Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 24
My twisted knife, my sleepless night, my winless fight.


Notas iniciais do capítulo

Oi oi! Ai gente..... eu sei lá, sabe kkkkkkkk Esse quase que não chegaaaaa. Eu tenho uma relação muito complexa com essa historinha e às vezes eu só não quero postar ela, sabe. É custosoooo. Mas eu prometi para mim mesma que iria terminar, então estou Tentando. Volto a esta hora em uma sexta feira na situ terrível de estar doente, porém VOLTO. E eu gosto desse tb famíliaaa, ele é grandão mas é massa. O título vem da musiquinha Hoax de Taylor Swift e apenas porque eu quis mesmo, há tempos desisti de colocar título que faz algum sentido real kkkkkkk Espero que cês gostem e até lá embaixo.



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Clove passou o dorso das mãos pelos lábios bruscamente, se debruçando na pia em seguida. Enxergar seu rosto refletido no espelho a impulsionou a desviar o olhar mais uma vez. 

Me desculpa, me desculpa, me desculpa.

De repente, uma batida afobada na porta.

— Clove. O pessoal está te esperando na sala de reunião – pausa. – Você está bem?

Era a voz de Gaia, mas soava menos antipática do que o normal. Clove terminou de molhar seu rosto e se forçou a encarar seu rosto pálido mais uma vez.

— Eu já vou.

— O que é que você tem?

Clove abriu a porta do banheiro e deu de cara com a expressão assustada de Gaia, que tratou de cruzar os braços rapidamente ao vê-la, para não perder oportunidade de demonstrar sua insatisfação. A garota deu uns passos para trás, absorvendo a estranheza no rosto de Clove.

— Você devia ir ao médico. Eu vou ficar com o Teo.

Levou uma eternidade. Gaia ficou parada no corredor mais um tempo, a encarando daquele jeito que eles conseguiam encarar, antes de adentrar o dormitório de Teo. Então Clove se lembrou que precisava chegar até a sala de reuniões. Ela o fez. Tomou vaga consciência dos mesmos rostos que tinha abandonado quinze minutos atrás a encararem com curiosidade enquanto ela adentrava o cômodo, se sentando novamente na cadeira que ocupava antes.

— Tudo certo, Kentwell? – Lyme altivamente perguntou, sentada na outra ponta da mesa. Clove sustentou seu olhar implacável, desafiou sua expressão de quem sabia de todos os seus segredos.

O que você acha?, Clove queria responder.

— Sim – foi o que ela sibilou, empurrando a bochecha com a língua.  

Lyme assentiu lentamente, os olhos ainda grudados em Clove.

— Como estávamos falando antes de sua saída, tivemos notícias de outro ataque por parte dos legalistas à Remora hoje de madrugada. Recebemos notícias de mais quatro mortes durante a sua ausência, o que nos leva a um contingente de trinta e cinco vítimas, mulheres e crianças. Devido a isso, a Patrus vai assumir posição e começar a campanha de ataque. O primeiro alvo vai ser a Dardelia, como a gente tinha acordado.

Não era traição, Clove sabia. As pessoas estavam morrendo. Lyme tinha feito o máximo, todo mundo tinha, todo mundo tinha segurado até onde dava. Ela tinha segurado até onde dava. O problema era que Clove ainda queria segurar, à despeito do fato de que tudo estava desabando ao seu redor. Ela ainda queria parar de sentir aquele aperto na sua garganta, queria que a falta de ar que assolava seus pulmões amenizasse. Queria parar de ouvir uma voz muito familiar a acusando de traição.

(Todo mundo parecia querer dizer que era errado, mas vida dele ainda valia mais, ainda era mais sagrada que todas aquelas outras).

— Assim que eu tiver mais informações, convocarei outra reunião. No mais, soldados, se preparem para descer para a Patrus e prestar auxílio à população que foi deslocada para lá em função dos ataques na Remora. Dispensados.

Clove fez menção de se levantar com os outros. Lyme pigarreou. Mordendo a bochecha, contrariada, ela esperou a sala esvaziar e relutantemente se aproximou da figura de Lyme.

— Sim?

— Eu sinto muito, Clove.

As palavras pareciam estrangeiras escapando dos lábios de Lyme, sua voz parecia deslocada em cada palavra daquela sentença. Ainda em pé, ela observou Lyme se debruçar um pouco mais na mesa como se quisesse se aproximar dela, suas sobrancelhas unidas.

— A situação ficou insustentável.

Tudo que Clove pôde fazer foi assentir com a cabeça. Não tinha muita coisa para dizer.

Para Clove, parecia que ela estava presenciando os arranjos de um enterro.

