Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 2
Annika


Notas iniciais do capítulo

E então, meninas (e rapazes, se tiver algum)? O que acharam até agora?
Neste capítulo, vamos conhecer Annika, a ladra misteriosa que conseguiu pôr nosso Fantasma inconsciente.



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Escondendo a maior parte das moedas – nunca havia visto tanto dinheiro assim, na vida! – no vão oco da parede do beco, Annika separou o restante para entregar a Lucian, seu senhor. Pelo menos naquela noite, ela e sua irmãzinha poderiam dormir em paz, sem serem molestadas.

Embora a camisa do estranho houvesse ficado grande para ela, bastariam alguns pontos para que a peça se transformasse num vestido quente para Gabrielle; a menina era miúda, e o homem que Annika roubara, muito alto, de modo que havia ali pano mais que suficiente para cobrir a garota mais nova. E havia também a espada! Ah, uma lâmina magnífica, de fato, e por um instante a ladra pensou se poderia guarda-la para si... Mas chegou à conclusão de que a espada de nada lhe valeria: melhor seria vende-la logo, pois aquele roubo lhe rendera o suficiente para comprar sua liberdade, e a de Gabrielle! Bastaria vender a espada, e estaria livre! Livre do inferno em que vivia já há nove longos anos.

Fechando o vão na parede com o tijolo que removera, a mulher se levantou e pegou as moedas restantes: era mais do que ganhava em uma noite de trabalho. Aliviada em saber que, pelo menos naquele dia, não teria de suportar homem algum em sua cama, caminhou a passos rápidos para o prostíbulo: queria entregar logo o dinheiro a Lucian, antes que ele se irritasse com a demora e acabasse entregando Gabrielle a algum dos porcos que frequentavam o lugar!

– Senhor! – ela entrou pela porta dos fundos, a fim de não ser notada pelos clientes que começavam a chegar. Lucian, um homem alto e gordo, de cabelos e barba castanhos e miúdos olhinhos de porco, andava para lá e para cá nos fundos do salão, vigiando as mulheres que dançavam para alguns homens, e também a menina que servia bebidas... Gabrielle. – Senhor, estou de volta.

O homem com cara de suíno voltou-se para a jovem com olhos maldosos e, num sorriso que mostrou seu dente de ouro, perguntou:

– E o que trouxe para mim, minha beleza?

– Mais do que o suficiente. – respondeu ela, colocando as moedas na mão do homem, cujo rosto se iluminou de gananciosa satisfação.

– Você é a melhor das minhas meninas, sabia, Annika? – perguntou ele, dando um tapa estalado na coxa da jovem – Boa garota. – a mão rude começou a apalpar a jovem, que se manteve impassível ao perguntar:

– Estou dispensada do trabalho, por hoje?

Lucian pareceu não gostar, mas assentiu. Enquanto ele contava o dinheiro, a moça se esgueirou de fininho para fora do alcance de seu patrão, antes que ele resolvesse leva-la para seu quarto. De todos os porcos imundos que já haviam usado seu corpo, ele certamente era o pior!

Silenciosa como uma sombra, Annika se esgueirou até Gabrielle – a menina de doze anos era pequena e franzina, de longos cabelos louros e pele muito pálida pela pouca exposição ao sol, mas havia um brilho de extrema inteligência nos olhos azuis e amendoados como os da irmã. Ao ouvir a irmã se aproximar, voltou-se para ela e gesticulou. Gabrielle era muda - ficara muda, após ser violentada pela primeira vez, aos dez anos – mas desenvolvera uma linguagem de sinais própria, que apenas Annika compreendia:

Você está bem?

– Estou bem, querida. Por hoje, estamos dispensadas. – respondeu a mais velha, puxando a caçula pela mão para o andar de cima, até o quarto que dividiam quando não estavam “trabalhando”. Era um aposento minúsculo, onde mal cabia a cama de solteiro e o pequeno baú de posses das duas, mas era, para ambas, o seu santuário, o lugar onde passavam as poucas horas agradáveis que conheciam.

Acendendo uma vela para iluminar o lugar, Annika puxou algo de dentro do casaco: um livro. O semblante de Gabrielle se iluminou, e ela perguntou em sinais:

Conseguiu um novo?!

