Heróis de Cristal - Cidade em Chamas escrita por Ricardo Oliveira


Capítulo 5
Floresta




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Oliver abriu o notebook, que surpreendentemente tinha o desenho de uma árvore no fundo. O símbolo da companhia de tecnologia onde o seu pai costumava trabalhar. O “costumava” ainda doía. De qualquer forma, ele sentou-se no chão, com o computador no colo e inseriu o pendrive.


Escolhendo a opção de reproduzir os arquivos de vídeo, ele clicou no arquivo que o aparelho USB continha, modificando levemente o volume para o mais baixo possível. O som alto podia atrair os seguranças, como tinha feito da última vez em que ele estivera lá. A iluminação da tela do computador se unia ao brilho dos cristais que o cercavam, presos em seus túmulos com os antigos portadores, criando um clima meio sombrio, mesmo para um cemitério. Para ele, era quase familiar.


Seu pai apareceu na tela, filmado por uma câmera de mão Sony dos anos 90. Oliver lembrava daquela câmera, e não precisava vê-la para saber que era o que o pai estava usando. Ele também estava mais novo e muito menos cansado do que quando Oliver o vira pela última vez.


– Certo, acho que está funcionando. – Seu pai comentou no vídeo mais para si mesmo do que para o espectador, ajeitando a câmera antes de começar. – Olá, Oliver. – Ele suspirou, olhando para a tela. – Eu espero que você nunca precise ver isso. Que supere o que aconteceu hoje e aprenda a suprimir seja lá qual habilidade aquele cristal te deu. Tantos lugares para ir, Oliver, você precisava entrar naquele cemitério?


Vicent tomou um tempo com as mãos no rosto, pensativo. Oliver entendia aquela dúvida, embora nunca tivesse passado por aquilo. Mas, se fosse com ele, o que diria para o filho quando ele ganhasse poderes virtualmente incontroláveis?


– É a maldição da família, eu suponho. Você e eu, filho, incontroláveis. Irresponsáveis. Eu queria te explicar tudo, estar com você agora e te guiar. Deus, você parece tão… frágil. Mas não posso. Preciso acreditar que você vai se livrar disso. Por favor, esqueça.


O vídeo mudou. Alguns anos tinham se passado, a qualidade do vídeo e do som eram melhores e seu pai parecia decididamente mais velho e cansado. Era 2003, o ano da crise do petróleo, as coisas nunca tinham sido tão difíceis.


– Campeonato Interescolar de Boxe! – Ele exibiu, orgulhoso, o troféu que Oliver lembrava de ter recebido. Seus sentidos o faziam ser imbatível entre as crianças de sua idade. – Não sei dizer se foi trapaça, um novo tipo de dopping, talvez. Queria que você continuasse usando suas habilidades só para isso, mas Jennifer Moore veio falar comigo hoje, ela descobriu. Quanto tempo posso mantê-lo comigo?


Oliver enxergava a tristeza nos olhos do pai. Se soubesse antes, teria ficado? Preferiu não se perguntar aquilo. Não podia mudar nada do que tinha acontecido. Mas quase torcia para que Moore estivesse certa e alguém estivesse envolvido com a morte de seu pai. Poderia, pelo menos, fazer alguém pagar. O vídeo mudou novamente:


– Então, você partiu, como eu temia. Eu queria ter lhe falado a verdade antes. Não sei se você vai voltar algum dia, mas espero que não. Torço que você fique longe daqui, Oliver. Perth sempre teve segredos sombrios e, ultimamente, eles parecem estar voltando. Não foi fácil, sabe, convencer a sua mãe a deixá-lo ir. Imagino que ela sentirá a sua falta mais do que tudo, mas Lilian também não pode saber. Eu a farei deixá-lo em paz, ainda que minta mais um pouco. – Ele tossiu e suspirou, seu semblante estava entristecido. – É isso que os segredos fazem conosco.


O vídeo mudou pela última vez. Seu pai estava realmente velho e com aspecto doentio, ainda assim, por trás das rugas, ele sorria de forma encorajadora:


– Parece… que não vamos mesmo nos ver novamente. Entretanto, não posso deixar os meus segredos morrerem comigo. Jennifer e sua… - Ele hesitou e tossiu. Ninguém falava o nome de Pandora. - organização devem lhe mostrar isso. Faça o que fizer, não volte para Perth. Viva seguro. O mal já vive aqui, entranhado nessa cidade. Essa é a cidade deles, não a nossa. Não mais.


Oliver percebeu porquê Wally só lhe entregou o pendrive em Perth. Não que o recado de seu pai fosse mantê-lo longe da cidade, mas, ainda assim, as ordens de Pandora eram o contrário das dele. Wally estava certo, nem o Pensador podia fugir de tudo.