— Além do mais, o 13 mandou você de volta com uma série de ressalvas. A Coin é uma governante peculiar. Como Vitoriosas e habitantes do 2, você entende que precisamos evitar qualquer ação ambígua, qualquer coisa que possa ser entendida como traição.

— Entendo.

A sala caiu em um silêncio pesaroso por alguns segundos.

— O que você negociou com eles? – Lyme disparou. Clove ergueu as sobrancelhas como se não entendesse a pergunta. A mulher mais velha sacudiu a cabeça. – Não, Clove, não começa com suas coisas. O que foi que você disse?

— Você já sabe o que eu disse – foi como Clove começou, em um tom hostil. Se todo mundo parecia saber de sua decisão de tentar bancar a vida de Cato em troca de seu próprio distrito e possivelmente de uma acusação de traição, qual era o ponto de verbalizar isso? Lyme cerrou mais a mandíbula. – Eu falei que ia convencer as pessoas daqui a mudarem de lado, mas que eu precisava do Cato para terminar o serviço.

— E alguém te perguntou o que você faria se o Cato não voltasse? – Lyme pronunciou suas palavras com as sobrancelhas erguidas de quem meramente prova um ponto.

— Não.

— Pois é. Então é melhor você mostrar serviço, é melhor a Coin ver que você está fazendo alguma coisa. Você vai pra Curia hoje à noite.

Foi um decreto. Clove franziu as sobrancelhas, seus olhos injetados brilhando com raiva.

Perdão?

— Ninguém quer que você seja acusada de traição no final de tudo isso. Você vai para a Curia com um pequeno grupo. Nós mobilizamos a praça central, seu rosto fica visível em todo o distrito. A atenção vai estar voltada para a Dardelia, nós esperamos te tirar com segurança. Dessa forma, você também vai estar agilizando o serviço de conseguir o distrito, como prometido pro 13. – Lyme destrinchou, seu plano perfeitamente construído.

Depois de tudo aquilo, Clove ainda teria que tornar sua traição pública.

— Não. Eu não vou mexer com essa merda, está bom do jeito que está. Eu te ajudo daqui, eu não vou pra porra de palco nenhum. 

— Você vai – a voz de Lyme era altiva, indiferente a tudo que Clove dizia. – Porque você não é burra. Você sai pra vomitar no meio de uma reunião porque alguém menciona tomar o distrito de vez e quer o quê? É a Curia ou uma denúncia de traição, Kentwell. Você conhece o distrito. Nenhum traidor é perdoado. E você vai ser uma se todo mundo não te ver na porra de um palco desbancando o Snow. Você precisa deixar claro de qual lado você está.

Só havia um lado, na verdade. Um que Clove iria trair mais uma vez.

Uma lágrima minúscula escorreu pelo rosto pálido de Clove, que encarava a janela em silêncio, assistindo enquanto todos os mundos desabavam mais uma vez.

— Você sai daqui a duas horas. Eu vou reunir uma equipe e te encontro na saída.

Se Clove realmente se importasse, valeria a pena discutir com Lyme que tipo de raciocínio ela estava conduzindo quando omitia qualquer menção ao fato de que os Pacificadores iriam atirar nela no segundo que ouvissem sua voz se dirigindo ao povo do 2. Eram os mesmos Pacificadores liderados por Orpherius, os mesmos que conduziam sessões de chicoteamento semanais por “desacato” e “incitação de pânico” e “perturbação da ordem”. Clove havia visto crianças de onze anos serem assassinadas em público porque tinham murmurado contra a Capital.

E lá estaria ela, Clove Kentwell, o orgulho do distrito, discursando contra Snow.

Um de fora poderia pensar que aquilo se tratava de uma armadilha mal planejada.

Se ao menos ela se importasse.

Ela se despediu de Gaia e Teo de um jeito muito quieto, de um jeito quase silencioso. Se ela morresse, eles teriam que se virar sozinhos de vez. E ela não queria refletir muito sobre isso, porque Clove honestamente não apreciava muito reflexões naqueles tempos.

(Clove às vezes achava que sua existência estava se esvaindo aos poucos, como ela sabia que aconteceria).

Gaia a abraçou, dessa vez, por oito segundos, como se soubesse. Teo acenou com a cabeça.

Eles designaram um traje inteiramente preto para ela. Seus cabelos deviam estar soltos; qualquer coisa muito requintada seria apologia aos costumes da Capital. Cuidadosamente, eles tentaram desfazer os nós em sua imagem.

Ninguém queria ver que a Capital havia tocado nela. Que ironia.

