Heróis de Cristal - Cidade em Chamas escrita por Ricardo Oliveira


Capítulo 6
#SalvePerth




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Elizabeth bateu enfurecida com as palmas da mão na mesa do comissário, arrancando olhares de todos os lados. O'Callaghan apenas ergueu uma sobrancelha, mas todos sabiam que ela estava testando a paciência dele, como sempre.


– Elizabeth. – Ele falou baixinho, tentando manter a calma. – A resposta é não.


A inspetora estava pronta para gritar quando Robert pôs uma mão em seu ombro e fez uma expressão que sugeria claramente “não”. Elizabeth respirou fundo. Precisava dar mais um soco em alguma coisa, mas bater no parceiro não seria uma boa ideia. Com dificuldade, ela deu as costas para os dois e saiu da sala do comissário. Robert a seguiu:


– Obrigada pelo apoio. – Ela rosnou, enfurecida.


– O que você queria que eu fizesse? – O parceiro retrucou, abrindo os braços. Por mais que ele admirasse a determinação da inspetora, não podia deixar de segurá-la quando necessário. – Você não ia conseguir nada. Só ia irritar o comissário.


– Irritar o comissário! – Elizabeth repetiu de forma indignada, virando-se para ele. – A cidade está morrendo e você está preocupado com a felicidade do comissário!


De todos os anos dela na força policial, aquele tinha sido o pior. Não que Perth não estivesse mostrando sintomas de uma doença antes, mas agora a cidade parecia estar em fase terminal. E era como se só ela visse aquilo! Ainda por cima, era a terceira ou quarta vez que O'Callaghan não a deixava seguir seus suspeitos.


Dessa vez, tinha recebido outra tarefa burocrática e inútil. Sentia que o comissário a castigava de propósito, tentando fazê-la desistir. Ela não desistiria. Sabia que todos estavam com medo, ela também estava. Contudo, se desistisse por estar com medo, que tipo de policial seria?


– Ouça. – Ele a repreendeu, sério. – Eu não estou dizendo que você não está certa, tá? Isso tá uma droga. Mas você não ajuda agindo assim.


– Agh, eu te odeio. – Ela respondeu, pegando as chaves do carro policial. – Especialmente quando você está errado.


Mas ele sabia que tinha acalmado a parceira, só não sabia durante quanto tempo. Pegou a sua pasta antes de sair. Ele tinha ouvido falar que, antigamente, Elizabeth cuidava de casos importantes com a mesma atitude que guardava até os dias atuais, mas em uma época onde isso era valorizado pela polícia da Austrália Ocidental. Hoje em dia, para ser um bom policial em Perth só precisava aceitar algum suborno, fosse de quem fosse.


– Para onde? – Ela perguntou, desanimada, quando estavam no carro.


– Rua Hay, 102. – Robert leu na sua pasta bem organizada. – Oliver Young não está mais desaparecido, temos que preencher alguns papéis, fazer algumas perguntas, etc. Eu não gosto desse cara.


Ela riu: - Eu o conheci uma vez, quando criança. Ele era um bom garoto. – Ela ficou em silêncio por algum tempo. – E o pai dele se importava com Perth.


– Nunca nos demos bem. – Robert resmungou, olhando pelo vidro. Aquela parte de Perth ainda parecia intocada. Sem pichações, traficantes ou sujeira, como se fosse outro lugar. Quanto tempo aquilo duraria?


Ele pegou o celular: - #SalvePerth continua nos tópicos mais falados. – Comentou. A hashtag iniciada por Mortimer tinha alcançado um efeito global.


– Deus abençoe aquele garoto. – Elizabeth respondeu, virando em uma curva. – Ele entende do que a cidade precisa. Pena que não é um policial, ou político. Vai dizer que não gosta dele também?


– Ele é aceitável, mas no fundo, são todos idiotas. Você não estudou com eles, Liza, não os conhece. No fundo, por trás dessas máscaras que eles usam, são idiotas egoístas. E Young? Young nem se preocupava em fingir o contrário.


Ela parou o carro: - Bem, siga o seu conselho e tente se controlar. Vamos.


