As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 8
Cachos dourados




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“Nos dias de sol me deixam treinar, apesar de suas armaduras e espadas vejo o medo em seus olhos. Porque não há aço que me pare.”


Achara que a neve abafaria sua queda de alguma forma. Conseguiu virar-se no pequeno trajeto contra o chão, o que significava que havia se livrado de uma lesão mais grave nas costas. Infelizmente isto também significou uma batida com o rosto contra a neve, acompanhada pela dor generalizada veio um suave crack. Levou os dedos ao rosto e encontrou sangue que escorria do seu nariz aos montes, a elevação na base deste lhe deu a confirmação.


–Mefdah. – disse, limpando o sangue com a manga de suas vestes. Por um momento quase riu do absurdo que tudo aquilo era. Jogou a cabeça para trás ignorando o calor vindo da construção atrás de si, as labaredas esticavam suas longas línguas para tocarem o seu manto, mas a garota não se importava. A única coisa que importava a havia jogado por uma janela segundos antes e agora todo o andar de baixo da Rosa d’Ouro estava em chamas, impossibilitando que entrasse sem virar algo muito próximo a um torresmo assado. O avô teria que pular também.

–Hilbert! Hilbert! – gritou, mas ninguém apareceu na janela. A frustração e o desespero a tomaram e se o velho não fosse páreo para aquele estranho? O nariz pulsava de um modo que a deixou completamente irritada. Estava prestes a ignorar o fogo e subir até o quarto de qualquer modo, quando um pensamento terrível a atingiu. Flecha. Se todas as construções ao redor começavam a queimar, o que manteria o estábulo a salvo?

Quando deu por si estava correndo, o que fez com que o sangue descesse em quantidade ainda maior, mas ela não diminuiu o passo. Não, não, não. Por favor, não. Sentia lágrimas se formarem antes mesmo dos olhos pousarem sobre o pequeno estábulo. Quando deu a volta na hospedaria ele finalmente surgiu diante dela, ou a sombra do que um dia fora. As chamas estavam consumindo toda a construção de madeira, o que não deveria surpreendê-la. Em grandes incêndios a primeira coisa que era feita nos vilarejos era retirar os animais dos estábulos que com toda a madeira e feno seco costumavam alimentar o fogo numa rapidez tremenda. Por um momento sentiu os joelhos cederem, no seguinte já estava ajoelhada na neve tentando achar a própria voz para gritar. Foi então que ouviu o relincho desesperado pela primeira vez. O barulho fez seu estômago se revirar e devolveu a energia que precisava. Arrancou o manto de seus ombros e mergulhou-o na água da fonte que os cavalos usavam para matar sua sede. Sentiu o tecido ficar cada vez mais pesado enquanto a água entranhava suas brechas. Jogou-o sobre si e caminhou em direção ao estábulo, sentindo o coração falhar quando se deparou com o barulho que o fogo fazia. Parece um monstro raivoso. A água pingava sobre os seus ombros e puxou o manto encharcado para proteger também o rosto. Respirou fundo e entrou.

Nos primeiros passos que deu sentiu que a água sobre si evaporava mais rápido do que pensara. Aquilo apenas a fez apressar os passos, guiada pelos relinchos de sua égua. O estábulo era pequeno e por isso não demorou a encontrá-la. O animal estava completamente fora de si, os olhos reviram nas órbitas e as patas inquietas não sabiam para onde ir. Suor descia pelos seus flancos e Lyvlin soube que a alcançara no momento certo, a sua baia ainda não fora tocada pelas chamas por ser a última do pequeno corredor, mas também isto mudaria dentro de instantes. Andou em sua direção e tocou o seu pescoço musculoso com dedos trêmulos, tentou lhe passar a calma que precisava para passar pelo fogo que bloqueava a sua saída, mas a égua não escutava. Suas narinas se expandiam e tremiam e logo a garota entendeu o motivo.

