Colors escrita por IVY


Capítulo 5
Chapter five: White-Devil




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/724820/chapter/5

A chuva havia piorado, assim como o frio. Meu quarto estava absurdamente claro pela manhã, apesar do céu continuar cinzento e ranzinza. A cama estava aquecida pelo corpo da garota que eu ainda não conhecia direito, enquanto eu me mantinha sentada no chão ao seu lado com um pouco de frio. Eu havia vestido um casaco mais grosso e mais claro, mas não adiantou muito. E isso realmente não importava. A garota, a “outra eu” que na verdade eu sou “outra dela”, tinha que ser mantida longe daquele espelho, e ela seria se dependesse de mim. No dia anterior ela havia tido uma recaída, queria voltar para dentro a todo custo, mas eu consegui convencê-la. Ainda podia ouvir seus soluços altos e sentir suas lagrimas salgadas em minha pele junto ao seu rosto quente. Lembro-me da força daquele abraço, era como se eu conhecesse aquele abraço a minha vida inteira. Balancei a cabeça, tirando esses pensamentos da minha cabeça e focando minha atenção no agora. Porém, quando o fiz, um par de olhos escuros me encarava.

— No que está pensando? – perguntamos ao mesmo tempo, logo se desculpando. – Você primeiro – eu disse e ela assentiu, levantando o tronco e ficando sentada com as pernas cruzadas na cama, olhando para mim.

Ela parecia pensativa e um tanto mais calma vista de cima, acreditei que o sono tinha feito bem para ela. Sorri, tímida.

— No quanto você é parecida comigo - ela começou a dizer, sua voz era forte e calma ao mesmo tempo. Incrivelmente descontraída – Eu vivia longe então só via uma silhueta, mas de perto... Me identifico. Seus cabelos são claros demais, e os meus escuros, mas os olhos são igualmente escuros. Todo o resto também. Isso não assusta você?

— Não –  respondi sem pensar, e quando pensei, um segundo depois, conclui que realmente não sentia medo da semelhança, tinha outras coisas me atormentando...

— Você está bem? – Pisquei rapidamente ao ouvir a voz dela, despertando-me de meus devaneios.  Assenti e isso a fez sorrir levemente. – E você, no que estava pensando?

Mantive meu olhar nela, pensando no que deveria dizer. Ser sincera ou não? Eu não queria mentir, mas sentia que não deveria contar tudo para ela, não quando eu não confio completamente. E se ela enlouquecer comigo? Era melhor não arriscar por enquanto. Limpei a garganta e suspirei.

— O que aconteceu ontem e...

— O que aquele velho queria com você? – ela me interrompeu, me deixando levemente zangada, mas não o bastante para odia-la. Foquei em minha respiração, tentando deixá-la normal enquanto eu ficava cada vez mais nervosa por dentro. Precisava inventar algo, ou esconder coisas, mas não podia ser algo bobo demais. Com um suspiro final, respondi.

— Ele se chama Caleb Hunter e ele só explicou que... Deveríamos permanecer aqui, isso incluindo você e... Que era bom nós passarmos um tempo juntas para... Melhorar toda a situação e... Até toda essa história de espelho amenizar. – quando terminei de falar, não me senti nem um pouco melhor, estava apreensiva. Estava começando a suar.

Ela continuou do mesmo jeito, apenas deu de ombros e os encolheu em seguida.

— Por mim tudo bem – ela disse, se levantando da cama – e me desculpe pela confusão ontem, eu não queria interromper sua conversa.

A garota andou em direção ao banheiro e fechou a porta após entrar no mesmo, ouvi alguns barulhos baixos, provavelmente da torneira e coisas assim. Abaixei a cabeça, mordendo o lábio com força – o que era incomum até para alguém com manias tão estranhas como eu.

— Eu entendo – respondi alto o suficiente para que ela me ouvisse por trás da porta branca – Mas por que fez aquilo? Não estou condenando você, mas... – Parei de falar, não consegui formular uma continuação sem parecer uma idiota.

A porta se abriu minutos depois, ela me olhava, eu sentia o olhar dela em cima de mim. Ergui minha cabeça e a virei para o lado, para ela. Estava séria, mas não parecia brava ou algo do gênero.  – Estava apenas cansada de ser só mais uma rachadura, aqui eu sou só uma rachadura, lá eu era você, eu era alguém. Aqui eu sou nada. - Percebi que seus olhos estavam ficando cheios de água, ver isso fez meu estomago doer. Eu a fiz chorar? Mais um motivo para ficar no lugar dela no espelho.  – Não é sua culpa, você não tem culpa... – Isso me fez mais culpada ainda. Eu era a culpada. Tinha certeza.

— Você não é uma rachadura para mim – foi só o que consegui dizer – você é o espelho inteiro.

...

Logo depois que a garota que eu ainda não sabia o nome sair do quarto para tomar café, fui para o banheiro e fiz minha higiene pessoal, tomando um banho não muito longo. A ansiedade estava me deixando sufocada e o vapor da água quente parecia piorar a situação. Sai do cômodo e, voltando ao quarto, me sequei e me vesti com as mesmas roupas comuns de sempre e mais um casaco quente. Não sentia fome, precisava terminar minha conversa com o Caleb Hunter, ainda tinha duvidas e principalmente uma em questão, mas não podia ser pega, especialmente pela garota.

Saí do quarto silenciosamente, contanto os passos pela casa enquanto olhava ao redor, me mantendo alerta a qualquer movimento que poderia surgir por perto. Eu tentei parecer o mais natural possível caminhando, mas não pude ter certeza no momento. Atravessei alguns corredores, encontrei alguns empregados, mas não via nem a sombra do tal do Caleb Hunter.

