Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 24
O passado de Erik


Notas iniciais do capítulo

Bom, gurias, no capítulo passado tivemos a história de Annie. Quem quer saber a história do misterioso, charmoso e enigmático Fantasma? É só ler!
Nos vemos nas notas finais.
PS - IsaW, pode pegar a caixa de lencinhos, tá? Vai precisar!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/662451/chapter/24

Annika despertou com uma dor de cabeça violenta; não se lembrava com clareza da noite anterior, mas sabia que havia contado a Erik coisas que jamais ousaria narrar! Por Deus, ela confessar que o amava! Ela confessar em alto e bom som! Como poderia encará-lo, depois disso?! E por falar no homem... Onde ele estava? Ou melhor... Onde ela mesma estava?

Abrindo os olhos devagar, percebeu que ainda estava na Casa do Lago e, para piorar sua situação, estava na cama do Fantasma! O que haviam feito?! Virando-se devagar, percebeu que ele estava sentado ao seu lado, por cima dos cobertores, e completamente vestido; ela também estava com suas roupas, então... Menos mal. Ah, droga! Sua cabeça parecia prestes a explodir em um milhão! Aquele vinho era realmente forte, ou sua resistência ao álcool desaparecera com um ano de abstinência...

Vendo que a moça acordara, o Fantasma lhe acariciou delicadamente o rosto e, preocupado, perguntou:

– Como você está?

– De ressaca. – respondeu ela, num sussurro – Parece haver um sino dentro de minha cabeça.

– Melhor comer alguma coisa, para cortar o efeito do vinho. – disse ele. Parecia bem demais para quem bebera tudo o que ele havia bebido!

– Não está de ressaca? – perguntou a jovem, sentando-se com dificuldade.

– Um pouco, mas nada significativo. – respondeu ele, pegando a cesta que Annie trouxera consigo na noite anterior e lhe entregando uma maça – coma devagar.

Ela sorriu, agradecida, e perguntou:

– Como eu vim parar aqui? – e profundamente envergonhada – e o que aconteceu, ontem?

Erik riu, e o riso dele pareceu fincar estilhaços de vidro na cabeça da pianista. Não se sentia tão mal com bebida desde a primeira vez que bebera, após a primeira violação, quando uma prostituta mais velha lhe dera vinho barato, dizendo que a embriaguez ajudava a suportar a humilhação. Bebida fora um dos tantos vícios que adquirira no bordel, e que perdera ao longo do ano com Monsieur Destler...

– Você me contou sobre sua vida. – respondeu o músico, sentando-se junto dela e fazendo uma carícia no rosto pálido.

– Disso eu me lembro. – ela corou e baixou a cabeça – Nunca mais vou beber!

– Isso lhe faria bem, mas não sinta vergonha das coisas que confessou. – ele lhe ergueu o rosto – é uma mulher única, Annika. Não conheço nenhuma outra com sua força e valor, e o que me contou só me faz admirá-la. – e indicou a cama onde estavam sentados – quanto a como chegou aqui, eu a trouxe depois que você dormiu no meu colo.

– Dormimos na mesma cama, não foi?

– Espero que me perdoe por isso... Quer dizer, eu dormi por cima dos cobertores, e estávamos ambos vestidos então... Então não aconteceu nada, e... – Ele gaguejava e corava como um menino pego numa arte, constrangido por seu comportamento. Finalmente fez uma pausa e se recompôs, voltando a parecer o homem controlado que era – Mas preciso lhe agradecer: foi a primeira vez em minha vida que não tive nenhum pesadelo.

A simplicidade daquelas palavras enterneceu a mulher; também fora a primeira vez em que ela não tivera pesadelo algum... Na verdade, em seu sono, podia sentir vagamente os braços do músico ao seu redor, e sentira-se tão protegida, tão aconchegada, tão... Tão feliz! Com um sorriso, começou a dizer algo:

– Erik, eu... – de repente, contudo, uma náusea violenta revirou seu estômago, e ela precisou se levantar correndo, indo para o banheiro que pusera em ordem no dia anterior. Mal conseguiu chegar à pia, antes que seu estômago rejeitasse o pouco que comera. Ah, não havia como se sentir mais envergonhada!