– Eu não sei mais em quem posso confiar. Se eu suspeito que alguém fez isso comigo? Tenho mil suspeitas diferentes. Elas não mudam a verdade: eu seria retirado de cena qualquer hora. Não tente descobrir quem fez isso comigo, nem Jennifer conseguiu e ela tem tentado muito. Eles estão por aí, em todos os lugares. Expostos e escondidos ao mesmo tempo.


Vicent tossiu mais um pouco e seu nariz começou a sangrar. Ele limpou o sangue antes de continuar:


– Oliver. Filho. Eu quero que você saiba que eu o amo e, apesar dos meus erros, espero que você me perdoe por tudo. E imagino que essa seja a minha última chance de dizer isso para você, ainda que por trás de uma tela. – Ele estendeu a mão para a câmera, imaginando o filho do outro lado. – A cidade dirá que fui um bom homem, mas você e eu saberemos a verdade. Eu compactuei com o mal daqui, deixei ele crescer. Não posso mudar isso, nem quero que você mude. Só viva, Oliver. Viva bem.


O vídeo acabou. Abraçado pelos únicos brilhos familiares que conhecia, Oliver sucumbiu às lágrimas. Rodou o vídeo novamente mais umas duas vezes. Seu lado racional tentava argumentar que ele estava procurando por mensagens escondidas ou códigos secretos, mas a verdade era que, mesmo com sua memória fotográfica, às vezes, ele precisava rever e não revisitar.


Ele fechou o notebook e se levantou, deixando-o no chão. Definitivamente, seu cristal um dia tinha sido um daqueles ao redor. No dia em que o conseguira, um dos caixões tinha sido violado por um ladrão qualquer. O cristal, libertado, o reconhecera como um Young e, em suas palavras, o escolhera. Pela primeira vez, não em dúvida ou lamento, mas em raiva, ele perguntava “por que?”. Decidiu que seu lado racional funcionaria melhor ali.


– Não faz sentido. – Oliver sussurrou consigo. Sentia que estava deixando algo passar. – Por que me mostrar isso? Eu não preciso de motivação, eles sabem disso. Então, por que? O que você está escondendo, pai? Pense. Se eu sou Alice, onde está a toca do coelho?


Ele olhou ao redor. Gerações de cristais. Isso fazia um pouco de sentido. “Mas de onde todos eles vieram? Onde se encontra esses cristais? Por que aquele bandido não foi escolhido, se encontrou o cristal antes de mim?”, ele repetiu as perguntas que tinha feito a si mesmo durante os anos que se passavam. Talvez dessa vez, fosse capaz de encontrar uma resposta.


– Pense. – Ele deu leves tapas na cabeça, esperando encontrar alguma resposta perdida lá. – Um segredo, grande como, grande como… uma árvore. – Ele estalou os dedos. – Exposta e escondida. Uma floresta. – Correu para o computador, erguendo-o em sua frente, com o símbolo da árvore virado para si. – Um segredo dentro de um segredo. Você quer me dizer mais alguma coisa, pai? A verdade? Como posso encontrá-la? Eu vejo a floresta, mas não a sua árvore. Mostre-me.


Tudo permaneceu igual. Ele tentou falar algumas das palavras-chave para o seu cristal: “Árvore”, “Floresta”, “Vicent”, “Perth”. Tudo continuava igual. Nenhuma mensagem oculta que Oliver Young fosse capaz de descobrir jazia ali, contudo, se alguém podia, ele sabia quem era.


Ele bocejou. As horas sem dormir faziam o seu papel, mas ele percebeu subitamente que estava em Perth. Ainda que Keiko tivesse lhe dado um sermão sobre lares, Oliver sabia que aquele era o seu. E sentia como se nunca fosse abandoná-lo novamente. Pela primeira vez, tinha uma ideia do que fazer.


Quando saiu do mausoléu, tomando o cuidado de ouvir, ainda do lado de dentro, os passos do lado de fora, se esgueirou pelas árvores do cemitério até um lado vazio da avenida John Curtin e saiu caminhando com a mochila e seus objetos nas costas. Estava amanhecendo e já era possível ouvir carros e bicicletas por aí.


Olhou para cima, visualizando um dos maiores arranha-céus de Perth na alvorada: O prédio da NexTree. Um guia turístico experiente seria capaz de gastar horas falando sobre a NexTree e sua história. Fundada como uma companhia de mineração por descendentes de povos aborígenes e colonos ingleses sob o nome de “Cisne Negro”, ainda em 1917, a instituição cresceu junto com a cidade.


Com o fim da corrida do ouro, os membros fundadores da Cisne Negro resolveram remodelá-la, desde o nome até a atitude, sendo uma das primeiras empresas do centro comercial de Perth. O novo prédio, com cerca do cinquenta andares, carregava na fachada o símbolo da árvore verde gigante em homenagem aos aborígenes fundadores. E, algo que os guias não diriam, era um golpe de marketing genial em uma época de sustentabilidade e pensamento ecológico.


