As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 7
Perth




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“Ele continua a trazer a comida, diz que é o único que tem coragem para isso e sorri. Digo que coragem é o talento dos mortos, mas sorrio também.”

Atingiram Perth quando o céu começava a se tingir de laranja, faixas mais escuras de um profundo tom vermelho cortavam o firmamento quando chegaram diante dos grandes portões de madeira, indicando que haviam conseguido por pouco. Lyvlin teve que inclinar a cabeça para trás para ver o final dos portões que brilhavam com o pôr de sol, mas sabia que sua estrutura era de madeira. Foram apenas revestidos com bronze para manterem-se de pé por mais tempo, apenas os portões das grandes cidades eram de metal puro. Em parte porque o custo para se construir um portão de metros de altura era alto demais para os pequenos fidalgos que dirigiam cidades menores e para se erguer um portão pesado de metal eram necessários mecanismos que simplesmente não estavam presentes nos vilarejos. Evion não possuía portões, nem ao menos era cercada com muros de estacas de madeira, o que a tornava ao mesmo tempo vulnerável e desinteressante aos olhos dos bandidos. Porque a riqueza era protegida. E Perth era um vilarejo razoavelmente rico, que se aproveitava de sua posição favorável entre Ibortam e as terras do norte para desabrochar como centro mercantil. Era rota de passagem para as caravanas que sustentavam as fortalezas no limite do reino e para aquelas que traçavam seu caminho para as cidades mais ocidentais. E sua natureza comercial serviria como entrada para o grupo.

–Trazemos mercadorias do norte. – bufou Gilbert para os dois guardas que bloqueavam o caminho – Estamos há dias na estrada e ansiamos por um abrigo para passar a noite.

Os homens apenas olharam para o burro parado a poucos passos de Lyvlin. A garota sabia que a carga que traziam era estranhamente pequena para comerciantes e esperava que a lábia de Gilbert os tirasse daquela situação. Não eram soldados treinados, como uma primeira olhadela indicava. As cotas de malha grandes demais e espadas que pendiam de seus cintos eram os únicos indicativos de que se tratavam de homens da lei, o primeiro estava quase dormindo quando adentraram a luz das tochas e o segundo parecia tão guerreiro quanto um garotinho de dez anos. E ainda assim estariam perdidos se não conseguissem convencê-los.

–O portão está fechado. – falou o maior deles que parecia ter uma estranha aptidão para observações óbvias – Não abre até o amanhecer.

–Mas o sol ainda não se pôs.

O homem acotovelou seu colega e indicou o céu alaranjado.

–Carl veja, o sol ainda não se pôs.

–Não sei do que está falando, para mim já é noite há horas. – retrucou o que estivera dormindo e bocejou. Seu hálito fedia a cerveja.

–Vocês ouviram o meu colega. – anunciou o maior com a pompa de um lorde – Não vemos sol algum.

Gilbert enfiou a mão dentro de seu manto e puxou um saquinho de couro, o tilintar de moedas em seu interior parecia acordar os guardas.

–Bem, isso é uma pena. Com a luz do sol seria mais fácil contar seus pagamentos. – disse desapontado.

–Recebemos nossos pagamentos mais cedo. – o maior deles tentou conservar sua honra, mas seus olhos traíam as palavras.

–Se ele não quer – falou o outro andando na direção de Gilbert e estendendo a mão – posso aceitar a parte dele sem reclamar.

–Seu porco dorminhoco! Se colocar as mãos nas minhas moedas eu as corto fora. – o homem sorriu quando Gilbert deixou algumas moedas de prata cair em suas mãos estendidas. Por fim o velho jogou o saquinho com o restante do conteúdo para o outro guarda.

–Está dividido igualmente senhores. Agora abram os portões, meus pobres e velhos ossos não aguentam toda essa demora.

Ao longo de toda a conversa Lyvlin se remexia de um lado da sela para o outro, prestando atenção em cada gesto e palavra de seu avô. Havia sido formidável, mas agora temia que as moedas tivessem acordado a ganância naqueles homens. Mas a ordem para içar o portão foi dada e Lyvlin esporeou Flecha para passar por ele antes que eles mudassem de ideia.

–Boa estadia em Perth caro senhor. – falou alegremente o guarda que se chamava Carl - A Rosa D’ouro ainda tem algumas camas livres pelo que ouvimos falar.

–Agradecemos tamanha hospitalidade. Senhores, uma última questão. – Gilbert parou a montaria antes de atravessar o portão e seus olhos caíram sobre o alto muro de pedra coberto por musgo – Por que estariam fechando os portões mais cedo se há um grande movimento de caravanas que abastecem os senhores do norte durante todo o inverno?

–Ora, então não sabe senhor? – o tom de voz deliciado denunciava que não cansava de contar aquela história – Há duas semanas Perth foi lugar de parada para o grande batalhão que ruma para Faolmagh, espero que chutem os traseiros daqueles filhos da puta. Todo inverno se repetindo apenas para serem enxotados novamente, não parecem muito inteligentes para mim.