Clove se movimentou na direção de uma pequena procissão que a aguardava na porta da base. Mais uma vez, ela era uma deusa (ela nunca tinha deixado de ser uma; sua divindade só representava coisas diferentes). Sem dizer uma palavra, ela começou a liderar o grupo.

A cena toda parecia muito familiar, os elementos todos muito parecidos com os que ela conhecia perfeitamente. Ela sabia como era caminhar para sua execução e era muito parecido com aquilo. Como mais ninguém, ela reconhecia o raciocínio empobrecido, a tontura leve, os passos que quase pareciam flutuar. 

Quando eles avistaram o primeiro conjunto de casas que pertencia à Curia, a vila principal, já era madrugada; a escuridão era implacável. O grupo fortaleceu uma formação ao seu redor.

— Os Pacificadores estão concentrados na Montanha. Nosso palpite é de que eles não vão atirar antes de ouvir o que você disser. Vamos fechar em cinco minutos. Você fala, a gente transmite e a gente sai. Ok? – uma mulher com um coque severo falou apressadamente, grudando um microfone em sua blusa que ostentava o desenho discreto de um tordo.

— Perfeito – ela sibilou em resposta.

Se locomovendo pela vila adormecida, Clove contemplou o que costumava ser seu domínio oficial. A Curia sempre havia desejado proclamá-la sua, sempre havia querido ser seu território. Enquanto ela tomava seu lugar no palco, ela sentiu que aquela era a traição perfeita, a justiça sendo feita de um jeito muito mordaz.

— As luzes acendem e você fala – a mesma mulher de antes informou.

— Claro.

Clove sabia como falar. Ela sabia o que dizer, sabia como o dizer, sabia o que as pessoas queriam ouvir ou não. Ela sabia que seu distrito era um fã incorrigível da glória, de acontecimentos épicos, de orgulho extrapolando existências. Eles não brincavam com sentimentos, com discursos emocionais, com nada que lembrasse humanidade demais. Era por isso que o Tordo não vendia muito bem naquelas terras.

Eles gostavam muito da princesa arrogante da Capital porque ela dobrava o pessoal do Snow e era divertido de observar, mas, naquela noite, eles iam ter que se contentar com a heroína espartana que faria eles se curvarem.

Uma por uma, as luzes insuportavelmente brilhantes foram acesas. Seu colar reluziu. Clove se sentiu em casa, como sempre sentia quando tinha a mais absoluta atenção. A pessoa com a câmera acenou. Em sua posição imponente, Clove começou.

— Distrito 2, quem se dirige a vocês é sua Vitoriosa, Clove Kentwell. É de conhecimento geral que atravessamos uma guerra e eu vim aqui para garantir que vocês não a lutem do lado errado. Snow não deve sair impune da destruição que alastrou. Ele não é o líder bondoso e honrado, ele é um tirano fraco e desonesto. A Capital não fez nada pelo nosso distrito além de dominar nossas riquezas, quebrar nossas crianças e nos separar do resto de nossa nação. Como uma Vitoriosa, eu me sinto confiante em dizer que o discurso pregado por eles não passa de uma ideologia perigosa e falsa, que não tem outro propósito se não nos convencer de que a Capital é nossa aliada enquanto ela pessoalmente nos destrói. Nós não vamos encontrar a honra lutando por Snow e as aberrações que formam seu povo. A honra só pode ser encontrada se nós lutarmos com o Tordo. Com orgulho, nós devemos destituir Snow do poder e assumir nosso distrito, nossa nação. Como um distrito poderoso, eu convoco vocês, meu povo, para se juntar a mim e alavancar Panem a uma nova era de justiça e dignidade.

Sua voz ecoou por alguns longos segundos. Sinais de vida surgiam por detrás das sombras. Sons discretos, luzes acesas; mas ninguém ia se atrever a cruzar os limites da Praça Principal enquanto uma traição daquela magnitude acontecia e era registrada. Se Clove havia decidido trocar de lado, ela não mais pertencia a eles, certo? O destino dela era perigosamente incerto.

Mas eles haviam ouvido, porque Clove não falava sem ser ouvida, afinal. Os ousados haviam visto, a autoridade em sua voz, o poder estranho que ela sempre emanava agora sendo usado para incitar uma guerra contra a Capital que ela sempre se empenhava tanto em agradar.

O estrago estava feito.

Clove sorriu. Seus olhos brilhavam em um tom de esmeralda.

Ela estava perfeitamente à vista, perfeitamente exposta para um tiro limpo – e, mais importante, ela estava pronta para receber um. Contudo, nenhum Pacificador foi avistado. Nenhuma acusação de traição foi proclamada.

Parecia que Clove ficaria impune mais uma vez. E ela estava confusa, ela estava desapontada.

