O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 2
Ironia Inglesa x Retórica Diplomática


Notas iniciais do capítulo

Number 2

Boa Leitura!



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Capítulo 1

20 de Outubro de 1900

O cabriolé fez uma virada brusca na esquina da Carlton House Terrace, numa tentativa por pouco falha de desviar de uma criança que atravessava a rua sem olhar para os lados, fazendo com que Mycroft Holmes grunhisse em desaprovação. Onde as mães de hoje estavam com a cabeça, que não eram capazes de controlar seus filhos? No seu tempo, se fosse culpado por um quase acidente de trânsito, a finada Violet Holmes não pensaria duas vezes em dar-lhe um castigo memorável. No entanto, era uma virada e tanto aquela sofrida pelos valores familiares desde 1853.

Aquele pensamento fazia com que sua mente se voltasse para as crianças de Baker Street. Seu sobrinho e sua afilhada eram educados de acordo com os novos princípios, à moda progressista de sua cunhada. E ainda assim, era visível que Sherlock seguia alguns dos padrões passados por seus pais. A pequena Violet, desde seus primeiros passos, não demonstrava sinais de que seria um problema. Mycroft divertia-se quando os visitava e tinha vislumbres de como gostava de imitar os trejeitos de seu pai; a imagem que toda garotinha possui de que seu progenitor é o melhor exemplo da espécie.

De fato, ele acreditava que sua afilhada possuía os traços de sua mãe no que dizia respeito a querer estar certa o tempo inteiro. Por outro lado, seu sobrinho, o pequeno John Holmes, ou Nikolai, apresentava todos os sinais de que seria a causa do envelhecimento precoce dos pais. Dispunha de uma agenda bastante lotada para um garotinho de dez anos. A cada dia da semana poderia ser encontrado em um bairro diferente da cidade, para desgosto de sua cunhada que, mesmo insistindo com seu marido para ter uma conversa séria com ele, entendia por este que aquilo não passava de uma necessidade genética de conhecer, de cabeça, o mapa completo da cidade.

Era visível para Mycroft qual dos gêmeos seguiria os passos tortuosos de Sherlock se tivesse a chance, tornando a dedução um meio de ganhar a vida. Violet provavelmente preferiria permanecer apenas nos bastidores, sem receber o crédito. Seu prazer encontrava-se nas pequenas coisas, como por exemplo, ganhar uma partida de xadrez com seu pai ou ajudá-lo em algum experimento químico. Se ao menos as universidades aceitassem mulheres... que grande adendo a coleção ela seria para os homens de Oxford. Nunca quisera ter filhos seus, bem como nunca desejara a vida de um homem casado para si, contudo, gostava de pensar que poderia ter alguma influência no futuro daqueles dois.

Sua vida sempre fora voltada para o dever cívico. Seu país acima de tudo. Não fora o juramento que fizera ao ascender-se na mais alta ordem do serviço secreto britânico? Sendo assim, havia muito pouco espaço para as outras nuances da vida cívica e isso jamais fora motivo de reclamação. Ali estava, seu destino de todas as manhãs, o Clube Diógenes. Recorrentes eram as vezes em que sua cunhada desabafara o quão ridículo era a regra do silêncio, tal qual a intolerância à presença de mulheres. No entanto, Anne simplesmente não entendia a necessidade de muitos homens daquele meio de isolarem-se. O mundo pode, muitas vezes, ser um lugar sufocante.

─ Senhor Holmes, há uma senhora a sua espera no “Stranger’s Room”*. – anunciou um dos lacaios assim que ele passou pelas portas, desfazendo-se do seu casaco e chapéu.

─ Uma senhora? – repetiu Mycroft, estarrecido com a situação. À exceção de sua cunhada, não era procurado por senhoras. E ainda era muito cedo para uma visita de Anne. – Ela lhe entregou um nome? – se viu perguntando com grande curiosidade.

