Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 25
I fight the world, I fight you, I fight myself.


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente.. Apenas deixando este aqui naquela energia reputation era, não tem explicação apenas reputação.. reputação de me esforçar ao máximo para terminar esta historinha enquanto a casa cai. Este aquii fala sobre as montanhas que movo por Cato, o Único, o reizinho. O título vem de Pray for Me, de Kendrick e The Weeknd e é isto, espero que cês gostem.



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A Clove sabe de tudo.

A sentença havia sempre fiado suas ações, suas crenças, suas decisões. Foi nisso que ele acreditou por toda sua infância, por toda sua juventude, por toda a sua vida, talvez até em outras. Quando ele abriu os olhos e a encontrou parada no mesmo lugar em que havia permanecido na noite anterior, sua fé apenas aumentou; sentada lá, o observando, ela sabia o que ele estava pensando.

Estava tudo lá, os cabelos compridos, a compleição pequena, os olhos inquisidores. A sensação estranha de ter sido pego cometendo um delito.

— Oi – ela disse, sorrindo.

Cato demorou um pouco para responder. Ele ainda estava tentando estabelecer a cena na realidade. Ele tinha dormido, aparentemente, por algumas poucas horas, nas duas camas que tinham sido empurradas para virar uma e Clove estava ali como se nunca tivesse deixado de estar. E a luz no dormitório parecia muito forte. O reluzir naquele colar ridículo parecia de outro mundo e Cato se perguntou se tudo aquilo era real mesmo.

Eu nunca achei que você fosse ser um traidor, moleque.

Ele havia visto o discurso dela na madrugada anterior. Ouvido o desgosto em sua voz, observado a força gloriosa que emanava dela; aquela Clove ali, de agora, parecia muito gentil. Cato sentiu uma pontada de dor atravessar sua têmpora e quase se movimentou na direção dela, mas logo mudou de ideia. Ele se levantou e alcançou o banheiro, deixando sua figura confusa (e encolhida) para trás.

— Só me escuta, porra! Você não é burra, você sabe que eu não estou mentindo!

Clove estava agora toda moldada para a Capital. Ela parecia de outro mundo. Cato quase queria sentar e tocar o cabelo dela, seu rosto incrivelmente macio de agora. Se ela só não fosse tão empenhada em ser uma vadia.

Ela continuou jogando suas facas, sem sequer desviar os olhos dos alvos. Se preparando para ser morta. Se preparando para ser destruída, oferecida como sacrifício para uma corja de urubus coloridos. O tempo estava passando, agora meros dias ficavam entre os Jogos. Ele se lembrou de seu último cliente. De Clove penteando o cabelo de Gaia. Ela tinha que desistir.

— Clove! – ele berrou.

Finalmente, ela se deu ao trabalho de reconhecer sua presença. Uma última faca acertou o alvo com muita força. Lentamente, ela se virou para ele.

— Cato. Posso ajudar? – Clove sibilou, entredentes.

Tudo que Cato pôde fazer foi respirar por uns longos minutos, sentindo suas veias pulsarem, a aura de raiva se expandir ao seu redor. Seus dentes cerrados começaram a doer. Clove, em uma expressão cinicamente inocente, ergueu as sobrancelhas.

— Clove – ele começou, ainda respirando com dificuldade. Porque alguns filtros deviam ser postos em vigor, demorou um pouco para que ele conseguisse formular as sentenças. – Vamos dar uma volta. Eu preciso te falar umas coisas. Tem umas coisas que eu tenho que te contar.

— É, é, eu sei, eu te amo também, bebê. Você não precisa me contar isso, eu já sei – ela dispensou, no segundo que ele fechou a boca, se virando de volta para a mesa em que as facas ficavam.

A coisa toda era tão perturbadora que Cato nem soube como responder. Ele preferiu não se ater às coisas impensadas que ela dizia meramente por ser ela. Preferiu ignorar a coisa esquisita que sua declaração tinha o causado.  

— Não é isso – ele rosnou, tentando entrar em seu campo de visão.

— Eu não tenho tempo para ouvir sobre suas coisas na Capital, Cato.

— Não é isso.