Alguém puxou seu braço e a conduziu para descer apressadamente as escadas do Edifício da Justiça e mergulhar na escuridão da floresta.

— Por que eles não estão atiraram? – um homem sussurrou, expressando bem as dúvidas de Clove.

— É a Clove, Lurco. Eles não vão encostar nela se a Capital não mandar ordens diretas – a mulher de coque respondeu, engatilhando o revólver mesmo assim. – Foi um bom discurso, à propósito.

Clove não respondeu. Ela estava com muita raiva para conseguir falar. Ela se perguntou como seu distrito podia ser tão comprometido em adorar sua figura traiçoeira. Se perguntou como qualquer um podia decidir adorar sua confusa bússola moral.

O sentimento ameaçou sucumbi-la. Era tudo traição. E, mesmo assim, ela ainda respirava.

Clove tinha ódio nublando todos seus sentidos porque nada naquilo acabava.

Ela tinha acabado de invadir o território da Curia, a se mostrar pela primeira vez como uma traidora. E, mesmo assim, lá estava ela.

Viva, só para que ela pudesse ver todos os funerais.

— Você acha que vai funcionar? – Lurco tornou a perguntar, enquanto eles atravessavam a floresta densa.

— Vai. – Clove decretou, observando o arrepio que eriçou os pelos do pescoço do homem. Todo o grupo permaneceu em silêncio, quase não se atrevendo a falar muito em sua presença.

Funcionaria, porque Clove era quem costumava dobrar a aristocracia do distrito. Ela sabia que alcançaria esse resultado, sabia que seu distrito sempre a ouvia. Ela sabia que não precisava de Cato para convencer ninguém a fazer nada.

Ela escutou as respirações arfantes do grupo. Ela pensou se a de Cato já tinha parado. Em quanto tempo eles demorariam para avisá-la. Em como ela contaria para Gaia e Teo o que ela tinha acabado de fazer. Que, enquanto discursava e terminava de assinar o assassinato do irmão deles, ela tinha sentido um tipo perigoso de vivacidade, porque ela estava pronta para o fim. Em como suas bochechas tinham corado e em como ela havia sentido o sangue correr de verdade por suas veias, ainda que seu cérebro não parecesse estar recebendo nenhuma parcela. Ela pensou no que Cato faria se a situação fosse invertida e ela estivesse na Capital. A vida dela era uma de suas leis, ele havia dito. Ele era um tipo diferente de deus. Ele nunca teria feito o que ela tinha acabado de fazer. Cato era muito melhor que ela.

Ele deve me odiar.

Ele devia. Eles todos deviam.

Eles todos fingiram não ver a lágrima que escorreu do olho vidrado de Clove, caminhando como se estivesse se preparando para uma condenação. Alguma coisa no fundo de seu âmago a alertava para um julgamento próximo.

Do alto, eles observaram o momento em que as luzes foram desligadas, todas de uma vez. Alguns tiros foram ouvidos. Eles continuaram a andar, em um silêncio que aguardava algo.

Ainda estava escuro quando o grupo finalmente alcançou a base. Era madrugada, mas o movimento era intenso. Como se estivesse flutuando, Clove observou as pessoas a cumprimentarem, a informarem sobre os benefícios de sua intervenção. O discurso havia sido exibido duas vezes em todas as vilas até conseguirem desligar a energia. A Remora tinha terminado de expulsar seus Pacificadores. Com a queda da energia, o Voivode havia sido tomado. Alguns dos rebeldes tímidos da Curia haviam se inspirado com seu discurso. A Arvina tinha decidido apoiar a causa se deslocassem alguns braços para lá. As coisas iam ficar complicadas, mas elas estavam indo para algum lugar.

Cato estava morto e as coisas estavam indo para um lugar.

A coisa toda era complexa, era ambígua. Seu distrito era leal a ela, ela sabia. Mas eles tinham deixado a Capital levar suas crianças não apenas para morrer, mas também para serem transformadas em monstros antes. Ela não tinha certeza se eles a seguiriam porque eles odiavam a Capital ou se era porque Clove representava a Capital tão bem que era muito fácil fazer o que ela mandava o tempo todo.  

Ela era muito gloriosa e toda aquela glória era por causa da Capital. (Ela era a Capital, no final?)

Cato estava morto e todos eles estavam celebrando e a Capital ia cair mas seriam eles a Capital?

O ódio que Clove sentia de si mesma queimava suas veias como óleo quente.

Respirando com dificuldade, Clove se afastou novamente da base e adentrou a floresta (os guardas curvaram as cabeças quando ela passou). Ela tinha acabado de resolver seu dilema, tinha acabado de quebrar a aliança mais sagrada.