Elizabeth nunca visitara aquele lugar, embora o visse em uma foto de jornal ou noticiário com certa raridade. A casa, feita de tijolos cinzas e com andares separados por janelas transparentes de vidro, tinha a sua beleza incrementada pelo jogo de luzes que fazia, destacando-a dos prédios ao redor da maior zona comercial de Perth.


Mesmo com a campainha, ela preferiu bater à porta de madeira que tinha o 102 esculpido. Após alguns segundos e um leve click, a porta se abriu e Oliver Young apareceu:


– Oh. – Ela notou o sorriso dele sumir por um segundo. – Entrem.


Ele estendeu a mão para Elizabeth quando ela entrou, apertando-a de volta.


– Você provavelmente não se lembra… - Ela começou, mas foi interrompida.


– Não posso me esquecer da dama que salvou a minha vida. – E deu um beijo no dorso da sua mão, se voltando para Robert, com a mão estendida. O policial passou direto por ele. – Ceeerto. Mãe, temos visitas, esconda o corpo!


Elizabeth segurou o riso sob o olhar de censura do parceiro, indo para a sala onde haviam alguns empregados indo e vindo, e Lilian Young estava sentada em um sofá de fibras naturais. Ela se alegrou ao ver a inspetora, levantando-se para abraçá-la:


– Ele voltou! – A senhora exibiu, puxando o filho pelo braço. – Muito obrigada pelo seu trabalho.


Elizabeth ergueu as mãos: - Apesar de não termos feito nada… E vamos precisar de alguns detalhes sobre o seu desaparecimento, Oliver.


– Foi tudo um mal entendido. – Explicou, narrando a história que Pandora tinha forjado através de todo o tipo de documento. Elizabeth ouvia atenta, checando um ou outro papel que ele mostrava, enquanto Robert parecia desinteressado. “Babaca”, Oliver pensou.


Robert podia ter quantas qualidades fossem, mas não era o tipo que se destacava. Não era mais inteligente do que Mortimer, ou mais habilidoso do que Oliver conseguira ser após o cristal. Além disso, sendo um policial, era mais um culpado pela situação da cidade. E aquilo, acima de tudo, Oliver não podia deixar passar.


Elizabeth suspirou. Uma hora tinha se passado, e por mais que o café e os bolinhos oferecidos fossem deliciosos, ela sabia que aquele tempo perdido era só mais um passo para o fim de Perth. Preencheu mais algumas lacunas em um daqueles formulários chatos que tinha aprendido a dominar após anos de prática e se levantou:


– Parece que está tudo em ordem. Bem-vindo de volta, senhor Young.


– Me chame de Oliver. – Ele se levantou também, oferecendo-se para levá-los até a saída.


Antes de sair, ela o saudou mais uma vez e disse: - Eu sinto muito pelo seu pai. Ele era uma pessoa excelente.


“A cidade dirá que fui um bom homem, mas você e eu saberemos a verdade.”, ele se lembrou das palavras do pai. Sua mãe, seus empregados, Mickey, e agora Elizabeth. Todos que ele encontrava partilhavam da mesma opinião, e para todos ele respondia a mesma coisa:


– Obrigado.


A porta se fechou e ele ouviu o carro sair, assim como parte da conversa deles:


– Ele não parece ruim como você diz. – Ouviu Elizabeth dizer enquanto girava a chave do carro, despertando engrenagens dentro de engrenagens e ligando um motor de combustão interna, que transformaria o combustível (ele adorava aquele cheiro de combustível) em energia mecânica capaz de mover as rodas.


– Acredite em mim: Idiotas. Todos eles. – Robert respondeu, antes de suas vozes se misturarem ao mundo. Ele podia continuar ouvindo a conversa por mais algum tempo, mas sentiu que seria melhor não.


Aquilo o magoava um pouco. Era a imagem que tinha exibido durante muito tempo. Esse era o Oliver de Perth.


– Ela é uma moça adorável, essa Elizabeth. – Sua mãe comentou quando ele se sentou ao seu lado novamente. – Mas o outro rapaz… vocês se conhecem?


– Um pouco. – Deu de ombros, colocando os pés em uma mesinha próxima. – Ele não é muito fã do Mortimer. Ou de mim.


– Oh, é verdade! Você precisa ligar para o Mortimer. – Ela recordou-se, levantando para procurar pelo telefone, mas Oliver a puxou de volta para o sofá.