Flecha sentia o cheiro da morte. Lyvlin estivera tão focada nela que não prestara atenção nas outras baias, mas agora uma rápida olhadela para o compartimento ao lado lhe revelou uma grande massa de carne queimada que há poucos minutos antes fora Darius. Sentiu o jantar ameaçar voltar pela sua garganta e forçou-se a se concentrar. Nada mais poderia fazer pelo orgulhoso garanhão, mas se perdesse a cabeça agora não conseguiria salvar Flecha, nem a si mesma. Murmurou palavras calmas para a égua e tirou o manto e o colocou sobre suas costas. Guiou-a para fora da baia segurando firmemente sua crina, o que não foi difícil pelo espaço ainda estar intocado pelo fogo. Quando estavam no meio do corredor, porém, encontraram o caminho bloqueado por uma muralha ardente. Lyvlin sentiu o rosto queimar quando estavam ainda a dois metros de distância. Forçou-se a pensar em uma saída. Se andasse para trás encontraria uma janela no final do corredor, em frente à baia que Flecha ocupava. Mas era claro que apenas ela poderia sair por ali e teria que deixar Flecha para trás, coisa que não estava disposta a fazer. Acariciou o pescoço do animal, mas Flecha tremia e todo o seu corpo estava coberto por gotículas de suor. A perderia logo e o pensamento fechava sua garganta numa intensidade maior que a fumaça que a forçava a tossir desde que pôs os pés no estábulo incendiado. Com um estrondo uma das vigas que sustentavam o telhado de palha caiu a poucos passos de distância. O pedaço de madeira estava consumido pelo fogo e bloqueava a saída. Como se uma muralha de fogo já não fosse ruim o suficiente. A cada momento que perdia em pé ponderando sobre o que faria o fogo avançava sobre a madeira que as cercava e soube que teria que tomar uma decisão se não queria morrer ali mesmo.

– Não vamos morrer aqui. – falou puxando-se para o alto das costas de Flecha. Enterrou as mãos na crina do animal sentindo seu nervosismo. Deveria estar apavorada também, mas uma estranha calmaria derramava-se sobre cada músculo de seu corpo e junto com ela a convicção de que nada as atingiria. – O fogo não nos tocará.

Esporeou a égua para frente e por um segundo achou que o medo a impediria de obedecer. No lugar disso viu o fogo chegar cada vez mais perto. Você não nos terá pensou, ouvindo os cascos de Flecha retumbar contra o chão. Soltou a crina e empurrou os braços para os lados. Por um segundo foi como se o fogo a abraçasse... Logo depois como se fosse ela quem abraçasse as chamas. E então uma força ao seu redor se expandiu como um intenso vendaval e as labaredas foram jogadas para trás. A garota se desequilibrou e teve que se agarrar com todas as suas forças à crina de Flecha que já pousava do outro lado com segurança. Afastaram-se o suficiente do estábulo para verem que ficara reduzido a um esqueleto carbonizado, as pilastras de madeira que o sustentavam estavam enegrecidas e ameaçavam ceder a qualquer momento. Mas o que fez o coração da garota bater descontrolado não foi a imagem do que tinham escapado, mas a fina camada de neve e gelo que estava depositada sobre toda a madeira queimada. Todo o fogo havia se extinguido instantaneamente.. Não fui eu, foi um vento forte que o atingiu no momento em que saltamos. De algum modo a explicação soava menos plausível que a ideia de ter sido ela a fonte e isso a assustou mais do que estar rodeada pelas chamas. Tossiu mais algumas vezes para expulsar toda a fumaça de seus pulmões e decidiu que pensaria sobre aquilo depois, não havia tempo a perder. Esporeou Flecha e prendeu bem suas pernas ao longo dos flancos do animal. Se quisesse contar aquilo para Gilbert teria que primeiro tirá-lo daquele quarto.

Conseguia sentir o calor das chamas mesmo estando a três metros da hospedaria que queimava. As peles que vestia grudavam inconfortavelmente contra a sua pele, molhadas de suor e água. Saltou da montaria e por um momento pensou que desfaleceria, as pernas crianças teimosas obstinadas a não mantê-la de pé. O gosto férreo em sua boca aumentou e usou a manga de seu casaco para limpar o sangue que insistia em fluir de seu nariz, os olhos violeta fixos na janela da qual fora jogada momentos antes. Pensou em gritar, tentou mover os braços para apagar o fogo. Se funcionara uma vez poderia acontecer novamente. As labaredas pareciam rir de seu esforço e esticavam seus braços ardentes para alcançá-la. Lyvlin encarou o fogo e soube que Gilbert não tinha chances se ainda permanecia lá em cima. Varreu o chão a procura de alguma pista que indicava que o avô tivesse pulado, mas naquele momento uma figura no fim da rua chamou a sua atenção.

– Gilbert? – quando a pessoa começou a se mover soube que não era. E quando uma lâmina delgada surgiu em sua mão soube que era hora de correr.