Clove jogou duas facas de uma vez e suspirou profundamente, se virando para ele como se sua paciência estivesse esgotada. Cato agora estava na frente da mesa, a impedindo de pegar mais facas outra vez.

— Você está me atrapalhando, Hadley. Eu vou te dar dois minutos pra elaborar essa ladainha de novo.

— Essa porra é séria, Clove. Essas pessoas da Capital, elas são... Essa coisa dos Jogos, essa porra de vitória, isso é tudo muito bagunçado, muito fodido – ele tropeçou, suas palavras saindo em uma torrente desordenada. Era difícil dizer coisas que você não podia falar a respeito. Com aquela crescente sensação de desespero, Cato assistiu a expressão de Clove não mudar em momento nenhum. O descaso continuava emanando dela, aquela raiva morna parecia congelar a sala. Os olhos dela estavam perfurando seu corpo. – Você precisa me escutar.

— Eu escutei— Clove sibilou, coçando as sobrancelhas, parecendo toda cansada, toda irritada. Quando ela levantou os olhos de novo para ele, Cato reconheceu o mesmo ódio estranho que ela sempre havia destinado a ele. – Todas as mil vezes que você disse a mesma coisa. Eu entendi. Você não era material pros Jogos, você ficou perturbado, beleza. Mas eu ainda vou. E eu vou vencer porque não tem ninguém nesse distrito que seja melhor que eu. Eu não vou ficar sentida, eu não sou você.

Enquanto os olhos de Cato refletiam a mesma ira vazia de Clove, ela decidiu voltar a falar.

— Eu não sei o que aconteceu com você. Você voltou todo estranho – o desgosto corria pelas palavras bem pronunciadas dela. – Isso é o quê agora, remorso? Ou inveja? Você sempre foi meio ciumento, mas tentar me convencer a não vencer os Jogos pra não roubar seu holofotezinho de merda é muito baixo, Hadley. Para com essa porra. Supera. Eu te vejo na Colheita.

Respirando pesadamente, Cato jogou água em seu rosto pela terceira vez. Ele permaneceu com os olhos grudados no espelho embaçado do banheiro. Aquela Clove lá fora não era aquela de toda sua vida, não era a que eles tinham construído, não era a que Enobaria falava, não era a que ele via naquele tipo de visão que tinha quando não sabia se estava acordado ou dormindo.

Ele não podia se atrever a conseguir odiar ela agora. Ele não podia.

A aliança tinha que sobreviver àquilo. (Ele não sabia se ele mesmo sobreviveria).

Cato limpou o sangue dos nós dos seus dedos e saiu.

— Tudo certo? – aquela Clove de agora perguntou, ainda sentada na cabeceira da cama, agora como se estivesse prestes a levantar. Cato mais uma vez queria tocar nela, sentir seu corpo, ouvir sua voz mais de perto. Entretanto, ele sabia que não podia. (Ela era real mesmo?) Como as coisas estavam, Cato sabia que qualquer coisa que eles fizessem juntos iria acabar mal.

E você se importa?, a voz na sua cabeça respondeu.  

— Aham. Você? – ele finalmente respondeu, se sentando na outra ponta da cama.

— Eu estou bem – Clove disse, sua voz muito baixa.

Ele não queria desejar que qualquer coisa ruim acontecesse com ela. Ela era muito bonita, muito divina, muito certa, ela não era a mulher que tinha destruído sua vida, a que tinha convencido ele a trair seu distrito, a que tinha entregado Enobaria e ele pra morrer daquele jeito discreto, dez mil quartos abafados e os alarmes ensurdecedores.

(Gaia tinha ficado atrás dela quando ele foi vê-la e ele podia jurar que sua irmã estava com medo dele e Clove tinha roubado até sua família, a alma perversa que era).

— Você fez um discurso legal ontem – foi o que Cato decidiu comentar. – Engraçado que o 13 ainda tenha falado aquele negócio de você só conseguir as outras vilas se eu estivesse aqui.

Clove abaixou os olhos. Cato apertou os olhos para ela; aquilo era ela agindo como se estivesse envergonhada.

