça. 

― Nós nunca discutimos com os pressentimentos do seu pai ― comentou Hermione, enquanto desciam as escadarias em direção à carruagem da família. Ela sempre fora mais cética que o marido e não escondia isso. ― Ele jura que bebeu uma poção da sorte quando mais jovem e que, por causa dela, eventualmente pode pressentir coisas que ninguém mais pode. 

― Era mesmo uma poção da sorte ― retrucou Ron, quando todos já estavam alojados em seus lugares. ― Eu ganhei no croquet no dia em que a bebi.

― Talvez porque você fosse bom e só lhe faltasse um pouco de confiança? ― provocou.

― Não pode negar que eu estava certo quando entrei naquela livraria onde você trabalhava, Mione. Eu não tinha qualquer motivo para fazê-lo, mas fiz. À princípio, achei que não tivesse valido à pena, pois a mãe de vocês aos dezesseis anos era um horror. ― A esposa revirou os olhos. ― Mas, vejam bem, se eu não tivesse entrado, se não a tivesse conhecido naquele dia, se não a tivesse odiado em um primeiro momento por ser tão irritantemente inteligente, então talvez não estivéssemos todos aqui hoje.

― Vocês poderiam ter se esbarrado em outra oportunidade ― rebateu Hugo.

― Talvez sim, talvez não. Quem realmente pode garantir? Ainda penso que, se eu não tivesse escolhido entrar naquela livraria, talvez não tivesse encontrado meu próprio destino.

― Quando algo é para ser, simplesmente não é? ― questionou Rose.

― Honestamente? Eu não sei, é possível. Mas gosto mesmo de pensar que temos um controle maior do que prevemos. Algumas vezes, o universo nos sopra algumas dicas, porém, a decisão de escutá-las é toda nossa. No momento, eu tenho essa intuição sobre essa noite e sobre Rosie e não quero ignorá-la. Prefiro assumir o risco de ouvi-la. 

― Obrigada. ― Girou os olhos. ― Mas eu preferiria que ignorasse… já que se trata de mim. Da minha vida.

Uma parte de Rose, aquela mais doce e fantasiosa, até queria acreditar no pai. Porém, a parte mais racional ― aquela que foi sendo moldada anos após anos e que, hoje, possuía uma força muito maior ―, não conseguia acreditar. Ela não achava que algo de especial aconteceria naquela noite. Sua vida era, na maior parte do tempo, uma sucessão de dias sem importância. Aquele não faria parte da exceção, certamente não era um daqueles dias que mudavam toda uma vida, dividindo-a ao meio. Por que motivo seria?

Tudo o que Rose queria era que os pais a entendessem. Eles deveriam entender. Sua mãe, entre todas. Ela vivia escrevendo sobre liberdade e direitos femininos. Sobre a independência das mulheres. Seu pai também deveria. Ele trocara a promissora carreira na marinha para administrar a fábrica de brinquedos do irmão, em um gesto de total bravura. Ambos acreditavam nas escolhas. O próprio discurso do pai naquele instante provava isso. Ainda assim, não permitiam que Rose escolhesse por si mesma.

Era irritante. Era hipócrita. 

― Sabe o que eu realmente queria? Eu queria o que você escreve na sua revista ― disse Rose para Hermione, quando todos já estavam em silêncio. ― Eu queria ser, no mínimo, um pouco mais independente.

― E você vai ser, querida. Você vai ter a sua perfumaria.

― Só não vou ser agora.

Ron suspirou.

― Esta é sua última temporada, Rosie. Se dê uma chance. São só alguns dias ― murmurou ele. Ela quis rir. Não eram dias, eram meses! ― Depois disso, nós lhe daremos o dinheiro do seu dote e você estará livre para fazer o que bem entender. 

― Nós não queremos que sacrifique nada, Rosie, nenhuma parte da sua vida. Se existe a possibilidade de você encontrar o que o seu pai e eu encontramos um no outro, então queremos que tente. ― Como a filha não respondeu, Hermione insistiu: ― Almas gêmeas podem se manifestar até os vinte e seis anos.

― É muito raro e vocês sabem, a maioria das pessoas práticas desiste aos vinte e cinco, quando não antes. Eu gostaria de já ter desistido. 