Sentada com as costas apoiadas em uma árvore enorme, ela desejou. Por uma coisa perdida.

Há um ditado que alerta; tenha cuidado com o que você deseja.

Clove abriu os olhos ao som de um galho se partindo à sua esquerda, na direção da base. Podia ser o momento de sua execução. Alguém havia a seguido. Um dos guardas podia ser um traidor. Ele tinha visto seu poder e decidido exterminá-la antes mesmo de consultar a Capital. De repente, seu coração estava querendo quebrar suas costelas. A primeira linha de suor desceu por suas costas.

Lentamente, ela ergueu seu corpo, ainda encostada ao tronco da árvore.

Aquele não era jeito certo de morrer. Clove Kentwell devia morrer de um jeito que se não fosse glorioso, ao menos fosse bonito. Se não lutando em um lugar decente, ao menos tomando uma decisão por si só. Ninguém que a queria morta devia ter o poder de matá-la, mas.

Ainda era melhor que nada, certo?

Clove quase decidiu não alcançar a faca em sua jaqueta. Quase.

Mas só se render não combinava muito com ela.

Clove não era a pessoa mais paciente. Não dava para ver nada, mas ela decidiu se mover na direção do som. Silenciosamente, sem cometer o erro de deixar galhos se partirem sob seus pés. 

Na arena, ela havia feito a mesma coisa. Ela tinha uma faca. O silêncio era desesperador. Onyx agarrara seu rabo de cavalo em um segundo. Suas costas foram jogadas contra uma parede áspera. Ela ficou muito perto de morrer.

(Clove sabia que seus planos de fator surpresa nunca funcionavam).

Clove se chocou bruscamente em alguma coisa. Mas não era uma coisa.

De repente, ela soube que não queria mais ninguém tocando nela. E a coisa continuaria uma coisa até ela enxergar o que era exatamente. Por causa disso, levou alguns segundos para que ela se atrevesse a olhar para cima. 

Um, dois, três.

Clove colocou a faca atrás das costas. Ela finalmente olhou.

E aí puta que pariu.

Um arquejo desesperado deixou seus lábios enquanto ela reconhecia a figura em sua frente. Era tudo muito familiar. Mais familiar que suas mãos, mais familiar que as sardas em seu rosto. Estava tudo lá e o tudo queimava seus olhos. Clove quase não queria ver aquele rosto tão excruciantemente bonito e os olhos que ela não queria ler e o mesmo cabelo que ela queria brutalmente cortar há anos atrás.

— Puta que pariu.

Já era pra mim, ela pensou, a frase acompanhada por imagens fantasiosas de sanatórios e camisas de força. Nada se moveu por longos minutos. Ela observou fascinada o que havia em sua frente, sem se atrever a sequer respirar. As existências ao redor respeitaram seu momento, tudo estava parado, nada existia além deles dois.

— Oi – o Cato em sua frente falou e sua voz era exatamente igual a do Cato de verdade.

Mas aquilo não era real. Ela tinha matado Cato horas atrás. Não fazia sentido.

A cor terminava de abandonar o rosto de Clove enquanto ela tropeçava para trás, com muito medo de responder a alucinação e assinalar sua existência. Mas ela continuava se aproximando e ela podia jurar que ela cheirava que nem ele.

— O quê? – a coisa disse. Seus olhos eram tão bonitos, Clove queria fechar os seus. Se ela o fizesse, ela não ia reparar na maneira com a qual aquilo parecia querer tocá-la. Se ela o fizesse, talvez ela fosse parar de querer tocá-lo também. A coisa passou mais um tempo em silêncio, a olhando com incerteza. ­– Não me reconhece mais?

Clove estava bem perto de desmaiar.

A voz parecia que iria rasgá-la ao meio. Ela pensou que não conseguia lembrá-la com aquela exatidão. Na sua mente, Clove não costumava reproduzir com tanta riqueza aquele arco nas sobrancelhas nem os fios específicos que encimavam o topete.

(Na sua mente, Cato nunca mostrava nada além de adoração em seus olhos. Aquele de agora mostrava várias outras coisas, se aproximava dela com o que poderiam ser várias intenções.)

Um gemido bem pequenininho deixou os lábios de Clove porque a coisa só não ia embora e parecia tarde demais para ficar louca de vez. 

— Não sentiu saudade, Clove? Eu senti –  Cato disse, porque ninguém, nem sua mente danificada, conseguiria reproduzir aquele tom de voz, aquele jeito rápido que as emoções passavam no rosto dele.

Clove parou de se afastar para trás.