– Eu prometi que lhe traria outro, não prometi? – com um sorriso, a moça de vinte e um anos se sentou na cama com sua irmãzinha no colo – A Origem das Espécies, Charles Darwin. – as duas se entreolharam, sorrindo. Ler e aprender era o que faziam para fugir à horrível realidade que viviam. Annika roubava livros de bibliotecas públicas e particulares, e os levava para ensinar à irmã. Matemática, literatura, ciências, artes... Nenhum assunto era tedioso demais, ou complexo demais para as irmãs. Entretinham-se daquele modo, usavam os livros para viajar a outras terras e outros lugares, para serem outras pessoas, e viverem outras histórias.

Annika sempre citava à irmã as palavras que se lembrava ter ouvido da mãe, num passado muito distante: “podem tirar tudo o que você tem, podem lhe tirar tudo o que você é, mas jamais poderão lhe tirar aquilo que você sabe”. E aprender coisas novas era o desafio particular das duas à tirania de Lucian: ele não podia impedi-las de aprender. Podia controlar seus corpos e suas vidas, mas não podia aprisionar suas mentes. Assim, mesmo vivendo naquele pardieiro, podiam sonhar com coisas que às outras mulheres eram inconcebíveis! Embora todos os demais as encarassem como meras prostitutas, no mundo secreto de conhecimento e sonhos que haviam criado, elas eram princesas. Ou pelo menos Annika fazia de tudo para que Gabrielle acreditasse nisso.

Leram juntas por um longo tempo, fascinadas com aquele novo modo de ver o próprio conceito da vida, até que a pequena adormeceu. Quando isso aconteceu, a mais velha estendeu um cobertor sobre a pequena, ocultou o livro junto aos demais, sob a tábua solta do assoalho, e saiu do quarto. Pretendia sair para a rua, a fim de respirar um pouco, mas não foi muito longe em seu intento...

– Aonde pensa que vai, meu tesouro? – a voz de Lucian a fez parar no lugar, assustada. Ele era a única coisa que a moça temia na vida. Sem erguer os olhos para seu amo, ela respondeu:

– O senhor me dispensou, patrão.

– De atender aos clientes, talvez. – havia um tom muito cruel na voz dele – mas não de atender a mim. – aquelas palavras a fizeram erguer os olhos, em desespero:

– Por favor, patrão... – Mas ele não a deixou terminar, devorando-lhe os lábios num beijo que revirou o estômago da mulher. Desesperada, tentou empurrá-lo, e isso só o enfureceu:

– você me pertence, sua cadela! – gritou ele, dando um tapa no rosto de Annika, que caiu no chão. Sem piedade, ele a agarrou pelos cabelos e a arrastou para um dos quartos vazios, ignorando os pedidos e súplicas da jovem. Ele a desejava, e a teria; era assim que as coisas funcionavam, por ali.

*

Dias depois

– Ele vai acabar matando você, Annika! – disse Miguel, um dos garotos de rua a quem a moça chamava de amigos. Com cuidado, o rapaz de quatorze anos passou um pano úmido no hematoma no rosto da amiga; Lucian a espancara violentamente, dessa vez, e havia muitos hematomas pelo corpo da moça, embora o do rosto fosse o mais preocupante – Você precisava de um médico.

– Não temos como pagar um, Miguel. – Disse Renard (raposa), um jovem de dezoito anos, com cabelos tão vermelhos quanto o pelo do animal cujo nome tomara – mas ele tem razão numa coisa, Annika: Lucian vai acabar te matando. Outro espancamento desses, e você pode morrer. – ele se sentou ao lado da mulher, que estava encolhida contra a parede do barracão onde os rapazes se reuniam – por que não foge dele?

– Acha que já não tentei, Renard? – perguntou a prostituta, mal movendo a boca devido à dor no rosto – ele tem homens e mulheres por toda parte... Ele sempre vai nos encontrar! E é Gabrielle quem paga, todas as vezes! – ela meneou a cabeça, com raiva – não posso arriscar minha irmãzinha novamente. Lucian disse que, se tentássemos fugir outra vez, ele a mataria! Não posso arriscar... – e com um suspiro – conseguiu vender a espada?

– Estou tentando. – Renard era o típico rapaz criado nas ruas: ladrão, trapaceiro, viciado em jogos de azar (os quais, misteriosamente, nunca perdia), detentor de todos os piores contatos possíveis. Conhecia o submundo de Paris como a palma da mão; não havia um cano de esgoto ou proscrito fora-da-lei que não conhecesse, de modo que se oferecera para vender a espada que Annika conseguira. – mas não é qualquer um que tem dinheiro para comprar uma daquelas!