— A Dardelia atacou a Remora. Um tanto de gente morreu – era uma explicação, uma pronunciada rapidamente, e Cato quase não entendeu por que ela achava que ele precisava de uma. Ela era ela, afinal.

Cato não devia esperar nada que prestasse dela.

— Eu sei. Eu vi lá do 13. Eu falei pra eles que não dava pra vim pra cá agora, que eu não estou bom ainda, mas eles insistiram porque o único jeito de conseguir as outras vilas era se eu estivesse aqui. Então, o quê, eu vou ter que sair fazendo discursinho, agora?

O ódio era muito perceptível em seu tom de voz. Cato olhava para a frente, para a porta, mas ele conseguia ver com clareza Clove apertando de leve os olhos, ainda tentando decifrá-lo.

— Eles só iam tirar você de lá se eu dissesse que você ia ser indispensável aqui em casa – ela começou, sua voz um pouco fria, seu tom parecendo ensaiado. – E você é. Só que...

— Aí você decidiu inventar essa historinha então? Pra eles me tirarem de lá?

— É. Porque eu queria que você...

— Pra quê, Clove?

— O quê?

— Pra quê?! Eles me despacharam pra cá um dia depois que eu cheguei lá todo fodido porque você disse que eu era indispensável nessa porra de guerra enquanto você estava lá discursando pra esse bando de fodido como se nada tivesse acontecido. E é melhor que eu seja bem indispensável pra muita gente, Clove, porque se não o 13 vai... – nesse momento, Cato parou, soltando o ar pela boca. As coisas que o 13 faria não deviam ser gritadas.

Nada devia ser gritado para Clove.

Ele parou, respirando pesadamente. Um deles ia ter que sair de perto.

Mesmo assim, ela se movimentou na cama até se sentar ao seu lado, atrás de sabe-se lá o quê. (torturar você).

— Você não pode querer que eu tivesse deixado você lá na Capital. Você sabe que eu falaria qualquer merda pra te tirar de lá.  – Ela sibilou, todas as frases soando como decretos inquestionáveis. – Que porra aconteceu lá? Só fala.  

Mais uma vez, ela estava contando os céus e terras que ela havia movido por ele, tentando ler sua mente, decifrar todos seus pensamentos, se infiltrar embaixo de sua pele para que ele pudesse perdoar suas traições. E por causa de sua ajuda divina, ele estava ali, de volta no 2, de volta para ela, sentindo coisas que ele não queria mais sentir, olhando pro rosto dela e tendo sensações diferentes das que deveria ter, sendo forçado a colaborar com uma causa que se recusava a aceitar que seu trabalho já havia sido feito.

Cato não tinha mais nada pra dar.

E Clove ainda parecia chateada. E parecia que Clove tinha tentado quebrar a aliança vezes demais.

— Para com essa porra, Clove, para de mentir, para com esse teatrinho de merda! – Cato berrou. – Você só estava entediada, era ou não era? Você está pouco se fodendo se eu estava na Capital ou não, você está pouco se fodendo pra como que eu estou, você está pouco se fodendo pro 13, então fala logo que você fez essa merda toda só pra me trazer de volta pra esse inferno porque você é a porra de uma filha da puta perturbada e tudo que você quer é me deixar doido.   

Sua voz ecoou longamente pelo cômodo pobremente mobiliado. Suas palavras carregaram o ar, tornaram a respiração uma tarefa complexa. Elas tornaram seu rosto vermelho, suas veias saltadas. Elas tornaram a garganta de Clove um bolo, seus olhos ardidos.

Cato sustentava sua realização de antes. Ele amava Clove. Mas alguma coisa estava diferente – ela tinha deixado ele passar muito tempo na Capital e ela tinha o trazido de volta quando ele estava muito confortável com a morte iminente. Parecia que Clove brincava com ele, uma mestra de fantoches que era muito cruel, muito poderosa. Por um tempo, pareceu que a aliança tinha finalmente sido quebrada.