Dei meia volta, respirando fundo, lutando contra o lamento e a irritação por não ter encontrado o estranho, e então eu bati em algo. Não cai no chão, mas fiquei um pouco tonta pela surpresa. Balancei a cabeça e olhei para cima. – Olhe por onde anda – Caleb Hunter estava na minha frente. Suspirei, me acalmando.

— Aqui não é lugar para conversar sérias, me encontre no jardim em vinte minutos. – disse, virando-lhe as costas e seguindo na direção contraria a dele.

— O que vai fazer em vinte minutos? – questionou ele, alto o suficiente para que eu o ouvisse.

Sorri.

— Tomar café, é claro.

...

Abri a porta para o jardim, que na verdade era uma estufa de vidro. Desta vez não havia raio de sol entre as gotas da chuva, não havia beleza no momento e eu não estava querendo prestar atenção em mais nada, precisava de algumas respostas. Aproximei-me da mesma mesa, sentei e encarei o mesmo homem estranho e velho de antes. Ele me encarava de volta, parecia mais confortável com a situação, assim como eu.

— O que acontece se nenhuma de nós voltarmos ao espelho? Quanto tempo eu tenho para me despedir? – Fui direto ao ponto, não queria enrolar ou me fazer de desentendida, queria informações.  – Por que não posso comer doce? Você era o diabo-branco que me visitava? Por que...

— Acalme-se, uma pergunta de cada vez – ele resmungou, me interrompendo – Provavelmente uma de vocês morre, ou pior. Eu realmente não acredito que tenha um prazo, até porque nunca estive no seu lugar. – ele desviou o olhar – É o pó cristalino do chifre, todos os diabos-brancos possuem essa substancia, é um veneno com o gosto similar com o do açúcar... Eles costumam ser discretos, colocam o cristal em tudo para que ele possa entrar em você, mas apenas em doces, o sal quebra o efeito.

— Eles? – franzi o cenho – você não é um deles?

Ele abriu um sorriso, não consegui decifrar o que ele realmente significava. – Eu perdi meus chifres, garota.

Estava séria e pensativa, Caleb Hunter parecia esconder muitos segredos, era como se ele soubesse sobre tudo mas preferia guardar para si. Não sabia se deveria seguir e insistir nesta história, não queria ser grosseira ou cruel. Perder os chifres poderia ter sido algo ruim para ele, mas não havia como negar: isso foi a minha salvação, sem ele eu nunca saberia disso... A menos que o Senhor Franco soubesse, mas ele teria me dito...

— Por que eu não enxergo as cores que as pessoas normais enxergam? – perguntei de repente, minha voz saindo com um sussurro.

— Porque sua mãe também não o fazia – foi a sua resposta, e também a ultima coisa a ser ouvida antes de cairmos em pleno silencio.

...

Desta vez não fui para o quarto, segui meu rumo para a sala de estar – uma sala escura com mais poltronas que sofás e mais mesinhas de centro que porta-retratos nas paredes. Livros de inúmeros tons em suas prateleiras deixavam o lugar mais inteligente em conjunto com o tecido macio e acolchoado dos sofás, que deixava o ar mais elegante e sério. Havia duas janelas no cômodo inteiro, que era mais comprido do que parecia ao primeiro olhar. Apenas um lustre no teto, mas muitos abajures nas mesas altas que permaneciam ao lado das poltronas. No chão um tapete fofo e cheio de formas desenhadas cobria cada centímetro do local, enquanto as paredes eram lisas e mal apareciam por conta das prateleiras. Só havia um problema: Grace estava lá.

Só percebi sua presença quando já havia sentado em um dos sofás, ela estava lendo algo e parecia não estar gostando nem um pouco, pois seu cenho estava terrivelmente franzido, quase como se ela estivesse inconformada com algo. Optei por ficar quieta, apenas com meus pensamentos falando alto.

Desviei o olhar dela e comecei a brincar com os meus cabelos brancos. Precisava entrar no espelho, mas também precisava convencer a garota a ficar, ela não poderia me seguir ou tudo isso recomeçaria. Era meu dever consertar as coisas, mas essas coisas não eram tão fáceis assim. Tinha que ficar alerta por mim e por ela, talvez até contar algumas verdades pra ela... O que o Caleb Hunter me disse certamente me deu alguma luz, por mais que algumas coisas continuavam obscuras. O velho senhor tinha algo a revelar, eu sabia disso, mas algo me dizia que ele não o faria tão cedo, talvez nunca o fizesse...

Despertei de meus pensamentos com um barulho estranho vindo de não muito longe de mim, olhei ao redor e meus olhos quase saltaram das orbitas, Grace estava ali, atirada na poltrona em que antes estivera sentada com tanta classe, agora se encontrava caída para a direita, com a cabeça pendendo enquanto seu pescoço se inclinava de mau jeito no braço da poltrona. Não conseguia ver seu rosto, então me levantei e me aproximei dela. Seu corpo estava imóvel. – G-Grace? – Parei ao estar perto o bastante e virei seu rosto delicadamente, estaria ela dormindo? Não, seu rosto estava pálido, incrivelmente branco. Seus olhos completamente cinzas e abertos, rachaduras desciam como veias embaixo dos mesmos, atravessando suas bochechas. Movi meu olhar para a sala ao redor, procurando o responsável, mas ao olhar para baixo, à esquerda, em cima do tapete fofo, pude ver cacos caídos e uma armadura dourada circular, onde no centro deveria haver um espelho.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Colors" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.