Porém, nada é tão ruim que não possa ser piorado, e Erik veio atrás da jovem; pronto! Sua dignidade estava acabada! Ela sentiu o artista segurar seus cabelos para trás, amparando-a enquanto a náusea retorcia seu corpo e, quando o enjoo finalmente se aliviou, o Fantasma abriu a torneira e lavou seu rosto, como se ela fosse uma criança. Trêmula com os enjoos, ela se encostou à parede e escorregou para o chão, profundamente constrangida. Erik ainda se abaixou ao seu lado, perguntando em voz suave:

– Annika, precisa de algo?

– Minha dignidade de volta, se ainda estiver por aqui, depois de tudo isso. – o músico riu – não tem graça!

– É claro que tem. Você está de ressaca, e morrendo de vergonha por isso, como se eu mesmo nunca houvesse ficado embriagado.

– Mas você, se o conheço bem, não deixou que vissem sua embriaguez. Nem falou o que não devia para alguém. – ela ainda não esquecera a confissão que fizera, acerca dos próprios sentimentos. Tomara que ele pensasse ser apenas a insanidade do álcool!

– Talvez não. Mas ficar sentada no chão do banheiro não vai te ajudar. – ele abriu a torneira da banheira – tome um banho frio. Há roupas femininas aqui, que devem lhe servir. Acha que está bem para ficar sozinha?

– Não vou morrer por causa de uma ressaca, mas agradeço a gentileza.

Erik assentiu, saiu por alguns segundos e retornou com um vestido branco, longo. Parecia grande demais para ter pertencido a Christine, o que fez a moça imaginar por que estaria ali; sentindo-se mal demais para conjecturar, entretanto, contentou-se em esperar que o Fantasma saísse outra vez, e mergulhar no banho frio.

*

Ao sair do banheiro, já vestida, a moça estava bem melhor: a dor de cabeça quase passara, e o enjoo desaparecera. Recomposta e parecendo-se com um ser humano outra vez – uma vez que ainda há pouco sentia-se mais uma geleia do que um ser vivo – Annika foi para a sala principal da caverna, onde Erik a aguardava, afinando o órgão de foles. Ao ouvir os passos de sua serva, ergueu-se e a fitou, sorrindo satisfeito ao vê-la com rosto mais bem-disposto. O vestido coubera bem nela, e isso agradava ao músico, que subira ao teatro para buscar roupas adequadas à moça, uma vez que pretendia trazê-la àquele lugar outras vezes – embora fosse cedo demais para contar isso a ela.

– Sente-se melhor?

– Muito. Pelo menos pareço-me com um ser humano, outra vez. Obrigada, e perdoe-me por... Bem, por tudo.

– Com toda a ajuda que me prestou, desde que veio para minha casa, isso era o mínimo que eu podia fazer. – ele sorriu, mas Annika viu uma pontada de preocupação, até mesmo de tristeza, nos olhos dourados que aprendera a amar.

– Algum problema, Erik? – parecia ridículo voltar a trata-lo por Monsieur, depois de tudo o que haviam vivido desde o começo da noite passada – parece... Triste.

Ele deu de ombros e se deixou cair no banco do piano, seu rosto carregado com um sentimento indefinido de pesar, incredulidade, surpresa e confusão. Subindo para junto dele, a jovem se sentou ao seu lado e segurou a mão do músico, insistente:

– Você ouviu todas as minhas confissões... Eu estou aqui, para ouvir tudo o que tiver a contar.

– Não sou o tipo que faz confissões, Annie – sem querer, ele a chamara pelo apelido... Droga! Não pretendia demonstrar a intimidade com que já pensava nela! Não era nem um pouco respeitoso, quem diria apropriado! – digo, Annika.

– Eu também não sou. Mas depois de ontem, sinto como se um peso enorme houvesse saído de cima de mim. Se quiser me contar algo, se quiser desabafar... Eu adoraria ouvir a história do terrível Fantasma da Ópera. – ele sorriu brevemente – e então? Por que a tristeza em seu olhar?

– É só... Bem, este lugar tem a maior parte de minha vida, e é doloroso vê-lo assim, semidestruído. Além disso, guardo muitas lembranças de... Bom, do passado, aqui.

– Você quer dizer de Christine. – ela foi franca e direta – e isso o perturba.

– O que me perturba é exatamente o fato de não me sentir perturbado. – respondeu o mascarado – faz algum sentido? – ele se levantou e caminhou pelo fole – lembro-me dela, neste lugar, e as memórias parecem embotadas, enevoadas... E os sentimentos são como as memórias de um sonho. Como se as palavras dela, ontem, houvessem cortado nossos laços, e só as lembranças houvessem permanecido. Mas as lembranças não doem, mais, e estou... Vazio. Não um vazio escuro, não um vazio doloroso... Só vazio. Como um livro apagado, onde restaram apenas marcas no papel, mas não as letras que formavam as palavras.