Ele sabia que tinha sido escolha dele, problema dele, mérito dele. Ela não ia poder decidir simplesmente tirar ele de lá; seu reino se limitava ao 2. Ele sabia, ele sabia, ele sabia (certo?). E mesmo assim, todos aqueles pensamentos continuavam se embolando em sua cabeça. Aquela Clove terminava sendo a mesma que ficava em sua cabeça na Capital. Eles tinham dito pra ele, eles tinham o avisado, tinham mostrado ela caminhando tranquilamente pelo 2 enquanto ele estava lá. O mundo girava ao redor dela, no final. Ela tinha muito poder. Se ela quisesse, ela poderia ter...

Ela está lá em casa. Por que é você que está aqui? Abre o jogo, larga mão dessa história.

— Não é sua culpa, Clove. Desculpa.

(Mesmo assim, ele tinha decidido assassinar o Naevio e se vingar de Wade por causa dela).

Ele tinha pensando que era ou Naevio ou ela. Mas o tempo todo era Cato ou Clove.

Clove não se mexeu. Seu rosto estava pálido. Ela encarava a porta, também.

— Me desculpa. Eu não queria... Me desculpa.

Ela não respondeu mais nada. Ela se levantou e caminhou para a porta.

Clove simplesmente iria permanecer lá, no fundo de sua cabeça, como era desde o começo dos tempos. Como sempre, o lembrete de algo que ele precisava desesperadamente ter por completo, mas que só conseguia acesso a uma mera metade. Clove sempre havia sido o objeto de muitas coisas. Mas dessa vez... (ele só conseguia ver o pior).

Ela parou para fechar suas botas, o olhando de canto de olho. Ele coçou o nariz e se levantou.

— Clove, me desculpa, eu estou todo fodido. Eu... A gente se vê mais tarde. Não é? – Cato se ouviu dizer.

— Aham – Clove respondeu, ainda ocupada demais com as botas para olhar para ele. Cato fez menção de abrir a porta, mas. Ele quase riu. Ele ainda não conseguia. Ele não a deixava, não era assim que funcionava. Ela o abandonava antes.

E ela tinha o abandonado, certo? Era o que eles tinham dito, era o que Enobaria falava quando o acusava de ser um traidor e era o que ele tinha visto quando chegou e ele sabia que ela iria fazer isso, mas ainda assim tudo parecia demais porque ele amava a única pessoa que vivia para destruí-lo.

— O que você vai fazer agora?

— Falar com a Lyme.

— Sobre?

— Você – ela falou com simplicidade, erguendo as sobrancelhas.

Clove estava de pé agora, coçando o rosto distraidamente enquanto observava o seu. Cato ainda não tinha conseguido formular nenhuma resposta ou qualquer pensamento sobre sua revelação, então ela lentamente abriu um sorriso ambíguo.

Ele assistiu a discrepância entre seus lábios e seus olhos escuros, pensativos. Se a simbiose deles estivesse completa, se Clove não tivesse o traído tantas vezes, ele seria capaz de saber sobre o que ela estava pensando.

— Se divirta, então – ele finalmente comentou, levantando as sobrancelhas.

— Eu vou – ela ronronou, arregalando os olhos antes de passar por ele. Deixando sua mão tocar levemente a sua, seu cabelo voar perto de seu rosto. Deixando seu cheiro preencher o cômodo. Quase fazendo Cato decidir segurar seu braço. Sua mão estava estendida. Ele a viraria.

Mas e aí? O que mais ele faria? Ele ia foder, ele ia matar, ele ia destruir os dois de uma vez e acabar com aquilo?

Ele não sabia, então era melhor não arriscar.

Clove deixou o dormitório. Cato fez o mesmo. Ele a assistiu descer o corredor comprido rumo à sala de reuniões. Ele reparou nos olhares enviesados dos outros da base e decidiu que só havia um lugar pra ele no momento.

Ele não podia deixar ninguém ver de perto o estrago que Snow havia o infligido.

De qualquer forma, Cato odiava aquela base. Era onde eles costumavam ficar instalados quando as atividades mais sórdidas da Academia estavam acontecendo. Ele queria ficar longe de qualquer tipo de sordidez – inclusive a que havia dentro de sua mente.