Ele parou de avançar na direção dela. Eles pararam por minutos longos, para que Clove pudesse analisar cada um dos traços em seu rosto, cada uma das cicatrizes em seu braço, cada uma de suas respirações. Ela enxergou a pulseira do distrito em seu braço. Clove sustentou o olhar da coisa. Ela sentiu a pontada familiar cruzar seu peito porque os olhos dele eram os únicos que podiam fabricar tanta destruição.   

O abraço quase machucou.

— Puta merda – Clove sussurrou, o som abafado pelas costas de Cato. Seu corpo tremia levemente enquanto ela tentava cheirar a superfície da saboneteira de Cato, ainda tentando estabelecer o acontecimento na realidade concreta. Ela apertou um pouco seus braços ao redor dele, só para garantir. Alucinações não poderiam ser vívidas assim, podiam?— Puta merda, eu pensei que você tinha morrido.

Cato estava vivo, Cato estava vivo, Cato estava vivo. A frase não precisava mais acompanhar as imagens das salas de tortura, a culpa sufocante, a incerteza traiçoeira. Clove observou uma lágrima escorregar para a camiseta dele.

Mas o problema era: Clove estava quebrada o suficiente para declarar perda total.

No escuro, em silêncio, ela havia desejado por algo pior que ela, algo cujas peças estivessem estilhaçadas. Como um mestre, ela poderia juntá-las, consertar tudo, ignorar as pontas afiadas de suas próprias partes.

Eles sempre dizem para você tomar cuidado com o que deseja.

Cato a soltou. Não foi com brutalidade, foi com gentileza.

Contudo, Cato não a soltava primeiro.

Clove podia jurar que havia algo errado no momento em que ele voltou a encarar seu rosto.

— Eu posso te beijar?

As sobrancelhas de Clove se franziram levemente porque tinha alguma coisa esquisita, uma sensação de incerteza que vibrava no ar, uma que nunca havia entre eles. Não era do feitio dele pedir permissão para aquele tipo de coisa. Mas Clove exprimiu um sorriso.

— Claro.

A próxima coisa que aconteceu foi um tropeço para trás enquanto ele a beijava. Era bom, era sempre bom, mas alguma coisa no primeiro segundo eliciou um alarme no fundo de sua cabeça. Clove o deixou, contudo, e sentiu a pontada violenta quando Cato a mordeu. Nenhum sangue foi arrancado, mas quando eles se separaram, ele a olhou como se houvesse sido. Como se procurando por uma reação (uma que ela não sabia mais como ter). Era um beijo como aqueles do começo, em que sangue seria arrancado. Mas por ela.

Ela voltou a respirar com dificuldade. Clove encarou de volta o olhar de desafio de Cato, se perguntando, honestamente, que porra era aquela. Segundos pesados escorregaram. Ela devia dizer alguma coisa?

— Desculpa – Cato disse rapidamente, de repente.

— Não tem problema. Você sentiu saudade – Clove se ouviu dizer. Mas tinha um problema, ela via claramente, porque Cato parecia mais confuso do que nunca, porque ele estava bem ali olhando para a floresta ao seu redor como se nem soubesse onde estava, porque Clove podia sentir que tinha algo errado em cada um de seus ossos e ela nunca errava.

Ela quase não queria ouvir, quase não queria saber o que tinha causado aqueles quilos a menos e aquela palidez que nunca tinha ornado bem com ele. Era quase como se ela não pudesse formar quaisquer palavras por minutos compridos.

Tinha alguma coisa errada e Clove não queria ver, não queria ouvir, não queria saber porque depois de tudo aquilo...? Havia uma tensão estranha, uma energia esquista que fazia Clove não saber como agir.

Cato estava diferente. Nada daquilo ali estava certo.

Ele já devia estar questionando seu silêncio, mas ele não pareceu se importar, não pareceu perceber.

 – Como foi? – foi o que finalmente escapou dos lábios de Clove.

Só então Cato voltou a reparar sua presença; ele desviou os olhos do céu e sorriu brevemente.

— “Como foi”. Você usa as palavras de um jeito engraçado... – e Cato apertou os olhos em sua direção, passou a mão pelo cabelo para disfarçar que tinha esquecido a porra do nome dela. – Clove.

Clove não respondeu; ela apontou com a cabeça para o chão e foi enquanto eles se sentavam que ele respondeu:

Divertido. Foi divertido.

Clove não desviou o olhar enquanto se sentava de frente para ele (não ao seu lado).

— Divertido? – ela repetiu, apertando os olhos para Cato, que levantou as sobrancelhas com descaso, como se não entendesse a razão de ser de seu choque.