Julgava ter a vantagem e que estaria em segurança uma vez que estivesse montada, mas ao cravar seus dedos na crina de Flecha olhou para trás e viu que o oponente percorrera trinta passadas. Pelos deuses, não. Esporeou o animal adiante e manteve o olhar por sobre o ombro, coisa que poderia facilmente fazer com que caísse ou atropelasse alguém. Mas confiava em Flecha e sabia que a égua sentia que o que as perseguia não era uma pessoa comum. Se é que se trata de uma pessoa, pensou vendo a figura aproximar-se cada vez mais como se suas botas atingissem o ar e não a neve. Virou-se para frente no momento em que alcançaram uma das praças da cidade e desacelerou em meio ao caos.

Pessoas correriam para todos os lados, esbarrando uma nas outras enquanto baldes tão cheios de água que transbordavam eram passados de mão em mão. Mas isso era apenas parte do que acontecia, conseguira ouvir a confusão muito antes de vê-la. Homens que carregavam tochas se misturavam a população e a cada momento mais deles surgiam das vielas. A garota levou um tempo para ver que além de tochas alguns deles carregavam enxadas, machados e foices e investiam contra quem estivesse próximo o bastante. Jogou a cabeça para trás em busca de seu perseguidor, mas nada viu. Convenceu-se de que a multidão o despistara. Sua montaria dançava sobre os cascos nervosamente e ameaçou disparar quando um homem cortou o seu caminho e enterrou uma faca no pescoço de um outro que estava caído no chão. O gorgolejar do moribundo enquanto sangue saía de sua boca fez com que sentisse que assistia a alguma encenação particularmente medonha. Os músculos não pareciam saber o que fazer em seguida, apenas segurava-se na crina de Flecha porque sentia que poderia cair a qualquer momento. E se isto acontecesse estaria perdida. Ouviu um grito ao longe e um homem investindo contra ela, mas a menos de três metros de distância uma flecha perfurou o seu olho fazendo com que caísse na neve vermelha e trazendo-a de volta a realidade.

– O que está acontecendo aqui? – gritou para um homem que passava. O sujeito a olhou e seus olhos se encheram de medo quando viu a espada presa a sua cintura e o sangue que cobria seus trajes.

– São os conservadores senhora. – disse, fechando a mão sobre um pedaço de madeira que segurava. Lyvlin soube de imediato que nunca segurara uma arma na vida. – Nos atacam usando a noite como disfarce, tocam fogo em nossos lares e estão matando as nossas crianças.

– Nada de nirnailas?

– Senhora? – a garota sentiu as bochechas corarem.

Desprendeu a faca de caça e a jogou para o homem.

– Vai precisar mais do que madeira para defender sua família. – falou quando o homem se abaixou para retirar a lâmina da neve.

Não esperou por seu agradecimento, se demorasse mais naquela praça a criatura traria terror a todas as pessoas, quer que seguissem deuses antigos ou novos. Fez Flecha virar-se e avançar para o outro lado do tumulto. Um homem veio correndo em sua direção brandindo um machado e a garota esticou a mão para desembainhar Arcturus em um reflexo rápido, mas destreinado. Quase deixou a espada cair e no último momento conseguiu erguê-la para aparar o golpe. O homem que brandia o machado era franzino e sem habilidade alguma e ainda assim seu braço tremeu com o esforço. Girou a lâmina e estava pronta para desferir um golpe para baixo que arrancaria a cabeça do seu oponente quando no último instante o pavor do homem a congelou. Ou talvez fosse o seu próprio. Esporeou Flecha e ergueu a lâmina negra acima da cabeça para que todos a vissem como aviso. Ninguém tentou detê-la desta vez. Deixou o caos e o barulho cada vez mais para trás à medida que se afastava da praça. O fogo não atingira aquela parte de Perth e as pessoas tinham deixado as suas casas para apagar as chamas antes que o fizesse. Quando olhava para trás para saber se ainda era perseguida pôde ver o clarão do fogo contra o céu escuro, o barulho abafado dos gritos era a única coisa que não deixava o seu lado. Pela primeira vez a ideia de Gilbert ter sido morto no incêndio se assentou em sua mente e se espalhou por cada pedaço de seu corpo como um veneno. De repente sentiu os membros pesados e parecia ser incapaz de formular um plano para o que faria a seguir. Passou a mão pelo pescoço suado da égua e estava a ponto de proferir palavras gentis para acamá-la quando foi violentamente jogada das costas do animal.

O ar deixou seus pulmões no momento em que bateu contra o chão e teve dificuldades para erguer a cabeça. O nirnaila, se é que se tratava mesmo de um deles, estava acocorado sobre o dorso de Flecha observando-a com atenção. A garota conseguia ver apenas o capuz que cobria sua cabeça e escondia o rosto, a capa puída ondulando com o vento.