Enquanto ele avançava pela floresta densa, Cato passou pelo ponto em que havia encontrado Clove no dia anterior e se lembrou brevemente de sua figura tropeçando pra trás ao vê-lo, usando o colar como se pagasse tributo a um morto. Ele havia visto a espécie de medo que havia encoberto os olhos escuros dela por longos segundos. E, a despeito da pontada intensa em seu peito, ele sabia que não podia culpá-la porque tinha alguma coisa diferente na lealdade deles.

Será que sequer havia uma? Ela era uma traidora e ele tinha caído no jogo dela e virado um também. Que tipo de lealdade sobrevivia?

Só uma que fosse perversa.

Cato não olhou mais para o lugar e continuou andando.

O vento continuou a fustigar sua pele e algumas partes do seu corpo começaram a doer, mas ele continuou avançando e avançando, esperando chegar a algum lugar que fosse longe o bastante do 2, longe o bastante de todos os seus pecados.

A realidade parecia diferente na floresta. O tempo corria de forma diferente lá. Ele se moveu lentamente para trás.

Cato fechou os olhos e assistiu de novo as pessoas do 13 invadirem o lugar. De repente, uma brisa gelada tomou o cômodo. Ele só abriu os olhos de novo no distrito deles, outro lugar abafado que nem o inferno, e não havia ninguém de casa. Não havia nenhuma Clove. Em segundos, ele foi sedado de novo. Johanna Mason ficava na maca ao lado, gritando e gritando, às vezes mais do que gritava quando eles estavam . Ele assistiu Katniss Everdeen reaver o que deveria ser seu noivo. Havia só uma mutação no lugar dele, uma que ele tinha visto ser criada. Enobaria sacudiu a cabeça quando trocou olhares com ele e ele se perguntava se ela estava dizendo que ele não devia confiar naqueles estranhos dali.

Enobaria ainda estava lá com os estranhos, mas ele estava de volta pra casa, porque Clove tinha o solicitado e ela era implacável, ela era cruel.

Cato sentiu o vômito queimar sua garganta enquanto ele se curvava e se apoiava em uma árvore. Sua têmpora pulsava como se alguma coisa estivesse lutando para sair de sua cabeça.

Em frente aos seus olhos, cores vibrantes piscavam. Pequenos fragmentos de coisas que haviam deixado de ser, mas que viviam muito eficazmente dentro dele. Sua mente devia ser uma folha em branco. Ele desejava desesperadamente que ela permanecesse assim, mas, ocasionalmente, palavras borradas eram escritas descuidadamente pela extensão da folha. Elas evocavam rostos e crimes e tudo que ele costumava ter e ser.

Clove continuava aparecendo. Desde o começo. Mil anos atrás, dois rabos de cavalo, sardas e o mesmo sorriso sufocante, rompendo com todos os seus colegas para se dedicar exclusivamente a ele, cunhando aquela aliança criminosa, construindo muito cuidadosamente uma lealdade que tinha destruído todas as outras ao seu redor.

Cato pensou que havia achado a raiz do problema. Enobaria estava certa, Bac estava certo.

É ela, sua mãe tinha dito, e ela devia saber que aquela era a garota que destruiria todos os mundos. 

Ele sabia que não podia ignorar o que estava acontecendo por muito tempo. Toda aquela podridão, todo aquele sangue derrubado, todo aquele ódio desesperado; tudo tinha que ser contido, tudo tinha que se manter só dentro de suas veias.

Ele não sabia se ia conseguir segurar tudo porque não importava o que ele fazia, não importava de qual lado ele ficava, ele sempre era um traidor, ele sempre caía nas conversas erradas, ele sempre fazia as escolhas criminosas.

Wade estava morto e ele tinha planejado aquilo, planejado mais um assassinato em nome...

Ela é uma vadia, certo? Você está vendo? Está acontecendo um monte de merda com os outros, mas a gente está facilitando pra você porque você é de casa, você é leal à Panem, não é? Você não é um traidor que nem aquela vadiazinha, é? Então fala.   

Cato não conseguia respirar.

Um fantasma de outros tempos estava o esperando quando ele desceu de volta para a base, quando a noite já estava cobrindo o distrito. Clove sustentava seu corpo contra a parede, uma impaciência infantil grudada em seu rosto. (Uma preocupação que não era reconhecida).