– Só tem três dias que eu voltei. – Protestou. Três dias esperando Mickey resolver o enigma deixado por seu pai, mas ele não podia dizer isso. – Preciso descansar.


– Ele é o seu amigo desde sempre! – Lilian incentivou, empurrando-o. – E é um rapaz exemplar atualmente.


#SalvePerth. Oliver tinha ouvido falar daquilo (assim como tinha pesquisado rapidamente sobre hashtags). Era admirável, mas insuficiente. Além disso, ninguém parecia saber exatamente qual o problema de Perth. Nem ele, nem mesmo Moore. Ninguém além de seu pai.


Era estranho que Mortimer participasse daquilo tão ativamente. O amigo nunca tinha concorrido à presidência de grêmios estudantis ou liderança de classes. Não gostava muito de expôr a própria opinião ou de escolher lados. A ideia de que ele tinha criado um movimento e era o próprio garoto-propaganda soava estranha. Mais estranho era aquilo ter dado certo.


– Acho que a senhora está certa. Eu deveria lig… - O telefone tocou. Ele pulou do sofá para apanhá-lo. Era Mickey.


Agra, Índia
Dezembro de 2008


Last Christmas, I gave you my heart. – Oliver cantarolou, pulando sobre a cabeça de um dos marginais. Estava ficando bom nos pulos. – But the very next day, you gave it away.


Ele tinha aprendido a lidar com a desvantagem numérica suficientemente bem, mas odiava as armas de fogo. Quando elas disparavam, o barulho o desorientava por uma fração de segundo. Em uma luta, aquilo era o diferencial entre a vitória e a derrota. Os batimentos dos seus cinco oponentes estavam tão acelerados, que ele tinha dificuldade em diferenciá-los.


Pensar na canção de natal ajudava a ignorar os sentidos que só faziam atrapalhar na luta. Um erro e aquilo acabava ali. Um australiano morto em um beco no inverno indiano. “Obrigado, globalização”, pensou, ignorando o projétil que passava ao lado esquerdo de sua cabeça, trazendo consigo a resistência do ar e o ruído.


– Desculpa, eu não conheço nenhuma canção indiana. – Comentou, virando o pé no rosto de um homem que tentava surpreendê-lo por trás. – Nem sou fã do Bollywood!


– Ele não cala a boca? – Rosnou um dos homens em hindi, sendo traduzido pelo cristal que Oliver possuía em seu bolso.


– Você não gosta das músicas de natal? Eu tenho todo o tipo de clássico aqui, de baladas até… Opa! – Ele encolheu a barriga para não ser atingido por uma faca afiada, logo em seguida segurando a mão do marginal e empurrando-o contra a parede suja de tijolos. – Sem baladas então? Podemos pular para a parte onde você me diz onde eu encontro o Kabir. – Dois homens tentaram se aproximar por trás novamente, e ele se abaixou, reaparecendo atrás deles antes de nocauteá-los. – Tenta a sorte, Raj. –Ofereceu para o homem restante, além do que estava na parede.


– Kabir saiu do país. Acho que a minha presença assustou ele um pouco mais do que a sua. – Ele conhecia aquela voz, mas se virou para ter certeza de que não tinha se enganado. – Sem ofensas, você parece estar fazendo muito bem esse papel de valentão.


– Jennifer. – Ele saudou, de má vontade. – Achei que você tivesse dito…


– Isso foi há seis meses. – Jennifer Moore o lembrou, com um pequeno sorriso. – Agora, nossa organização quer um favor seu.


– E o que acontece se eu disser… - Ele não pôde terminar a frase, pois naquele momento a parede suja de tijolos se quebrou em pequenos pedaços, espalhando poeira e, obviamente, tijolos. Do outro lado do buraco feito, uma garota loira em pose de combate surgia, totalmente alerta, se voltando para ele e então para Jennifer:


– É nesse cara que eu preciso bater?!


O sorriso no rosto de Jennifer dizia tudo. Oliver respirou fundo, ela o conhecia bem demais.


– O que você precisa que eu faça? – Perguntou. Qualquer coisa, qualquer coisa, era melhor do que acabar como aquela parede de tijolos. Em pedaços tristes de argila.


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