– Saia de cima do meu cavalo! – rosnou, tentando parecer mais ameaçadora do que se sentia.

– Encontre a criança com cabelos flamejantes, ela empunha uma espada cuja lâmina é negra como a morte e cuja mordida arde como o próprio fogo. – a voz rouca parecia não ter sido usada há muito tempo e era fria como o gelo. Lyvlin apoiou-se sobre os cotovelos, esperando o momento para agir. – Aqui estou e aqui está a criança, devo matá-la agora ou deixá-la para Neera?

– Se eu fosse você eu esperaria Neera. – disse, esperando ganhar tempo. Mal terminara as palavras e sentiu o frio do aço contra a garganta, o nirnaila a imobilizava com o seu peso e empunhava a adaga com firmeza abaixo de seu queixo.

– Não dirijas a palavra a mim! – sibilou – Olhe bem ao redor porque é aqui que darás seus últimos suspiros e é aqui que a nossa vingança começará!

– Mas eu não fiz nada, eu juro. – falou a garota tateando discretamente em busca de Arcturus, se conseguisse estender o braço torcido um pouco mais para baixo... – Para ser sincera a única coisa que anda acontecendo comigo são criaturas tentando dar fim a minha vida e algumas já chegaram muito perto, mas não me entenda mal também está fazendo um ótimo trabalho. Neera ficaria orgulhosa.

No momento em que sentiu a lâmina cortar sua pele ergueu a espada e o atingiu. O nirnaila se afastou silvando como um gato enfurecido. Flecha havia disparado na direção oposta ao que vieram, deixando para a garota apenas a opção de correr o mais rápido que podia. Não esperou para ver o estrago que fizera. Enquanto corria soube que a respiração pesada a trairia, um filete de sangue escorria pelo pescoço. Seus pulmões ardiam e sentia Arcturus ficar pesada em sua mão quando trombou contra alguém em cheio.

– Eu sinto muito! – apressou-se em dizer enquanto o estranho apanhava do chão alguns pergaminhos. Quando se levantou a garota pôde ver que era um rapaz.

– Tudo bem. – disse sorrindo – Suponho que não seja a melhor hora para passeios noturnos de qualquer forma. Está com um aspecto terrível, se me permite dizer. Trago comigo alguns bálsamos que poderiam aliviar a dor e limpar os ferimentos seria algo bom a se fazer também o mais rápido possível.

Seus cabelos eram cacheados e de um tom como os campos de trigo maduro antes da colheita. Sob a luz da lanterna que jazia na neve sua tez era amendoada e o rosto fino quase delicado demais, preso às costas trazia um arco e uma aljava. Não provém daqui, pensou com curiosidade. Jamais conhecera alguém que não tivesse seu lar nas terras frias de Faolmagh. Aquele rapaz deveria ser natural das terras arenosas e ricas de Rattra. Por mais que quisesse perguntar, não sabia quanto tempo teria antes do nirnaila alcançá-la.

– Sei que pode parecer estranho. – falou a garota olhando por sobre o ombro – Mas deveria sair daqui, não é seguro.

– A cidade como um todo não parece muito segura hoje. – retrucou com um semblante calmo, abaixando-se para erguer a caixa de vidro luminosa. Falava como se estivesse concentrado em tudo, menos na garota a sua frente. Não conhecia a pele que forrava o seu longo casaco, mas era negra e quando os seus corpos haviam se chocado percebera o toque macio e sedoso típicos de um material bem trabalhado. E caro.

– Não, o que quero dizer é que essa área aqui está muito perigosa, agora, neste momento. – mordeu os lábios, se não caísse nas mãos do nirnaila ainda poderia muito bem ser atacado por bandidos atrás de uma presa fácil que trouxesse lucro – Apenas apague esta chama e se esconda em algum lugar, está bem? Não fique por aqui sozinho.

O rapaz a olhou como se fosse louca e ela recomeçou a correr ziguezagueando entre becos e ruas, tomando vielas estreitas tentando criar a maior distância entre si e o perseguidor que fosse possível. Talvez tivesse desistido, talvez o ferimento o tivesse matado, se é que nirnailas morriam. E ainda assim ouvia o som de passos esmagando a neve atrás de si, passos que não eram dela e quando se virava não via ninguém. Chegou a um beco sem saída que parecia servir como depósito de lixo para os bordéis e hospedarias cujas portas de trás abriam-se nele. Era mais largo que os outros becos pelos quais passara e estava cheio de caixas empilhadas, se eram de lixo ou comida já não importava. Escondeu-se atrás de uma delas e manteve o olhar fixo na entrada do beco. Se o pegasse de surpresa talvez tivesse alguma chance.