Onde que você estava, seu filho da puta imbecil?, você acabou de foder tudo, ela iria exclamar, se ela fosse ao menos um fantasma de verdade, se ela ao menos fosse a mesma de anos atrás, se ao menos ele não a amasse.

Com o mesmo choque de antes, ele reconheceu que ela era feita de carne e osso; uma metade que era sua inimiga e transformava tudo em um gelo confortável, uma metade que queimava seu peito porque ele a amava demais.

Cato não tinha certeza de qual ele odiava mais.

Ela não disse nada enquanto ele passava por ela e entrava de novo na base. A realidade ainda parecia alterada; Cato não conseguia ouvir nada que vinha da base. Nenhuma das ordens sendo emitidas para os soldados, nenhum dos disparos na sala de treinamento, nenhuma das conversas rápidas pelo corredor. A dor insuportável em sua cabeça conseguia bloquear tudo. Todas as cores vibravam, tudo que escapava de seu campo de vista era terrivelmente escuro. 

Clove então decidiu encostar nele, o conduzindo de volta para seu dormitório. A falta de violência em seu gesto quase o machucou. Era tudo muito silencioso. Cato se lembrou dos gritos de Naevio, das suas fantasias com todo aquele sangue e os ossos quebrados, dos soldados na Capital e o jeito que ele nunca sabia se eles estavam o ameaçando ou sendo cordiais, do jeito que seu quarto (?) mudava noite após noite e dos alarmes estranhos que um deles tinha dito ser da troca de turnos. E sua realidade tinha mudado, de repente, e não havia nada parecido com aquilo lá. Só Clove, sempre em sua cabeça, os mesmos lábios vermelhos, o mesmo cabelo de outro mundo, o mesmo silêncio traiçoeiro.

Ele se deitou na cama minúscula e ela se deitou ao seu lado, muito perto dele, encarando seus olhos com uma intensidade ridícula.

Você está diferente, ela iria dizer, descontentamento escorrendo de sua voz.

Eu nem te reconheço mais, que porra é essa, Cato?, ele conseguia ouvir. Ela iria virar o rosto, esbarrar o ombro no seu, sair.   

Sua mãe havia sido assassinada pelo pai que ele havia acabado de matar e ela havia dito “se recomponha, Hadley”.

E ele não lembrava que ela tinha arrumado Gaia para o funeral e ajeitado a gravata de Teo e segurado sua mão por uns segundos enquanto o caixão era coberto.

A audácia que ela tinha de ainda abraçá-lo, de ainda se dar ao trabalho de fingir não ser sua inimiga... tudo era fruto de uma mente incansável, implacável.

Clove esticou um braço e parou na metade do caminho de alcançar seu cabelo.

— Posso? – ela finalmente disse e ele não pôde ler seus olhos. Como Cato não respondeu, ela tocou seu cabelo mesmo assim. Agora, daquele jeito, ele conseguia reconhecer algumas das coisas que ela devia querer esconder. O brilho perigoso em seus olhos, a suavidade enganosa em sua voz. Nunca tinha sido afeição, nunca tinha sido cuidado. Era uma fascinação cruel, ardilosa.

Clove não parou de correr as mãos pelo seu cabelo e ele conseguia ver aquele colar, conseguia ver onde aquela história tinha começado, conseguia ver que ele não tinha escutado Brutus nem seu pai, nem todo o distrito, porque todo mundo o avisou para não mexer com Clove Kentwell, olhos de aço, pele de porcelana, mente implacável.

Cato não pensou muito. Ele a beijou. Ela era tão suave que ele pensou que poderia quebrar ela a qualquer segundo. Talvez ele quisesse o fazer enquanto suas mãos apertavam qualquer coisa que pudessem alcançar, como se seus dedos fossem atravessar sua pele e atingir seus ossos delicados. Ele era sempre cuidadoso com ela, mas.

Não havia cicatriz nenhuma onde o menino do 1 havia a apunhalado. Não havia cicatriz em lugar nenhum em sua pele. 

Ela havia ficado debaixo de todo mundo que ele havia pessoalmente destruído. Se ele conseguisse dar fim àquilo, tudo pararia de ser excruciante.

