Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 23
O passado de Annika


Notas iniciais do capítulo

Como estou inspirada, vêm dois caps na mesma noite. Aqui, o passado de Annie! Tomara que gostem!



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Já sem as reservas que construíra ao seu redor por toda uma vida – sempre desejara ter alguém com quem falar, e agora, o acaso e um pouco de vinho a empurravam na direção de Erik – a moça suspirou e, levantando-se levemente tonta, foi se sentar com os pés dentro do lago. O Fantasma a seguiu, sentando-se apenas um degrau acima na escadaria, enquanto a moça começava a falar:

– Não tenho muito que contar... Minha mãe era uma baronesa, ou devia ter sido... A família lhe planejava um casamento com um nobre de maior fortuna, mas ela não desejava nada daquilo; era uma artista, apaixonada por música e literatura, e também era escritora. Tinha ideias próprias, e era apaixonada pelos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, para ela, eram metas que ainda não haviam sido alcançadas, especialmente quando se via a diferença feita entre homens e mulheres. Seu ídolo era Madame Olympe de Gouges... – a pianista sorriu, lembrando-se das frases e citações da mãe - Aos dezoito anos, abandonou a família e o título para se libertar das pressões constantes e do casamento arranjado, e começou a trabalhar como professora de piano, num conservatório. Ao mesmo tempo, começou a publicar artigos em jornais, com um pseudônimo masculino.

– Uma mulher à frente de nosso tempo... – comentou Erik – já descobri de onde vem sua coragem.

Sorrindo, lisonjeada, a moça brincou batendo levemente os pés na água, antes de continuar:

– Ela conheceu meu pai na redação do jornal; era um filho de família burguesa, sem título, mas com grande fortuna. Os pais dele se opuseram ao relacionamento com uma mulher sem fortuna nem nome, mas eram ambos jovens, e pensaram estar apaixonados. Ser deserdado pelos pais não deteve o jovem amante. Conseguiram viver bem, por alguns anos, mas... Minha mãe não havia nascido para ser a esposa servil e obediente. Continuou trabalhando fora e escrevendo, agora mesmo sem o pseudônimo, e publicando suas obras. Não eram grandes escritos, mas a realizavam, assim como seu trabalho no conservatório. Foi lá que tive minhas aulas de música, de dança, de desenho... Ela me ensinou a tocar piano, a me portar como uma dama, a bordar e costurar. Mas também me ensinou que uma mulher devia ser forte, inteligente, e jamais depender de um homem para sobreviver. Nesta época, eu já tinha cinco ou seis anos, e me lembro das brigas acerca de minha mãe trabalhar fora... Meu pai dizia que era impróprio, e ela dizia que não seria sustentada por homem algum, que era muito capaz de prover a si mesma... Não lembro muito bem, pois era bem pequena, e mamãe nunca tocou nesse assunto, comigo.

Ouvindo atento, o fantasma não podia deixar de sorrir: não conhecera Adelle Marie, mas já simpatizava muito com a mulher.

– Além disso, mamãe era uma mulher bastante culta, e me ensinava tudo o que podia, de história a mitologia, de psicologia a anatomia. Meu pai, porém, achava que esse tipo de aprendizado desvirtuava a mulher que eu deveria ser, esposa e mãe... E foram muitas as discussões. Quando Gabrielle nasceu, as brigas pioraram, pois agora não se tratava apenas de ele não aprovar os ensinamentos de mamãe... Também a culpava por não ter lhe dado um filho homem e, quando ele quis lhe ordenar que enjeitasse Gabi, para poderem ter logo outra criança, minha mãe o expulsou de casa.

– Ela o expulsou de casa?

– Sim. A casa fora comprada em seu nome, e os dois não eram legalmente casados, ainda que meu pai tenha nos dado seu sobrenome... – a moça parecia não ter qualquer afeto pelo pai – Ele voltou rastejando para a própria família, e desapareceu, deixando minha mãe com duas filhas para cuidar. Eu ajudei como pude, apresentando-me como pianista e até cantora em pequenas festas e bailes, e cuidava de minha irmãzinha, porque os turnos de trabalho de nossa mãe aumentaram muito. Foram tempos duros, mas felizes.