Os dedos se entrelaçavam ao punho de Arcturus e pela primeira vez se deu conta de como estava frio. Os passos se aproximavam e ficavam cada vez mais altos, Lyvlin tentava controlar sua respiração. Nada, não havia ninguém. Àquela altura o nirnaila já deveria estar ao seu lado pelo som que suas pegadas emitiam. E subitamente tudo ficou silencioso. Merda praguejou quando se deu conta o que estava acontecendo. Ergueu-se de um salto e tentou correr, mas era tarde demais. A criatura pousou ao seu lado e com dois passos a alcançou, enterrou uma mão em seus cabelos e a jogou contra a parede de uma casa. Tentou se pôr de pé, Arcturus em riste, mas o oponente apenas segurou o seu braço e o torceu até que gemesse de dor.

– Foi inteligente ao andar sobre os telhados. – murmurou sentindo o gosto férreo de sangue adentrar em sua boca – Poderia me ensinar algum dia?

– Vocês falam demais, até na hora de enfrentar a morte. Não lhe darei tempo para pensar em algum truque desta vez. – disse o nirnaila torcendo o seu braço até que soltasse Arcturus, chutou a espada para o lado e segurou o rosto da garota com ambas as mãos, enterrando as unhas em sua pele. Lyvlin gritou, esperneou e tentou mordê-lo, mas estava presa.

– Agora vejamos se Neera ficará decepcionada. – murmurou quando as garras se enterraram em sua carne. A dor fez a garota urrar uma última vez.

Então o corpo do nirnaila foi se inclinando cada vez mais para perto dela, uma, duas, três vezes. Não entendeu o que estava acontecendo até baixar o olhar e ver as três flechas atravessando a barriga da criatura. Empurrou-a para trás e viu um homem na entrada do beco. À luz da lua seu arco brilhava num tom de puro marfim.

– Consegue andar? – gritou e Lyvlin reconheceu o rapaz no qual esbarrara momentos antes. Tentou anuir, mas a dor lacerante a fez tropeçar. Cada centímetro do seu corpo parecia arder.

O jovem correu até ela e a apoiou com um braço, tendo no outro uma lâmina apontada para o nirnaila que parecia agonizar.

– Não eram flechas comuns nirnaila, se é nisso que está pensando. – disse com uma voz na qual não havia sombra da simpatia que expressara antes – São feitas com aço do verão e são tão danosas para vocês como aço comum é para nós.

– Não disseram que estariam aqui. – falou o nirnaila com uma mão pousada sobre o ferimento – Os homens do sul não deveriam estar aqui, foi assegurado, não...

– O que acontece – disse numa voz que se sobrepunha ao da criatura – é que estamos aqui e que nenhum mal será causado por você.

– Há outros. Basta me matar e saberão onde seu irmão caiu, estarão aqui antes que você pegue a criança e dê dez passos.

– Não precisa olhar. – falou o rapaz e Lyvlin não percebeu de imediato de que se dirigia a ela – Não é algo bonito de se ver.

Não teve tempo de falar antes de acontecer. Com um movimento rápido uma lâmina surgiu na mão do jovem e foi atirada contra o peito do nirnaila, quando o atingiu a criatura não teve tempo de reagir antes que o rapaz se jogasse contra ela e agarrasse o cabo da faca, girando-a e enterrando-a cada vez mais. A expressão do nirnaila mudou. Pareceu estar recheado de dor de sofrimento, seus braços envolveram os ombros do rapaz e se enterraram em suas costas, como se o abraçasse para permanecer de pé.

– Por que põe fim à minha vida Raoul Canderson? Eu, que já me esqueci de como voar... – a cabeça do nirnaila estava apoiada nos ombros de Raoul e pela primeira vez Lyvlin pôde ver seu rosto. Poderia ser o rosto da pessoa mais bela que já conhecera se não fosse pelo semblante distorcido por anos incontáveis de dor. A pele alva estava arroxeada ao redor dos olhos, os lábios finos secos e sem cor alguma. Mas o pior eram os olhos. Olhos grandes e cinzas, vidrados como se estivessem mortos há centenas de anos e não soubessem. Quando estes olhos encontraram os de Lyvlin a garota sentiu um calafrio percorrer o corpo. Uma única lágrima varreu o rosto do nirnaila. – Você não, você é fraca demais, não aguentará. Deuses, brincando com as nossas vidas como se fossemos peças de algum jogo especialmente cruel. Irão se divertir com a sua também criança, ah, se irão. Quantas peças cairão diante de ti?