─ Não me pareceu ser o tipo de mulher que gosta de dar explicações, senhor. Estava bastante aflita e apenas perguntou-me se estava aqui, num sotaque francês deveras carregado. Respondi-lhe que não e quando pedi que se retirasse, insistiu em esperar. Coloquei-a no “Stranger’s Room”, sabendo que o senhor viria cedo ou tarde. – explicou-se o lacaio.

─ Obrigado, Barrow. – agradeceu, dispensando-o.

Era um percurso de dois lances de escada, o que deu ao mais velho dos irmãos Holmes tempo para tentar adivinhar quem estaria a sua espera. Não conhecia mulheres. Nem mesmo as esposas de seus companheiros, não lembrava-se do nome de nenhuma delas ou de seus rostos. Sem falar que não teriam qualquer razão para procurá-lo. Afinal, mesmo que ele fosse membro do alto escalão do Governo Britânico, se qualquer um daqueles homens estivesse em maus lençóis, haveria outras pessoas a quem tais esposas poderiam recorrer.

Chegou à porta da sala onde sua visitante o aguardava e continuava sem respostas às suas perguntas. Logo, a atitude mais sensata seria terminar de uma vez com aquele impasse. Todavia, por meio segundo sua mão gelou ao direcioná-la para a maçaneta. Seu sexto sentido não costumava errar e naquele momento gritava para que saísse e deixasse tudo como estava. Afinal, o que uma senhora poderia querer com ele?

─ Você? – disse ao abrir a porta e deparar-se com a misteriosa mulher. Ela encontrava-se de costas para ele, de modo que não conseguiu identificar de pronto seu rosto. Ainda assim, aquele porte era inconfundível; e quando se virou para fitá-lo com ar sério, lembrou-lhe estranhamente alguém... embora não fosse capaz de dizer quem.

─ Bonjour, Monsieur Holmes. – cumprimentou ela com um aceno polido de cabeça quando ele fechou a porta.

Madam de Pontmerci. – cumprimentou de volta, retribuindo seu aceno de cabeça. – Je suis surpris de vous voir...

─ Por favor, não há necessidade. – disse, interrompendo-o com um grave aceno de mão.

─ Vejo que seu inglês melhorou muito desde a última vez em que nos vimos. – comentou com um meio sorriso.

─ O senhor não é o único inglês que já se aventurou em solo francês. – retrucou também se permitindo ostentar um meio sorriso nos lábios.

─ E ainda assim preferiu confundir o lacaio falando em sua língua materna. – provocou Mycroft, fazendo sinal para que ela se sentasse.

Reparou em seu semblante abatido, o que comprovava a notícia que recebera semanas antes a respeito da morte de Sebastian de Pontmerci, o célebre Ministro das Relações Exteriores francesa. Seus olhos, contudo, denunciavam outra realidade. Permaneciam tão implacáveis quanto era capaz de se lembrar, sem qualquer sinal de que tivesse passado por longas noites de inconsolável pranto. Fitavam-no com a mesma determinação de um Chefe de Estado, e por um feixe de segundo ele se perguntou se ela não o teria aprendido com os vários que conhecera.

─ Meu filho vem tentando, sem sucesso, contatá-lo incansavelmente nessa primeira semana em que estivemos em Londres. – tornou a dizer, ignorando seu comentário anterior. – Disseram-lhe que o encontraria aqui, mas Louis afirmou que se tratava de um clube deveras estranho. Je apprécie la différence (eu prezo a diferença), e votos de silêncio somados a proibição da entrada de mulheres realmente chamaram a minha atenção. Decidi que seria eu quem deveria vir. – concluiu retesando-se na cadeira.

─ E a que devo essa ilustre visita? – perguntou Mycroft, polidamente, querendo sanar sua curiosidade. – Aliás, sinto muito pela sua recente perda...

Ela ergueu a mão para que ele não continuasse naquela linha de raciocínio, e pela segunda vez em sua vida o mais velho dos irmãos Holmes perguntou-se se alguma vez veria aquela mulher perdendo a compostura. Desviou seu olhar do dele por um instante, tornando a se retesar na cadeira, como se procurasse por uma posição mais confortável para começar a dizer o que a fez viajar para outro continente para dizer.