Annika pensou na época que narrava: sabia, hoje, quanto sofrimento sua mãe não teria suportado e, ainda assim, Adelle jamais tivera para as filhas um movimento que não fosse de carinho, uma palavra que não fosse acompanhada de um sorriso. A pianista desejava, acima de tudo, ter a força de sua mãe, a mulher a quem mais admirava no mundo.

– Ela continuou escrevendo, também. Trabalhava noite adentro, escrevendo panfletos e crônicas de crítica social... Mas suas palavras eram mordazes e, sem a proteção de um pseudônimo, ela se tornou um alvo. No começo, foram apenas ameaças por carta, pequenos recados, tentativas de desacreditá-la... Mas Adelle tinha muita coragem, e muito pouco bom senso. Tão grande quanto sua coragem, apenas sua vontade de mudar o mundo, e acreditava que seus escritos poderiam fazer a diferença... – a voz da jovem foi se tornando pesada e triste – ela foi imprudente e, um dia, resolveram silenciá-la de vez.

– Ela nunca pensou que estava pondo vocês em perigo?

– Acho que nunca acreditou que alguém atacaria uma mulher com duas filhas pequenas. Ela, por algum motivo, acreditava no melhor do ser humano... Um lado bom que poucas pessoas têm. – agora, a moça derramava lágrimas verdadeiras – Um dia, entraram em nossa casa, arrombando a porta. Ela mandou que eu me trancasse com Gabrielle dentro do armário, mas eu podia ouvir tudo... Ouvi os gritos dela, por horas, insultando quem a atacava... Ouvi enquanto a espancavam... E ouvi o tiro que a matou, enfim. Fiquei calada, mas não consegui impedir Gabi de chorar... E quando ela chorou, acabou-se tudo! – ela soluçava, com as mãos enterradas no rosto – eu não pude proteger minha irmãzinha!

Vendo o estado em que a moça se encontrava, o Fantasma se sentou ao lado dela e a abraçou; queria consolá-la, mas, agora que começara a falar, Annika precisava desabafar tudo o que calara por todos aqueles anos. Entrara numa espécie de transe, e despejava de uma só vez seu horrível passado:

– Os homens que mataram nossa mãe nos arrastaram para o prostíbulo. Venderam-nos para Lucian... Ele argumentou que Gabi ainda não valia nada, mas que seria um bom investimento, para o futuro. Eu, por outro lado... Já era uma mocinha. Ele me vendeu pela primeira vez, para aquele homem que matei hoje. – ela agora não chorava, mas havia um ódio violento em sua voz – Eu lutei! Lutei com unhas e dentes, e me debati! Mas não tive forças... Não tive forças! Ele era tão forte, e tão pesado que... Ah, Deus, como doeu! Eu queria morrer, apenas para que a dor parasse! Queria morrer, mas ele continuava lá, em cima de mim, me machucando... – ela abraçava o próprio corpo, trêmula e ofegante, os olhos vidrados. Erik conhecia bem aquele estado, pois ele mesmo se perdia assim em suas lembranças, às vezes. E nem mesmo o álcool era suficiente para impedir que ele visse a si mesmo em Annika...

– Quando acabou, achei que aquilo teria fim, mas foi só o começo. Todas as noites, e várias vezes por noite... Era o inferno! Era um pesadelo! Tentei fugir várias vezes, mas sempre me encontravam e, finalmente, disseram que matariam Gabrielle se eu tornasse a tentar. Foi só então que eu percebi: se continuássemos ali, minha irmãzinha teria o mesmo destino que eu! Ah, eu não podia deixar! Comecei a roubar para juntar dinheiro, crente que, se juntasse o suficiente, poderia comprar nossa liberdade. No começo era pouco: umas poucas moedas surrupiadas de bolsos, mas logo ganhei habilidade, e comecei a ganhar mais. Embora quisesse guardar tudo o que conseguia, muitas vezes precisava recorrer ao produto de meus roubos para poder evitar os espancamentos de Lucian... Sim, pois ele me espancava, todas as vezes em que não ganhava o bastante numa noite. E, para ele, nunca era o bastante... – ela percorreu com os dedos as inúmeras cicatrizes imaginárias, que estavam antes em suas lembranças do que em sua carne. Balançava o corpo para frente e para trás, as lágrimas escorrendo profusamente, como não haviam escorrido em toda a sua vida. – Todas as noites meu corpo era usado das piores formas possíveis, e por tantos homens... Engravidei quatro vezes, em menos de dois anos de bordel, e abortei em todas elas... Fiquei estéril depois do último aborto, que quase me matou. Quando me recuperei, comecei a roubar até mesmo de casas, para tentar ganhar mais.