― Aconteceu com James ― lembrou Hugo. ― É verdade que as conexões costumam ocorrer entre os vinte e vinte e três anos tanto para homens quanto para mulheres, mas há casos mais tardios. Encontrar uma alma gêmea aos vinte e seis anos pode ser um pouco mais incomum, de fato é o limite do que consideramos os anos cinzentos, mas não é impossível. Se fosse, não estaria incluído nos referidos anos cinzentos. Acontece mais do que imaginamos. Aliás, o caso mais tardio já registrado em livros históricos ocorreu quando ambas as partes tinham por volta de setenta anos. Eles já eram viúvos, tinham filhos casados e netos quando tiveram sua conexão. Isso nos faz pensar como tudo é ainda mais inexplicável. ― O irmão fez uma pausa. Hugo era um estudioso nato e, nos últimos anos, dedicava-se arduamente à sua pesquisa. Ele sempre se empolgava um pouco quando começava a falar sobre ela. ― No entanto, não podemos negar: almas gêmeas estão se tornando cada vez mais raras. A expectativa é de que, daqui a cem anos, já não haja mais manifestações explícitas. Há teóricos que acreditam em almas gêmeas não-manifestadas e, pessoalmente, eu sou um deles. Existem pessoas que encontraram suas almas gêmeas, se casaram com elas, mas nunca tiveram o momento da conexão. É só uma teoria, mas…

― Eu não sou a porcaria de uma alma repartida! ― interrompeu Rose, elevando a voz, porque já não aguentava mais. Sabia que se tornara uma pessoa um tanto irritadiça nos últimos meses, contudo, não conseguia evitar.  ― Vocês sabem o que Platão escreveu sobre almas gêmeas, não sabem? Com certeza conhecem o mito de Andrógino. Pois bem. Eu não sou como vocês, não sou uma alma que um dia um deus megalomaníaco repartiu em duas, por medo da força dos próprios seres humanos. Eu não tenho uma metade faltando, não preciso de outra pessoa para me sentir inteira. Porque eu já sou inteira.

― Seu pai e eu também somos almas individuais e completas enquanto tal, Rosie ― replicou Hermione. ― Não acredito que ter uma alma gêmea signifique o oposto disso. Eu poderia viver sem o seu pai e ele, sem mim; e, ainda assim, seríamos completos. Não somos a metade fragmentada um do outro. Ter uma alma gêmea trata-se mais de encontrar alguém cuja energia é semelhante à sua e isso é algo bom. Nós dois nos compreendemos e conseguimos nos conectar dentro das nossas próprias individualidades. Estarmos juntos simplesmente nos faz bem e nos parece certo.

― Talvez o termo alma gêmea seja um pouco equivocado ― completou Hugo. ― Alguns teóricos preferem o termo almas afins.

― Meu Deus! ― riu de nervoso. Eles sempre tinham uma resposta para qualquer indagação dela, que surgia do próprio desespero. ― É tão ruim assim ser uma alma única? Alguém que não tenha uma alma gêmea, uma alma afim ou o que quer que isso seja?

― Não é ruim, mas você não é ― assegurou-lhe o pai.

― Talvez eu seja ― murmurou e virou o rosto para a janela da carruagem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Me inspirei na série Bridgerton, que tem um almanaque cujo maior objetivo é falar mal e rir das pessoas da alta sociedade. Como em Harry Potter nós temos a Rita Skeeter, achei que calhava muito bem.
²O Almack’s era um clube muito exclusivo, que reunia apenas pessoas de bom nascimento e que oferecia grandes bailes.



Esse primeiro capítulo inicialmente teria mais de 8k, mas decidi dividi-lo para tornar a leitura menos cansativa. É um capítulo bem introdutório e talvez um pouco mais chatinho, que mostra como os personagens se encontram e que também explica um pouco do soulmate. Por enquanto, está fazendo sentido? Espero que sim, mais para frente vocês vão entender como a conexão entre almas gêmeas ocorre. Quando eu pensei em uma fic soulmate, uma das primeiras coisas que me veio à cabeça foi o mito do Andrógino e eu precisei demais colocá-lo aqui, era quase uma questão de honra. Ou coloca ou coloca HAHAHA. A Rose está um pouquinho amargurada no momento, mas quem não estaria? Aliás, por favor, não pensem que o Ron e a Hermione estão sendo maldosos com ela. Na cabeça deles, eles estão apenas tentando fazer o que é melhor para a filha. Só que o que eles acham que é melhor nem sempre é mesmo o melhor. Eu imagino os dois como pais reais, que apenas cometem erros.