─ Bem, graças a Deus as notícias viajam mais rápido do que as pessoas que as carregam ultimamente. Dessa forma, posso ir direto ao que me trouxe até o seu país. – disse com visível amargor na voz. Foi a vez dele se retesar em sua poltrona. – O nome de Charles Milverton lhe soa familiar? – perguntou brandamente, quase cautelosa.

─ Deveras. – assentiu Mycroft. – Mas, que negócios você poderia possuir com um tipo desses? – inquiriu também de forma cautelosa. Ela suspirou com cansaço, retirando uma carta de dentro da bolsa de mão, entregando-a a ele.

─ Vai encontrar tudo o que precisa saber aí, mas, ainda assim eu gostaria de dar-lhe a minha versão. – respondeu, enquanto ele olhava do conteúdo da carta para seu rosto, sem demonstrar qualquer reação.

“Onze anos atrás, você deve se lembrar, estávamos negociando uma aliança com a Rússia. Bem, Sebastian era um dos principais envolvidos nesse projeto em seu gabinete, e... costumava levar muito de seu trabalho para casa, afinal eu vivia lhe dizendo que não gostava quando passava tempo demais sem ver Louis. Certa noite, durante um jantar, ele me pediu que buscasse um dos documentos que havia redigido para mostrar a um dos associados ao projeto. Junto a esse documento, encontrei uma carta endereçada ao chanceler russo... nunca fui uma mulher curiosa, mas algo mais forte que eu me impeliu a ler aquela carta e o que li poderia destruir a aliança. Não confrontei Sebastian a respeito disso, o que foi meu maior erro...

Veja, eu estava confusa, assustada até. Então, resolvi falar com Raoul Solignac, trabalhava com ele como assistente e deveria saber alguma coisa a respeito... Mas, ele me disse que também não sabia de nada e foi então que me desesperei. Se aquelas cartas chegassem às mãos erradas, Sebastian seria enforcado e Louis ficaria sem um pai... Então, entreguei as cartas a Solignac para que desse um fim a elas. O que, à época, ele me garantiu que fizera. Semanas depois eu percebi quão profundo o erro de confiar em alguém pode ser. Eu não sabia que ele seria dispensado por se envolver com a filha de um dos senadores e que fora Sebastian a revelar seu segredo ao pai dela...”

─ Então, este rapaz vendeu as cartas para Milverton na chance de conseguir se vingar de seu marido. – concluiu Mycroft, percebendo que as mãos dela tremiam. – Contudo, não vejo como seria possível ele conhecer um homem que, até onde sei, jamais pisou em solo francês. – acrescentou.

─ Não seja ingênuo, Mycroft. – ralhou a mulher, batendo com a bengala contra o assoalho de madeira, e ele registrou o uso de seu nome de batismo. – Você sabe mais do que qualquer um que é exatamente assim que as grandes tramas governamentais ocorrem. Reitero: você não é o único inglês que já se aventurou em solo francês. E em jantares da embaixada, depois de várias taças de vinho misturadas com champanhe, as pessoas tendem a falar mais do que deveriam. Um chantagista é o tipo de pessoa que um inescrupuloso gosta de ter em sua lista de contatos.

─ Felizmente para Solignac esse tipo tarda, mas não falha. – desdenhou Mycroft.

─ Infelizmente para mim e meu filho isso significa a forca. Eu não vou conseguir levantar a soma que ele pede por elas sem provocar suspeitas. – retrucou ela com a voz cheia de veneno.

─ E como posso ajudá-la? Quer um cheque ou prefere pagá-lo em notas? – ele tornou a desdenhar.

Madam de Pontmerci bateu a bengala com força contra o chão, erguendo-se com uma agilidade e vigor não condizentes com sua idade. Seu olhar para o mais velho dos Holmes agora era mortal, mas não o suficiente para abalá-lo. Estava acostumado a lidar com tubarões todos os dias e aquela mulher era apenas mais um deles. Na França, sabia, aquilo seria suficiente para fazer com que o mais poderoso dos homens implorasse por seu perdão de joelhos, mas não surtiria o mesmo efeito em Mycroft Holmes.