— Eu adorei, eu adorei todas as partes. O dia que eles me capturaram foi incrível. A Enobaria estava lá, também, então a gente se divertiu. O Coriolanus me dando uma segunda chance de te entregar também foi legal. O dia que eles disseram que estavam com a Gaia, eu... Eu me diverti muito.

A fala era muito rápida, muito embolada, muito diferente do tom arrastado que era habitual de Cato. Havia aquela ironia agitada que nunca tinha combinado com seus olhos muito expressivos, aquele ar de riso de seus piores dias. As sobrancelhas de Clove se franziram; tinha uma coisa muito errada.

Cato olhou de volta pra ela, rindo.

— Você entende de ironia mais do que eu, não é? – ele disse, ainda sorrindo daquele jeito esquisito. – Você que me perguntou “como foi”. Obviamente que foi uma merda, Clove, não se faz esse tipo de pergunta.

Clove não sabia bem o que dizer. Cato sempre agia estranho quando seus castelos desabavam, mas. Não era só aquilo.

Uns minutos se passaram e Cato a olhava, esperando, erguendo as sobrancelhas com escárnio ao reparar no colar em seu pescoço. Quando Clove olhou de volta para o seu rosto e viu a profundidade de suas olheiras, seu olhar perdido, a dificuldade que ele parecia estar tendo para respirar, uma raiva muito familiar borrou sua visão.

— Por que porra você não apareceu no dia que a gente ia sair de lá? – ela disparou.

Clove não queria gritar com ele, não queria berrar ou acusá-lo de ser o filho da puta que tinha a deixado sozinha, não depois do que ele obviamente tinha passado, mas... Ela meio que queria.

Ela não era lá muito boazinha. E Cato não combinava com a Capital, o distrito inteiro sabia, então ele devia saber também. A idiotice ele já estava passando dos limites.  

— Eles te machucaram? O que eles fizeram? Você é o maior fodido de todos, sabia? – as palavras saíam claras, bem enunciadas, mas eram originadas de um estado de frustração extremo, de uma confusão estranha que aquele Cato estava provocando.

— Sabia – foi sua simples resposta. Os olhos dele ainda estavam grudados em sua figura.

A expressão de Cato parecia cínica demais, vazia demais, estranha demais, odiosa demais. Clove se lembrou de noites difíceis depois dos Jogos. Então, só para combinar, ela cruzou os braços.

— Você foi atrás do Naevio.

— Fui – ele afirmou tranquilamente.

— Eu disse que ia dar merda – o tom de Clove era agressivo, frio, porque se ele queria briga, ele sempre podia arranjar uma com ela.

— Você é a esperta, bebê.

Bebê. Aquele apelido devia ter sido enterrado.

Nada daquilo parecia certo. Toda aquela hostilidade casual não devia mais pertencer a eles, mas Clove não sabia o que fazer, não sabia como agir.

Eles permaneceram em silêncio por longos minutos.

Cato de repente deixou o fantasma de uma risada suspirada escapar, sacudindo a cabeça. Clove, de braços cruzados, ergueu as sobrancelhas de uma maneira que não podia ser descrita como agradável.

— Eu rezei uma vez – ele declarou, arregalando os olhos como se estivesse contando uma piada hilária. – Levou dez minutos pro pessoal do Snow me achar depois que a Everdeen explodiu tudo. Eu me lembro de sentar lá e rezar pra eles não pegarem o Teo e a Gaia. Pra eles não pegarem você.

Clove tinha seus olhos fixados na figura de Cato, sorrindo como se espirituosamente recordasse uma fase ridícula. Aquilo não era o jeito mais apropriado de se contar aquelas coisas.

 - Obrigada – ela sibilou, incerta sobre o que ele queria ouvir.

— É, é, sem problemas – ele dispensou, ainda encarando seu rosto. Clove sentiu um ímpeto estrangeiro de desviar o olhar. – E você? – Cato sorriu, apontando com a cabeça para ela e sua face pálida, suas olheiras violetas, seus lábios secos. – Como foi pra você? O que aconteceu?

O que aconteceu?

Clove levantou os olhos e viu tudo de novo, em cores vibrantes. Cato e sua voz suave, tocando nela como se sua composição fosse porcelana, se preparando para fazer promessas de vingança e colocar todos os demônios de volta em seus olhos.

Ela sentiu alguma coisa que disparou por suas veias, disparou seu coração, a fez morder os lábios. Não era raiva que ela sentia, não de verdade. Era uma vontade desesperada de falar; de poder falar. Clove queria falar sobre coisas que eram interditas, de tudo aquilo que eles não podiam pronunciar quando estavam na Capital.