Penalizado, sentindo-se comovido pela dor de outra criatura pela primeira vez na vida, o Fantasma abraçou Annika com força, trazendo-lhe as costas contra seu peito. Ela, tão rebelde e teimosa, era uma verdadeira fortaleza: como pudera não ser quebrada por tudo o que sofrera?! Como podia ainda ter forças de sorrir, de subir num palco e tocar, e se deixar admirar, depois de tudo isso? Como encontrava forças para criar Gabrielle, e se mostrar quase sempre sorridente?

– Mas não consegui juntar o dinheiro de que precisava a tempo... Quando Gabi tinha dez anos, ele a vendeu a um cliente que gostava de meninas impúberes. – Erik arregalou os olhos, atônito ao ouvir aquilo – Eu tentei impedir, tentei me oferecer no lugar, mas eu já era uma mulher, e ele exigira uma menina... Fiquei do lado de fora do quarto, amarrada, ouvindo os gritos de minha irmãzinha virem de lá de dentro! – ela escapou dos braços de Erik, e agora sua voz saía aos gritos – Malditos! Malditos filhos de uma cadela! Ela era só uma criança! Só uma criança... – a voz da jovem sumiu entre os soluços violentos que lhe chacoalhavam o corpo – Perdoe-me, Gabi! Eu nunca te protegi, meu amor! Nunca... Eu não pude ser como nossa mãe... Eu não a mantive segura...

Erik não precisou ouvir mais para entender todo o sofrimento de Annika; em verdade, sequer tinha palavras para descrever a compaixão, a admiração, a raiva, a indignação... Tantas emoções se misturavam dentro de si, com aquele relato, que ele só podia olhar para a pianista como se reverenciasse uma deusa vingadora, e abraça-la na tentativa de lhe dar um conforto que ele próprio nunca conhecera. Queria lhe dirigir palavras doces, mas o que podia dizer?!

– Gabrielle perdeu a voz, naquele dia. A partir de então, aprimorei ainda mais minhas habilidades de roubo, e cheguei a matar várias vezes, para poder tirar todos os pertences de cada vítima. Assim, eu podia não só juntar dinheiro para comprar nossa liberdade, mas pagar a Lucian o valor que Gabi deveria ganhar a cada noite; assim, ela não precisava se vender. Mas nem sempre eu conseguia, e tinha de ver minha abelhinha sendo arrastada para o quarto por outro daqueles porcos imundos! – outra vez o ódio se manifestava – Eu tentava mantê-la afastada daquele mundo. Tentava animá-la com livros, lendo-lhe histórias de terras distantes, ensinando-lhe artes, ciências, filosofia... Lembrava-me das palavras de minha mãe, dizendo que podem le tirar tudo o que você é, mas nunca o que você sabe, e fiz Gabi acreditar nisso. Criei um jogo onde fingíamos ser princesas de um reino perdido, e precisávamos aprender o que as princesas sabem. Insisti que ela soubesse andar, comer, sentar e discutir como uma princesa, mesmo que isso não significasse nada, de fato. Só queria que ela se visse como alguém especial... Que ela acreditasse que nossa vida não seria assim para sempre.

Erik sentiu uma lágrima escorrer de seu rosto: uma lágrima não apenas de compaixão, mas de emoção: quão poderoso não fora o amor de Annika por sua irmãzinha, para lhe dar tamanha força? Criar um mundo de paraíso, apenas para dar à menina um modo de fugir ao inferno? Que outra pessoas seria tão forte, e tão abnegada? De repente, sentia vergonha, porque todo o seu sofrimento dizia respeito a si mesmo. Nunca se preocupara com outra pessoa, enquanto Annika dedicara sua vida inteira a se preocupar e amar a irmã.

– Conheci os Garotos do Beco, e eles foram o mesmo que nossa família. Ajudavam-me com o dinheiro, quando eu não tinha o bastante para impedir que Gabi fosse estuprada outra vez... E me indicaram clientes que precisavam dos serviços de uma assassina. Eu já ganhara prática nisso, e acabei aceitando... Estava desesperada demais para negar qualquer coisa! Matei mais de vinte pessoas, nesse ramo de ofício, e já estava quase conseguindo o valor para nos libertar quando... – ela ergueu os olhos, e toda a raiva desapareceu – quando você surgiu.