Abriu a boca para perguntar do que estava falando, mas o nirnaila apenas deu um último suspiro e dissolveu-se numa névoa pálida que então também dissipou na fria brisa noturna.

– Não aprendi a gostar dessa parte. – disse Raoul com os olhos no local onde o ser desaparecera, estendeu o braço em sua direção – Venha, deixe que eu a ajude. Desculpe pelo atraso, mas conseguiu mesmo deixá-lo furioso. Normalmente não agem com tanta... convicção.

– Sim. – retrucou a garota fazendo uma careta, o que fez os cortes se abrirem mais – Imagino como devem convidar as pessoas para um belo jantar quando estão de bom humor.

Lyvlin deixou que ele a apoiasse, a cabeça girando. Estava pronta para alguém lhe dizer que tudo aquilo não passara de uma brincadeira sem graça, um mal-entendido. Onde estava Gilbert para repreendê-la por sair correndo por ruas desertas tarde da noite? Onde estavam Ezra e seu sorriso zombeteiro, o velho Marvim para lembrá-la de que o lugar de nirnailas e heróis eram em lendas?

– Numa coisa o nirnaila estava certo, em breve eles estarão aqui. – o rapaz quase a arrastava para trás de um caixote. O odor denunciava que estava recheado de comida podre.

– O aço de verão, é apenas usá-lo. – disse Lyvlin arfando com a dor que latejava em seu braço. O rapaz apoiou o grande arco ao lado dela e também se sentou, calmo como se estivesse mesmo repousando depois de um passeio noturno.

– Ainda que tivesse flechas suficientes não conseguiria derrotar todos. –disse, como se aquilo fosse óbvio - Quando se mata um nirnaila sua essência é liberta e ainda que existam pessoas façam isso em grande escala eu apenas consigo fazê-lo com um de cada vez. Se não lhe faltasse habilidade talvez houvesse maneira de realizarmos isso juntos, mas é exigir demais de uma criança. Ainda mais com os seus ferimentos. – enfiou a mão em seu casaco e tirou um dos mapas. Passou a estudá-lo com atenção usando a luz da lua e os tênues feixes que atravessavam as janelas para enxergar. – Como vê, estamos perdidos.

– E fala isso como se não fosse nada. – retrucou a garota afastando-se dele o máximo que conseguia sem entrar em contato com o lixo. Ninguém deveria ser capaz de matar um nirnaila, aquele jovem deveria ser tão perigoso quanto a criatura que a atacara. E acabou de salvar a sua vida, não esqueça. Esperava continuar viva para agradecer. O barulho da luta não parecia ter tido efeito algum sobre a vizinhança, ou as pessoas estavam ocupadas tentando apagar o fogo ou sabiam que não era uma boa ideia colocar-se em meio a um nirnaila e sua presa. Quase desejou que o homem de mais cedo estivesse ali para ver com os seus próprios olhos. O seu rosto ardia e o braço direito estava latejando de uma forma que a fazia ter vontade de gritar, ainda assim o som mais alto que emitia eram as batidas descontroladas de seu coração. Começou a se perguntar se correr para dentro de uma das casas não seria uma ideia melhor.

– Não se afaste demais. – pediu Raoul sem tirar os olhos das gravuras tirando-a do transe – Dois já estão na entrada do beco e um está rondando os telhados, não demorará muito para nos achar.

– Qual é o seu problema? – sibilou Lyvlin entre os dentes – O que estamos fazendo aqui afinal?

– Esperando.

– Que nos achem e nos trucidem? – ergueu Arcturus e estava pronta para se levantar. A forma desajeitada com que o fez com a mão esquerda não combinou com a recusa de morrer encolhida atrás de comida estragada.

– Não. – disse Raoul ao mesmo tempo em que segurava o seu braço e a puxava para baixo – Estamos esperando por Casimir.



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Notas finais do capítulo

Tantantantaaan. Acho que posso estar forçando demais a ação e etc, mas quem se importa não é mesmo? Não fiquei satisfeita com este capítulo, mas tudo bem porque no próximo it's Casimir tiiimee yeeeey! (agora que paro pra pensar posso ter ido depressa com todo o resto porque estava ansiosa demais hihi.)