Tudo começava e terminava em Clove, desde o começo dos tempos.  

Cato saiu de cima dela, aquele não era o jeito certo.

Ele ouviu sua respiração, pesada, quase como se ela estivesse com medo.

— Você pode voltar pro 13, se você quiser. Ou você pode ficar na Patrus – Clove disse, tocando as cicatrizes em seus braços, examinando tudo atrás das marcas da Capital. – Você não precisa fazer porra nenhuma se você não quiser, eu me viro com a Coin. Você pode descansar. Eles não deixaram, não foi? Você dormir? É por isso que...

E Clove tocou a pele abaixo de seus olhos, enxergou a confusão estranha neles e não terminou a sentença, franzindo as sobrancelhas com o que parecia...

Não.  

Cato conseguia enxergar por dentro da pele dela. Ele conseguia ver todos os planos que ela intricava, ele conseguia sentir seu sangue nocivo correr por suas veias, avançar com rapidez por debaixo de sua pele macia.

Ele a amava tanto que era intolerável, que doía, que era errado. Por causa disso, ele merecia a punição. Ele merecia ter aquela coisa estranha no lugar de seus olhos vazios.

— Cato. Por favor.

E Clove não tinha direito nenhum de implorar. Esse tipo de comportamento tinha assinado a desgraça de agora. Se ela não tivesse aquela voz quieta de agora, ele não teria decidido ficar na Capital. Se suavidade não tivesse brevemente piscado em seus olhos todas aquelas vezes, ele não teria achado que estava fazendo mal pra ela. Se ela não tivesse começado a abraçá-lo daquele jeito, ele teria esperando antes de matar o Naevio e o Wade.

Ninguém tinha ligado os pontos; só Wade tinha caído por ter matado um cidadão da Capital. Ele ainda respirava e por isso, respirar doía.

A Clove olhou a gente de novo, Gaia havia dito, e tudo que ele tinha visto era um afeto muito positivo nos olhos da sua irmã. Ele tinha visto uma Clove que parecia boa e uma Clove que sentava com seus irmãos na hora das refeições e uma Clove que tinha o abraçado muitas vezes e... 

Se não houvesse duas delas, Cato poderia decidir se ele amava mais ou odiava mais.

— Cato – ela chamou de novo, aquele tom desesperado, frustrado, do jeito que era quando ele fazia alguma coisa que a assustava, porque ela achava que ele não sabia, mas ele via que às vezes ela se encolhia enquanto ele quebrava os dentes de alguém, que ela sempre mandava ele parar, que ela odiava ver os demônios dele.

Ela se encolheria se tivesse visto o que ele tinha feito com Wade, com Naevio?

— O que você quer, Clove, o que você quer? – ele se ouviu dizer, apertando as mãos contra os olhos, muito perturbado. 

— Não faz isso. Fala comigo.

E Cato ouviu as lágrimas na voz dela, ele viu suas mãos a impedindo de tocá-lo, ele viu.

Ele sentiu a mesma mão apertando seu peito porque ele amava ela e ela não era só o que os homens tinham dito, ela não era só a traidora que Enobaria amaldiçoava, que tinha deixado Brutus pra morrer, ela era Clove, que ele conhecia desde os sete anos, que era sua melhor amiga e sua pior inimiga desde o começo dos tempos.

Como se acordasse de um sonho, os olhos de Cato começaram a clarear.

Ele sentiu o peso de outro mundo despencar em seus ombros de uma vez. Ele se sentiu paralisado por alguns segundos, sua respiração presa em seu pulmão enquanto ele encarava o rosto extraordinário de Clove, seus olhos marejados.

Ele se lembrava da Clove boa, ela não era só uma fantasia, ele tinha a visto, ela tinha sustentado a aliança, afinal. E ela ainda estava bem ali, esperando. Seus olhos ainda fustigavam sua pele. Ele sentiu os seus começarem a arder porque aquela confusão nunca ia embora e sua cabeça doía muito e tudo parecia irreal.

— Eu não sou um traidor, Clove, não é minha culpa que... Eu tentei, não é minha culpa, eu fiz o que precisava ser feito, eu só tentei consertar tudo, eu não quis trair ninguém, não é minha culpa. Eu não quis, eu nunca quis matar ninguém, eu nunca quis trair ninguém, eu tentei, Clove, eu juro que eu tentei.