Ela queria falar sobre ele matando seu cliente. Sobre as coisas que ela havia o mostrado, mas que ele jamais devia ter visto. Sobre as conclusões que ela tinha chegado naqueles tempos estranhos. Sobre tudo que tinha sido construído para que eles estivessem naquela exata posição; seus lábios selados, seus olhos trancados.

Mas, daquele jeito, eles não podiam realmente falar nada, não quando havia tanta coisa para ser dita. E Clove mal conseguia encarar seu rosto abatido, seus olhos cheios de culpa porque ele tinha o sangue de outro homem nas mãos por causa dela. Coisas terríveis tinham acontecido por causa dela.

O que aconteceu?

Talvez Cato não combinasse com a Capital porque Cato não combinava com Clove.

A história era muito comprida, muito dolorida. Tudo aquilo era muito bagunçado, muito estragado. Daquele jeito, eles dois decretados caso perdido, Clove pensou que eles não deviam ficar perto um do outro se não quisessem piorar o dano.

Cato odiava ela, agora, aparentemente. (Com razão).

Pesar tomou os olhos de Clove. Era quase... dor.

Cato viu, com um pouco de choque. Ele coçou o nariz.

— O inferno vai gelar quando aquele pessoalzinho conseguir me quebrar, Clove – Cato pronunciou, de repente. – É nisso que você está pensando?

— Não – Clove respondeu honestamente, de pronto.

— Ah. Não dá mais pra ler sua cabeça, então.

Cato estava sorrindo, esperando alguma resposta espirituosa, qualquer coisa que soasse como aquele flerte morno de sempre. Clove, no entanto, prendeu seus olhos escuros em seu rosto. Ele franziu as sobrancelhas, esperando pelo que viria.

— O que aconteceu?

A voz de Clove mal pôde ser ouvida, mas Cato obviamente conseguiria juntar os pontos entre os olhos suaves de Clove e de suas palavras sussurradas. Clove assistiu o sorriso de Cato se abrir, um que podia denunciar uma risada estranha daquelas. Ele, contudo, meramente sustentou o sorriso aberto (triste?), sacudindo a cabeça.

— O que aconteceu? Só fala. Conversa comigo – Clove disse.

Ela quase riu quando se ouviu, também, porque essa era uma frase que Cato costumava usar muito com ela, há milhões de anos atrás na Academia, suas mãos tocando seu braço muito levemente, seus lábios próximos de seu rosto.

Mesmo assim, nenhum deles falou mais nada por um tempo. 

Cato ainda sorria; Clove concluiu que ele não ia conversar com ela. Não agora, de qualquer forma. O frio começou a fazer a ponta do nariz dela doer, ainda que Cato parecesse estar apreciando o vento, olhando o céu como se nunca tivesse o visto. Ela se perguntou como eles ajustavam o clima lá onde ele havia ficado, na Capital.

— Vamos voltar pra dentro – foi o que Clove decidiu dizer, se levantando.

Ela esperou Cato a alcançar e eles desceram pelas árvores como tinham feito milhões de vezes antes. Todos os recortes pareciam familiares. O jeito que ele coçava o nariz porque ficava nervoso perto dela. O barulho das folhas sendo pisadas. A sensação de desespero, contudo, parecia ter uma força renovada, parecia ter se tornado daquele tipo que espreita no canto, cria uma tensão insuportável, sufoca quando finalmente ataca.

Antes de alcançarem a base, Clove alcançou a mão de Cato.

Ele ficou tenso por uns segundos, mas eventualmente deixou que ela entrelaçasse seus dedos.

Naquela madrugada, Teo chamou Gaia para seu dormitório e Cato adentrou o de Clove, erguendo as sobrancelhas com aquele ar de insanidade, aquele humor cáustico dos piores dias. Clove na mesma hora se afastou para a cabeceira da cama, encolhendo as pernas. Cato se sentou na ponta, cobrindo a cabeça com as mãos. 

O tempo se arrastou; ele quase arranhou a superfície com suas unhas afiadas.

Sacudidelas discretas assomaram os ombros de Cato.

Clove sentiu seu coração se despedaçar em pequenos pedaços.


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Notas finais do capítulo

AAAAAAAAAA e aí quem amou este comeback??? O que será q rolou nesta Capital heim?? Vem aí, quando Deus permitir kkkk ah gente mas sério q DÓ. Bem sabem q eu tranquilamente pego os dois pra criar não há um pano sequer que eu não passaria, uma montanha que eu não moveria por eles.. E assim O AMOR É REAL ninguém acima deles!! Eu nem tenho muita coisa pra comentar aqui porque tem um tempão que eu terminei de mexer neste capitulozinho então eu não lembro de muitos detalhes kkkk mas acho ele BRABOOOO. Então é isto. Beijo, obrigada e até mais.



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