─ Então? – insistiu, recostando-se em sua poltrona com o mesmo ar superior que o dela, que permaneceu de pé. Ambas as mãos apoiadas em sua bengala.

─ Eu pensava que o célebre Mycroft Holmes seria capaz de me oferecer mais do que a famosa ironia inglesa.

─ E eu pensava que a distinta Madam de Pontmerci ainda fosse capaz de colocar as cartas na mesa sem precisar recorrer à retórica diplomática. – retrucou erguendo uma das sobrancelhas com escárnio. – Contudo, não se preocupe. Caso não esteja lembrada, sempre fui dotado de um grande censo dedutivo.

─ Por que outra razão eu me daria ao trabalho de pisar em solo inglês? – desdenhou ela, dando de ombros.

─ Deseja que eu renegocie com Milverton a entrega de suas cartas. – deduziu Mycroft, sua vez de ignorar um comentário dela. – No entanto, minha cara, se esquece de que jamais fui dado a agir ativamente num caso. – contrapôs pondo-se a andar pela sala.

─ E não abriria uma exceção para uma amiga desesperada? – indagou ela, aproximando-se dele.

─ Não para uma que se mostra tão infeliz por pisar em... solo inglês. – ponderou ele mirando-a de cima a baixo.

─ A inimizade entre as nossas nações é histórica. Sou a viúva de um membro da Assembleia Francesa, o que esperava? Que estivesse regozijante e usando as cores da sua bandeira ao invés do luto? – inquiriu com um sorrisinho zombeteiro.

Mycroft soltou um risinho abafado. Ela continuava a mesma. Mais velha, mas com a mesma atitude petulante de outrora.

─ De fato, não somos as melhores amigas. Inglaterra e França. Mas não é o meu patriotismo que me faz querer negar-lhe ajuda. Simplesmente pretendo passar seu dilema para mãos ainda mais habilidosas e que ficarão encantadas em resolvê-lo. Ouso dizer até que o seu comportamento irá fazê-lo deleitar-se em tê-la como cliente. – explicou brandamente, e foi a vez dela erguer uma das sobrancelhas.

─ Cliente? Do que está falando, Mycroft?

─ Acredito que já tenha ouvido falar de meu irmão mais novo, Sherlock.

─ Deveras. Ajudou a encontrar a Mona Lisa quando esta desapareceu do Louvre, o segredo mais mal guardado da França. – assentiu com impaciência. – E o seu irmão irá aceitar resolver minha situação, uma vez que você, até onde eu sei, o mais brilhante dos homens, se recusa? – disse com a voz carregada de ironia.

Madam me lisonjeia, mas acredito que Sherlock ficará encantado em tomá-lo de minhas mãos. – ponderou Mycroft, indo em direção à porta. – Em todo caso, porque não tira suas dúvidas agora mesmo? Acredito que uma visita a Baker Street me fará bem. Se quiser me acompanhar...

Mirando-o num misto de impaciência e rendição, ela assentiu, saindo à sua frente para apanharem um cabriolé para o 221B


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Notas finais do capítulo

* Stranger's room - tradução direta ficaria Sala dos Estranhos... mas, vamos concordar que não daria o mesmo efeito cool.

Eu acho que se colocássemos Madam de Pontmerci e Mycroft Holmes num ringue e gritássemos: "LUTEM"! o resultado seria até a morte... Me diverti muito escrevendo esse capítulo, de verdade! Ninguém está a altura do mano Mycroft, mas poxa, quão divertido foi fazer uma pessoa que é petulante o suficiente para tentar hahaha...

Espero que tenham gostado, façam uma visitinha a caixinha de reviews aqui em baixo e até a próxima!

P.S: FAÇAM SUAS APOSTAS! UM HOMEM! UMA MULHER! QUEM VAI SOBREVIVER ATÉ O FINAL DA LUTA?



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