Annika deu um sorriso que era, ao mesmo tempo, triste e feliz: triste, porque gostaria que Erik nunca mais sofresse, embora soubesse que suas dores eram muito maiores do que apenas o assunto “Christine”... E feliz porque, pelo menos em relação à soprano, ele parecia quase a ponto de se libertar. Quando aceitasse esse “vazio”, que era como estava se referindo à sensação de não sofrer mais, então estaria livre para seguir em frente. Mas havia muito mais, oculto nas profundezas da mente do Fantasma.

– Talvez você só esteja se libertando. Quando algo vai embora, mesmo algo ruim como o sofrimento, sempre deixa um vazio. Precisamos preenchê-lo com outra coisa. – porcaria! Aquelas palavras haviam soado como se tivessem segundas intenções, e isso era a última coisa que a moça queria! – mas não é apenas isso que o está perturbando, é?

– Não... – ele tocou a pedra fria da parede diante de si – este lugar... Ele é parte de mim. Olhar esta caverna é como olhar para minha história. Quando acordei e fiquei vagando sozinho por aqui, comecei a me lembrar de... Bom, de coisas que achava ter esquecido.

– E por que não me conta? Ainda está me devendo sua promessa, afinal.

– promessa? – perguntou o músico, desentendido.

– Sim. – ela se ergueu e foi encará-lo face a face – disse que, se eu lhe contasse meu passado, contar-me-ia o seu. Eu lhe contei, e contei até mais do que pretendia. Agora é sua vez.

– E por que quer saber de meu passado? – indagou ele, renitente, dando um falso ar ameaçador à própria voz.

– Por que queria saber do meu? – devolveu ela, antes de dar de ombros – Não precisa falar, se não quiser; a escolha é apenas sua. Mas estou aqui, para ouvir, e acredite quando digo que falar sobre o que vivi pareceu retirar o peso do mundo de meus ombros.

Hesitante, sem saber se devia ou não abrir-se com a moça, o Fantasma considerou: conheciam-se há mais de um ano, haviam brigado, discutido, conversado, partilhado juntos o amor pela música. Haviam se embriagado juntos. Ela o vira chorar, ele ouvira suas confissões... Ela chegara mesmo a ver seu rosto, e nem por um segundo manifestara o menor temor em relação à carranca que a máscara ocultava... Então, por que não? Por que não falar a alguém de seus tormentos, de suas dores? E se, como ela dissera, falar pudesse aliviar a dor, tanto melhor, pois fingir que o passado não existira realmente não o fizera ir embora.

– Você é um verdadeiro demônio, sabia? – ele de repente parecia o mesmo Fantasma de sempre, sombrio como de costume, embora a nota de divertimento em sua voz fosse algo novo – Quer saber minha história? Pois bem, então eu vou lhe contar. Mas não é agradável.

*

– Nasci na França, num vilarejo próximo à Normandia. – ele fitava o lago, relembrando o passado – Minha mãe era a governanta na casa de campo de um conde, responsável por educar seus filhos, e meu pai era o pajem do conde. Não eram casados. Quando nasci, meu pai cortou relações com a amante, e ela se culpou, acreditando que meu rosto horrível era uma punição por seu pecado. Tentou enjeitar-me mas o padre da vila lhe disse que criar-me seria o modo de se redimir perante o deus em que ela acreditava. Honestamente, eu gostaria que ela houvesse me afogado.

Com um suspiro, o mascarado se sentou no banco do órgão, outra vez, apoiando o rosto numa das mãos, e o cotovelo sobre a borda de madeira do instrumento. Annika permaneceu imóvel e atenta, sem fazer comentários.

– Nem nome a vadia me deu. Alimentava-me, e então me trancava no sótão, junto com os livros, a poeira e os ratos. Minhas primeiras lembranças são de quando tinha três anos, e era visitado no sótão por padre Erik, o mesmo que a impedira de me enjeitar ou matar; ele insistia que não era modo de tratar uma criança, e, por ironia, foi a única pessoa que me tratou com algum carinho ou gentileza. Batizou-me por conta própria, e me deu seu próprio nome: Erik Destler.

Annika se surpreendeu ao ouvir aquilo: então, Destler não era o sobrenome dos pais de Erik, e sim, o do padre que o batizara por piedade! Era a primeira vez que ouvia sobre um homem comum que agia movido por piedade e correção...