Erik sentiu como se um balde de água fria o despertasse, fazendo-o ter consciência do corpo de Annika contra o seu, dos olhos azuis cravados nos seus, do alívio que via naquele olhar, como se ela fosse um náufrago e ele, uma ilha segura. Ela agarrou a frente de sua camisa, e deitou o rosto molhado de lágrimas em seu peito:

– Eu o odiei, a princípio. Eu o odiei, porque me afastara da liberdade com a qual tanto sonhara. Você era mau comigo, ao mesmo tempo em que cuidava de mim e de Gabrielle. Mas então, minha irmãzinha começou a amá-lo, e eu... – Ah, dane-se! Já havia despejado tudo, então, por que guardar algum segredo?! – e eu também! Eu te odiei por me fazer amá-lo. Eu te odiei porque, amando-o, estava presa por cadeias que dinheiro, distância e morte não podem romper! – ela o acariciou – e mesmo com seu temperamento perturbado, você me mostrou o lado belo da vida... Tornou-me alguém... Mostrou-me que eu podia ser mais do que a prostituta que sempre fora. Eu vi o seu melhor e o seu pior, e te amei deste modo, mesmo com toda a sua imperfeição. – ela se deixou escorregar para o chão, ocultando o rosto – e agora você já sabe. Já sabe de minha vergonha, de minha dor, de meus fracassos.

– Fracassos, Annika? – perguntou ele, erguendo-a do chão e fazendo-a ficar em pé – O que eu vejo é uma mulher maravilhosa, de uma força sobre humana, de um caráter, coragem e fibra maiores do que qualquer outra pessoa. – e então, pronunciou as palavras que, ele sabia, mais efeito teriam sobre a jovem – sua mãe teria orgulho da mulher que você se tornou. Teria orgulho da força que demonstrou, durante todos esses anos. Sei que ela te admiraria, tanto quanto eu admiro.

Ouvir aquelas palavras foi mais do que a jovem pôde suportar: ela caiu num choro intenso, mistura de alívio, alegria e pesar. Pesar pela falta da mãe, por tudo aquilo que passara... Alegria por ter sido vitoriosa, por ter escapado ao inferno, por ter conhecido seu amado... E alívio por, finalmente, desabafar tudo o que ficara retido em seu interior. Coisa retidas por tanto tempo, lágrimas tão guardadas que, agora que começara a chorar, não conseguia mais parar.

Embora estivesse alcoolizado, o Fantasma percebeu que a moça se encontrava bem mais: haviam ingerido a mesma quantidade de vinho, mas ela era menor e mais leve... A embriaguez dela era visível, e só confirmada por tudo o que a pianista confessara. Jamais diria aquelas coisas se sóbria, isso era claro.

Deixando que a jovem chorasse me seu colo até quase desmaiar, ele a ergueu nos braços e a carregou para a cama. Lembrou-se momentaneamente de quando carregara a inconsciente Christine para o leito, mas não sentiu nada além de irritação em relação à soprano; e como poderia ser diferente? Como poderia admirar alguma outra mulher, depois de ouvir a história da bela e talentosa pianista? Com cuidado, deitou-a no leito, tirou-lhe a capa e puxou os cobertores sobre ela; ia saindo quando se lembrou das palavras dela, acerca dos pesadelos que a acometiam... Ele também tinha terríveis pesadelos! Talvez pudessem confortar um ao outro. Era impróprio, sim, mas quem estaria ali para vê-los?

Preservando o recato da jovem, ele tirou apenas a capa, as botas e o casaco, deitando-se por cima dos cobertores, de modo que não tocasse a pele da moça adormecida. E mesmo estando apenas ao lado dela, sem sequer se tocarem, a presença da moça, o doce perfume que ela emanava, e a felicidade de estar ao seu lado, embalaram o Fantasma num sono sem sonhos. Um sono sem pesadelos, como ele não se lembrava de já ter tido.


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Notas finais do capítulo

Se deixei passar alguma coisa, foi o sono. Não deixem de avisar qualquer furo ou ponta solta, certo?
Beijos enormes, minhas flores, e digam o que acharam da vida de Annika e das reações e reflexões de Erik, ok?



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