– Faça o que puder. – pediu ela – com o dinheiro, vou ter o suficiente para comprar a liberdade de Gabrielle, e a minha. Vou recompensá-lo por tudo o que já fez por nós, eu prometo.

– Você já nos recompensou, garota – Renard passou um braço pelos ombros da amiga, confortando-a – Nenhum de nós vai esquecer do inverno em que foram os seus roubos a nos manter alimentados, quando ainda éramos inexperientes demais para conseguir roubar o bastante. Só estamos aqui por sua causa, e tudo o que fizermos por você, será apenas retribuição ao que fez por nós.

Annika sorriu levemente, lembrando-se de quando conhecera os Garotos do Beco – como o grupo se autodenominava: fora num inverno especialmente frio, cinco anos atrás. Ela entrara no barracão para procurar objetos que pudesse vender, e encontrar cinco crianças e adolescentes, todos meninos, com idades entre sete e treze anos. Estavam famintos, desnutridos mesmo, e mal podiam se manter vivos; o mais novo, Charles, estava muito doente, e poderia morrer. Assim, embora já fosse difícil ganhar o bastante para evitar os espancamentos de Lucian – Gabrielle ainda era muito nova para ser vendida, na época, e ainda não corria riscos – a garota se desdobrara para ajudar aquelas crianças. Com a ajuda de Renard, o mais velho, havia conseguido roubar o bastante para manter todos vivos; quando não conseguia roubar nada, aceitava “clientes” a mais, e usava o dinheiro excedente para comprar comida e cobertores para os meninos. Chegara a pagar um médico para Charles, que se recuperara depressa depois disso. Era amiga do grupo, desde aquela época.

– Olhe, se você voltar sem dinheiro, ele vai espanca-la de novo – disse uma nova voz, enquanto um garoto de doze anos, cabelos pretos e encaracolados e olhos igualmente negros entrava no lugar. Charles trazia um relógio de ouro nas mãos, o qual jogou para Annika – leve isso.

– Não posso aceitar, Charles... – ela ia falar mais alguma coisa, mas um acesso de tosse a interrompeu. Sua garganta estava machucada, devido à força com que Lucian a apertara.

– Precisa aceitar. – disse o menino, ajoelhando-se junto da amiga – por Gabrielle, então. Para que ele não desconte sua raiva nela.

Annika fechou os olhos, reconhecendo a verdade nas palavras do pequeno: se não levasse dinheiro para Lucian, não apenas seria espancada, como Gabrielle seria obrigada a se vender outra vez. Não podia permitir isso! Assentindo, respondeu:

– Vou lhe devolver este valor.

– Não se preocupe com isso. – disse o menino – estou competindo num clube de luta – aquelas eram diversões clandestinas, onde garotos lutavam entre si, e o vencedor levava parte das apostas feitas – consigo me manter muito bem, com o que ganho. Leve o relógio.

Anuindo, a moça se levantou, cambaleando um pouco. Renard a apoiou, preocupado:

– Acha que consegue ir de volta para o cabaré?

– Eu dou conta. – respondeu Annika, empertigando-se para não demonstrar o quão mal se sentia. Firmando o passo, rumou para a porta do barracão – nos vemos por aí, rapazes. Se precisarem de algo, mandem mensagem por Lucille. – Lucille era uma das prostitutas de Lucian, a sua favorita, que gozava de privilégios como não ser espancada, caso não ganhasse o suficiente. E como a mulher geralmente encontrava “clientes” por aqueles lados do bairro, era por ela que os Garotos do Beco se comunicavam com a moça loura.

Ela se obrigou a caminhar dignamente até estar longe o bastante do barracão para não ser ouvida; foi só então que se deixou escorar contra uma parede e, mal contendo os gemidos de dor a cada passo, seguiu com dificuldade. Ia virando uma esquina quando, de repente, um par de mãos a agarrou. Em outra situação ela teria puxado sua faca e se defendido, mas estava debilitada demais para fazê-lo! As mãos a empurraram contra a parede, e quando seus olhos encontraram os de seu agressor, ela teve certeza de que estava morta, pois tratava-se de ninguém mais, ninguém menos, do que o homem a quem deixara inconsciente, cerca de duas semanas atrás!


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Notas finais do capítulo

Reviews, pode ser?
kisses, amores