Cato deixou sua cabeça se encostar no peito de Clove. Ele deixou as lágrimas descerem, molharem a blusa dela. O colar pendurado em sua clavícula começou a perfurar de leve a pele de seu rosto, mas ele não se moveu. O mundo era sufocado por aquelas palavras que ele não conseguia bem emitir, por aquelas culpas que ele carregava havia muito tempo. Ele conseguia ouvir a respiração irregular de Clove, conseguia ouvir seu coração que quase pulava batidas.

Ela era a única pessoa que ele queria ver nos dias difíceis, mesmo que ela não soubesse consolá-lo, mesmo que ela fosse feita de aço, então ele ficou lá e tentou falar, que nem ela tinha pedido, e ele chorou até parecer que não tinha mais lágrimas.

Clove era uma coisinha pequena embaixo dele, sempre havia sido. Ele sentiu suas mãos começarem a traçar padrões em sua pele com muito cuidado, como se a qualquer momento tudo fosse mudar de novo. Então seu cabelo, com muita cautela, muito levemente. Ele ouviu os ruídos que ela fazia, tentando tranquiliza-lo, mas era tarde demais, ele era causa perdida, ele sabia, eles tinham dito.

Algumas vezes, na Capital, Cato desejava que coisas como aquela pudessem estar acontecendo de verdade, então Cato quase não tinha certeza se aquilo era verdade.  

— Eu sei que você tentou – ela sussurrava, a voz muito baixa, muito suave. – Não é sua culpa.

Ele ouviu as batidas do coração dela. Ele ia conseguir sustentar aquela lealdade. Ela era a única voz que ele conseguia ouvir, a única que silenciava as outras em sua cabeça.

— Não se preocupa. 

Os arrepios subiram por suas costas, mas de um tipo bom. Daquele jeito, todas as peças voltavam para o lugar; só havia uma Clove.

Ele se lembrava, se lembrava dos dois rabos de cavalo, dos vestidos bonitos da Capital, da selvageria em seus atos, do desespero em seus olhos.

Clove ficou em silêncio por um longo tempo. Cato fechou os olhos. Enquanto seus dedos ainda traçavam as marcas em suas costas, Cato realizou uma coisa que poderia enchê-lo de uma alegria infantil no passado, mas que agora revirava em suas entranhas como uma agonia primitiva, bestial.

A confirmação veio, emitida em um tom tão baixo que quase não pôde ser reconhecida na realidade. Cato queria tanto que aquelas palavras não fossem reconhecidas na realidade porque ele não sabia mais o que era a realidade e aquilo era muito perigoso, muito errado, ela era boa demais pra aquilo e ele estava destruído.

Suas têmporas pulsavam. Ele ainda conseguia sentir o cuidado com que Clove tocava nele. Ele ainda conseguia ver os olhos dela o olhando mais cedo. Cato sentiu seus olhos começarem a arder de novo, porque às vezes ele não ouvia nada além das vozes em sua cabeça, mas ele ouviu o que ela sussurrou enquanto tocava seu rosto.

Eu te amo.


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Notas finais do capítulo

Ah, é, feliz Páscoa!! Então, sobre este hein.. Acho pesado, mas acho condizente com Eles. A relaçãozinha deles, sabe, o pau sempre quebrando, a casa sempre caindo, mas eles tão sempre juntos.. Fico EMOCIONADA!! Agora assim, eu nem sei o que fazer daqui pra frente pois escrevi o próximo tem anos e agora parece que não encaixa mais, sei lá. Então ou eu só jogo ele aqui para acabar logo esse trem ou eu escrevo um outro falando do Cato se ajeitando de novo no 2 etc pra fazer aquela ponte mais contextualizada. Nem sei, família, mandem opiniões. Também nem sei quando terei condições de voltar, mas é certeza que voltarei pois sabem as montanhas que movo etc. Enfim. É isto. Tenho que decidir esta bagaceira, mas tudo dará certo, espero. Até mais, beijo e obrigada!



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