Além disso, algo que os guias não saberiam a menos que tivessem passado a infância explorando o prédio, a NexTree tinha uma entrada ao fundo do Kings Park. Ele não sabia se era uma referência arquitetônica aos aborígenes que viviam ali antes dos colonos, mas era o seu jeito favorito de entrar no prédio: sem ser visto.


O lugar tinha sido reformado desde a última visita dele. Com certeza a tecnologia tinha evoluído desde então, pois as salas estavam definitivamente mais bonitas. Um grande retrato de seu pai ocupava boa parte de uma das paredes do saguão de entrada, seguido de assinaturas e textos de homenagem. Oliver seguiu direto para as escadas, sem passar pelo saguão e subiu, pacientemente, os quarenta e cinco andares necessários, até o setor de P&D.


Para uma criança, a seção de ciências aplicadas parecia a Disney futurista, cheia de brinquedos revolucionários e pouco testados que podiam matar/ferir gravemente o usuário mais desavisado. O pior que tinha lhe acontecido ali fora perder um par de sobrancelhas, e ele tinha achado o máximo.


Praticamente, se podia ser desenvolvido estava sendo desenvolvido ali. Experimentos com energia nuclear, térmica, dinâmica, nanotecnologia, mecânica, eletrônica e alguns avanços no campo da criptografia eram realizados pelo exército de (agora) um homem só. Como Oliver imaginou, encontraria Mickey ali, sempre trabalhando.


– Mickey Hernandez. – Ele falou, alto o suficiente para chamar a atenção do homem, que trabalhava em alguma coisa que Oliver provavelmente não entenderia.


O cientista boquiabriu-se ao ver o amigo, parado ali em pé, cercado por invenções mortais ao lado de onde o pai costumava trabalhar.


– Oliver Young. – Mickey não pôde conter o sorriso, se levantando na direção do amigo e abraçando-o. – Seu pai… Eu…


– Eu sei. – Oliver cortou. Sabia quantos lamentos e condolências receberia, não era disso que precisava. – Acho que sou dono de 10% da NexTree agora.


– Oito. – O cientista corrigiu, entendendo que o amigo não queria falar sobre aquilo. – Seu pai vendeu algumas ações há algum tempo.


Mickey podia ter lá os seus trinta e tantos anos, mas eles se entendiam bem o suficiente. Ele era o único a saber sobre o segredo de Oliver, ajudando-o inclusive a tentar controlar os seus sentidos com tecnologia. Filtros de ouvido, lentes de contato especiais, soluções neutras para o olfato, nada tinha faltado. O cientista não costumava conhecer limites.


– Então, o que é isso? – Oliver perguntou, despretensiosamente, apontando para o objeto de estudo do amigo antes de sua chegada.


– Gás ionizado com baixa carga espacial resultante. – Explicou, satisfeito consigo mesmo, ganhando apenas uma franzida de sobrancelha como resposta. – Plasma, Oliver. Plasma.


– Ah. Plasma, certo. Eu sabia. – E então, ele riu. Era bom estar em casa. Oito por centro de casa, pelo menos.


– Quando você voltou?


– Hoje. Mais ou menos. – Ele comentou, percebendo o quanto estava cansado. – Ouça, eu preciso de um favor. – E retirou o computador com o pendrive inserido da mochila.


– Ok, claro. – Mickey respondeu em um tom irônico que só ele sabia fazer, especialmente quando explicava sobre dínamos para leigos. Oliver normalmente fazia o papel do leigo. – Você desaparece durante cinco anos…


– Sete. – Oliver corrigiu, olhando para o lado.


– E a primeira coisa que faz é me pedir um favor! – Reclamou, balançando as mãos de forma indignada, mais brincalhão do que sério. – Se eu não tivesse gastado boa parte da minha vida te fazendo favores, teria lançado um celular de tela sensível ao toque antes do Steve Jobs.


– Quem é Steve Jobs? – Ele perguntou, confuso.


Mickey balançou a cabeça, em reprovação: - Você estava em coma? O que você aprendeu lá fora? A descascar cebolas?


Ele girou uma espada invisível em resposta, fazendo um som de “vush” com a boca: - Sei usar uma espada. – E depositou o computador na mesa entupida de Mickey. – Tem um vídeo aí dentro. É do meu pai. Quero que você procure por qualquer mensagem escondida, qualquer uma. Não veja… Só… Só me chame.


O amigo assentiu, com uma expressão séria, segurando o notebook como se fosse o próprio espírito de Vicent Young. Oliver suspirou, era hora de ir para casa.


– Oliver. – Mickey chamou, quando ele estava na porta prestes a sair. – Você descobriu algo sobre os cristais?


– Não valem a pena. – Ele respondeu, lembrando das gerações de neoseres mortos da sua família. – Simplesmente, não valem.


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