– Uma vez que minha mãe apenas me mantinha vivo, o padre Erik me tomou como seu pupilo. Com ele aprendi a ler, escrever e falar francês, alemão e latim. Também ensinou-me música, poesia, e os princípios do catecismo. – ele sorriu... Padre Erik era a única lembrança feliz de sua infância – foi na igreja que primeiro travei contato com o canto, e com o órgão – ele indicou o instrumento à sua frente – influências que persistem até hoje. O catecismo, bem... Enquanto era pequeno, eu acreditava que rezar a Deus podia fazer minha mãe gostar de mim. Tinha cinco anos, nessa época, e os pequenos sempre creem que as coisas podem melhorar. A única regra de meu tutor era que eu nunca removesse a máscara, e aos cinco anos descobri porquê: tirei-a enquanto brincava no campanário, e a esqueci. Os gritos das outras crianças, ao me ver, ainda estão vivos em minha mente. Suas mães me enxotaram, e as crianças me jogaram pedras no rosto. Naquele dia eu entendi por que minha mãe me odiava e me mantinha trancado, e por que nunca devia tirar a máscara: eu era marcado.

Annika não pôde se conter; imaginava Erik, pequeno e indefeso, ouvindo os gritos de horror de pessoas descabidas que se atemorizavam diante de uma criança! Com um suspiro, murmurou:

– Pobre Erik... – ele lhe lançou um sorriso triste, e prosseguiu:

– Foram as palavras de meu mentor, quando limpou o sangue de meu rosto. Foi a primeira vez que tive vontade de machucar alguém: naquele mesmo dia, antes de voltar para casa, fui à casa do menino que me acertara com a pedra e, enquanto ele brincava, de costas para mim, joguei-lhe uma pedra grande. Não mirei, mas ela o acertou na nuca... Ele caiu, bateu novamente a cabeça e... Só soube de sua morte uns dias depois. Foi a primeira e única pela qual me senti culpado, mas nunca confessei aquilo a alguém, por medo de perder a proteção de padre Erik. Tudo se passou por um acidente, e ninguém suspeitou de mim. Na verdade, poucos sequer sabiam de minha existência, uma vez que, quando não estava na sacristia e jardins do fundo da igreja, estava trancado no sótão de minha mãe. Hoje, olhando para trás, lamento a morte do menino.

Ele percorreu o teclado do órgão com os dedos, sem tocar, como se imerso em lembranças:

– Quando não estava com meu professor, minha mãe me trancava no sótão. Já estava acostumado e, uma vez que já lia correntemente, comecei a me entreter com os livros. Aprendi matemática, literatura, história... Tudo o que uma preceptora ensinaria aos filhos de um nobre. Gostava de aprender, e era o que me distraía de minha dor, quando ela chegava em casa irritada e, sem qualquer motivo, surrava-me com uma vara ou pedaço de corda. Ao perceber que os livros me distraíam, ela começou a me trancar no escuro, sem velas... Parecia ter gosto por me torturar. Aos nove anos, depois de uma surra que me deixou sem andar por três dias, eu não aguentava mais aquilo tudo, e implorei a meu professor que me livrasse daquilo. Ele me prometeu que daria um jeito, mas eu não podia mais esperar... Havia um circo, na cidade; esperei o dia em que a caravana partia e, nesse dia, em vez de ir para a igreja, como sempre fazia, escondi-me num dos vagões onde transportavam cavalos. Só me descobriram ao anoitecer, quando montaram acampamento em outra cidade. O líder da caravana quis me mandar embora, mas implorei a ele que me deixasse ficar, e chegamos a um acordo: eu trataria dos animais em troca de comida e descanso.

Annika estava horrorizada: sua vida fora difícil, sim, mas ela tivera um lar, uma mãe que a amava e uma irmãzinha adorável que, mesmo após a perda da mãe, a havia motivado a seguir em frente e ser forte. Mas Erik nunca conhecera o amor de ninguém, além do de um professor... Como ele pudera se tornar o homem que era hoje, culto, hábil, verdadeiramente genial? Como pudera suportar tantas dificuldades, desde tão tenra idade?! Ele pareceu compreender a dúvida no olhar dela:

– Quando você não tem escolha alguma, só lhe resta sobreviver. E foi o que fiz. O circo foi a época mais tranquila de minha vida: eu dissera que meu rosto se deformara num incêndio, então ninguém mencionava a máscara. Não tinham nenhum apreço especial por mim, mas não me surravam, nem me trancavam. Alguns até chegavam a ser simpáticos, e foi assim que aprendi não só a gostar e cuidar de cavalos – ele pensou com carinho em César, seu amado animal – mas também a tocar alguns instrumentos de sopro, criar ilusões de óptica, enganar os sentidos e fazer truques de mágica. Dominei depressa essas artes, e logo me apresentava junto com o circo. Foram dois anos sossegados, mesmo que trabalhosos, e comecei a me sentir em casa... Até o dia em que a caravana chegou à Pérsia, e um homem do sultão se interessou por minhas habilidades. Comprou-me, e meu mundo desmoronou, nesse dia. A liberdade que eu conquistara se fora, e agora eu era um escravo, com correntes nas mãos e à mercê de meu dono.

– E quem era esse homem? – a mulher se sentia perdida e envolvida na narrativa, compadecida e admirada do homem que tinha à sua frente, compreendendo a loucura que dele se apossava, entendendo sua instabilidade emocional. Outra pessoa, em seu lugar, teria se matado!

– O arquiteto do sultão. Interessou-se ao me ver desenhar na areia, após uma apresentação de mágica. Conversou comigo e, ao ver que eu também entendia de matemática, viu em mim o criado que desejava. Não foi o pior destino que poderia haver... Ele me tornou seu aprendiz e, embora não poupasse o chicote, e todos ao meu redor me humilhassem e ridicularizassem meu rosto, aprendi mais em cinco anos com tal amo do que nos onze anos anteriores. Aprendi a língua persa, o ofício da arquitetura e o domínio da matemática avançada, mecânica e óptica. Descobri como usar minha voz para hipnotizar, e a entrar nas mentes das pessoas, descobrir seus segredos pelos olhos e gestos. Tornei-me mais capaz que qualquer nascido livre ou liberto, e comecei a inventar minhas próprias máquinas, usando-as para executar alguns dos truques que aprendera no circo, e de modo ainda mais convincente. Quando meu mestre viu as coisas que eu criava, recomendou-me ao sultão, para o qual comecei a fazer pequenos trabalhos. Ganhei a liberdade aos dezessete anos, e fui incumbido de projetar corredores e salas para proteger os tesouros do rei persa. Trabalhei nisso por três anos, criando armadilhas, corredores falsos, labirintos e salas de tortura. Ah, sim, eu já sabia como causar dor e matar... Livrara-me já de muitos escravos que podiam representar uma ameaça à minha posição como favorito de meu dono. – os olhos dourados brilhavam de modo estranho, mas não era de felicidade. Parecia-se mais com o olhar de um viciado que vê ópio diante de si... Mas o ópio de Erik era o sangue. – Como arquiteto do sultão, parecia que, enfim, meu rosto horrendo não seria mais algo relevante. Cheguei a ficar noivo de uma jovem. Ela não me tinha grande carinho, mas aceitou o noivado... Era linda como uma huri – e lembrando-se que Annika não sabia o que eram huris – huris são...

– Eu sei o que são huris. Seres femininos sem alma e virgens, de beleza indizível, cujo propósito é servir e satisfazer os fiéis muçulmanos, após sua morte. – ela sorriu misteriosamente para Erik – pode conjecturar onde foi que aprendi isso. – e com olhar cheio de compaixão - Continue, por favor?

O músico meneou a cabeça, entendendo que ela procurava melhorar seu ânimo, e prosseguiu:

– Mas as construções acabaram, e um novo sultão subiu ao poder. Ele não queria vivos os que haviam trabalhado na construção dos complexos de segurança, quanto mais aquele que os projetara! Porém, não se contentou em me matar: jogou-me na arena de gladiadores, para a diversão de sua esposa, que era pouco mais que uma criança. Ela apreciava aqueles jogos de sangue, e queria ver até onde eu suportaria... Eu tinha metade do tamanho dos gladiadores! Embora fosse alto, era magro e não muito forte... Aprendi a usar o Laço do Punjab, para matar meus oponentes, e as lutas constantes me fortaleceram. Afinal, assistir minhas lutas já aborrecia a sultana, que encontrou outra finalidade para mim: em vez de matar os homens que eu vencia, passei a ter de tortura-los nas câmaras que criara para tal fim. Não eram ladrões, não eram criminosos... Eram apenas criados que, como eu, sabiam demais. Algumas vezes cheguei a me recusar, quando a vítima era alguém que trabalhara comigo, mas então eu era trancafiado e torturado até implorar que parassem. Afinal me acostumei àquilo, e aprimorei as técnicas de tortura ao máximo, até chegar a uma câmara que torturava não só o físico da pessoa, mas também sua mente, enlouquecendo-a até que cometesse suicídio.

Annika cobriu a boca com as mãos: aquela sultana era um verdadeiro demônio! Como podia haver tão torpe criatura, no mundo?!

– Mas isso também perdeu a graça, para ela, e minha execução foi ordenada. Depois de três anos como gladiador, eu seria executado publicamente, para o divertimento de uma menina de quinze anos. Não morri graças à mulher que deveria ter sido minha esposa, e que se tornara concubina do sultão: ela descobriu onde eu estava, e planejou uma fuga para mim. Disfarcei-me e fugi com uma caravana de mercadores, até o Egito... Mas alguém lá em cima certamente me detesta, e tudo deu errado, de novo... Não imagino quem possa ter descoberto minha deformidade, pois eu nunca tirava a máscara, a não ser por breves instantes, para me lavar... Só sei que fui dopado e, quando acordei, estava outra vez em correntes, em outro circo. Mas desta vez, era um circo de horrores, e fui transformado na atração principal. Espancado, açoitado, mantido em correntes numa jaula onde me apresentavam como o Filho do Diabo. Como minha deformidade não parecia ruim o bastante, pioraram-na esfregando um tição ardente em meu rosto, que derreteu a pele e a tornou cheia de caroços, quando cicatrizou.

Annika não conteve o gemido de pena e horror, mas aquilo não parou o Fantasma: ele começara, e agora ia até o final.

– Um ano inteiro deste suplício, até que a caravana chegou à França. Graças a Madame Giry, que se apiedou de mim durante um “espetáculo”, consegui matar meu carcereiro e fugir. Ela e o marido me esconderam em sua casa, trataram de minhas feridas e, quando me recuperei e lhes contei ser um arquiteto, trouxeram-me à ópera, que naquela época passava por reformas de ampliação. Comecei a trabalhar como arquiteto, aqui, e logo me apaixonei por este mundo. Descobri as galerias aqui embaixo, e construí a Casa do Lago, transformando a caverna num lar; aprendi a conhecer os caminhos secretos do teatro e, através deles, podia assistir de modo invisível às aulas dadas aos jovens. Aprendi tudo aquilo, e foi uma questão de tempo até que, de arquiteto, passasse a diretor artístico da Ópera.

– por isso não temos um diretor artístico... Você já havia sido contratado como tal!

– Exatamente. Mas já era tarde demais, para mim, e pensei que nunca mais suportaria a presença de outros seres humanos... Escutei a lenda do Fantasma da Ópera, e me pareceu o personagem perfeito... Fantasmas não podem ser presos, feridos ou mortos. Fantasma assustam as pessoas, e são invisíveis. Era tudo o que eu desejava para mim e, como O Fantasma da Ópera, eu pude encontrar nas minhas artes um pouco de conforto... Pelo menos durante quatro anos, até conhecer Christine. E a partir deste ponto, eu creio que Madame Giry já se encarregou de lhe contar a história. – uma única lágrima escorreu pelos olhos do Fantasma. – Essa é a minha história, Annika... A história de um monstro.

Compadecida, horrorizada, admirada daquele homem tão corajoso e persistente, ela caminhou até o Fantasma e o acariciou. Devagar, para dar a ele a chance de impedi-la, se quisesse, tirou a máscara branca de cima do rosto masculino, para poder fita-lo com clareza, e não lhe pareceu horrendo, mas misterioso e enigmático. Com toda a delicadeza do mundo – não sabia se a deformidade era dolorida ou não – acariciou a pele pálida e enrugada, antes de dar-lhe um beijo na testa.

– Você não é um monstro. É apenas Erik – ah, que se danasse seu orgulho! Tinha de dizer aquilo quando sóbria, mesmo que não fosse ser correspondida! – o homem que eu amo e admiro exatamente como é.

Ante as palavras dela, o Fantasma caiu num pranto soluçante, abraçando-a pela cintura e deitando a cabeça contra o colo da jovem, que apenas o abraçou e fechou os olhos, sendo para ele o amparo que, ainda no dia anterior, o músico fora para ela.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então? Sei que o capítulo ficou um pouco mais longo do que pretendia, mas eu quis criar um clima leve, no começo, para depois jogar a bomba. Gostaram?
Deixem aquelas reviews divas que eu adoro tanto, tá?
kisses, flores!