Lyvlin mordeu a língua para guardar para si o comentário de que ele também não parecia inteligente. Por “filhos da puta” o guarda se referia aos habitantes do reino de Kerdis, que a cada ano tentavam invadir Vassand pela sua fronteira sul, batendo inverno após inverno contra as forças de Faolmagh sem jamais atingir seu objetivo. Para a garota pareciam perseverantes e desesperados, mas não discutiria com o homem quando haviam acabado de conseguir entrar. Era comum que batalhões do sul reforçavam os números da fortaleza no início dos ataques. Consistia de um bom treino para jovens que entraram há pouco tempo no exército, para comandantes em busca de fama e nobres que esperavam crescer aos olhos do rei. Sabia de tudo aquilo porque estava cansada de ver rapazes do vilarejo arrumar suas trouxas e rumar para o extremo norte em busca de uma vida um pouco mais emocionante, como nas grandes lendas. Se fosse um garoto, pensara a menina muitas vezes, iria para lá com Ezra e juntos se transformariam em verdadeiros guerreiros.

Mas o amigo não escondia sua repulsão pelas batalhas no norte e tristeza com o partir de cada conhecido até que parara de mencionar o assunto diante dele. “São apenas pessoas desesperadas para arranjar comida Lyvlin” dissera um dia enquanto deixava as pernas afundar no lago cristalino que haviam descoberto em uma caçada “Kerdis não passa de um grande deserto e o tempo da pior seca corresponde ao nosso inverno, não há honra em abrir a barriga daqueles que são movidos pela fome.” Lembrar-se das palavras do amigo apenas fez com que Lyvlin sentisse mais raiva daqueles dois homens, mas controlou a língua. 

–Passaram uma semana aqui rearranjando suas provisões e esperando o pior das nevascas passar. – continuava cheio de si – E se pensam que foi um batalhão qualquer, estão muito enganados porque até cumprimentei alguns membros da guarda real em pessoa.

–Não seja um porco mentiroso – interrompeu o segundo – eles nem sequer lhes davam atenção, senhor. Não era nem bom o bastante para despejar o conteúdo de suas latrinas ou limpar a bosta de seus cavalos.

A garota reprimiu um risinho, mas na verdade mal conseguia conter sua apreensão. Os componentes da guarda real representavam o esplendor máximo do exército de Vassand, todos homens treinados desde que eram garotinhos nas artes de guerrear com as mais diversas armas e nas condições mais desfavoráveis. As provas pelas quais tinham que passar durante sua formação faziam calafrios percorrerem as costas de qualquer pessoa sensata, o que os transformava também em inimigos amedrontadores e guerreiros valiosos. Entretanto, apenas eram utilizados quando a situação no campo de batalha era muito ruim, o que soou como um alarme na mente de Lyvlin. Se Vassand finalmente estava perdendo a guerra contra Kerdis não demoraria muito para que vilarejos como Evion sofressem as consequências. Estava a ponto de perguntar sobre a situação em Faolmagh quando a explicação veio.

–Fale por você! – sibilou Carl dando um empurrão no companheiro – Está apenas com inveja porque não foi você o escolhido pelo príncipe para responder suas perguntas.

–Pelos deuses Gard, ele apenas perguntou sobre o que poderia esperar do caminho até Faolmagh e se me perguntassem parecia até saber o que estava fazendo. – cuspiu na neve e limpou os lábios com as costas da mão – Ainda que não soubesse escolher seus informantes muito bem.

–Senhores. – a voz de Gilbert soava apaziguadora – Deve ter sido realmente magnífico estar em tão nobre companhia, mas se estavam tão brilhantemente protegidos pelos melhores guerreiros do reino, por que descer o portão mais cedo?

–Acontece que assim que o batalhão continuou seu caminho, sofremos três ataques em apenas uma semana. Os bastardos devem achar que Perth está cheio de ouro do sul. – voltou a cuspir no chão – Quem dera se fosse verdade. Nunca vi pessoas tão apegadas a suas moedas. Desde então começamos a nos esforçar para manter os idiotas longe.

–Estão sem dúvida realizando um bom trabalho. – mentiu Gilbert e esporeou Darius para a cidade.

–Não sabia que o príncipe possuía idade suficiente para ser iniciado em batalhas. – disse Lyvlin quando o avô a alcançou. Gilbert parecia perdido em seus pensamentos, mas não lhe deu nenhuma pista sobre o que o perturbava.

–Creio que seja um pouco mais velho que você. – respondeu esporeando Darius a um passe lento, os cascos dos cavalos provocavam sons rítmicos e solitários contra a neve – Já deveria ter sido iniciado há tempos, mas a rainha se preocupa com o bem-estar do herdeiro, não hei de culpá-la.

–Fala como se os conhecesse.

–Estou apenas seguindo os fatos, todos sabem como o rei coloca valor em vitórias e heroísmos e que o príncipe cresce forte. Se não é pela saúde e se o pai o quer ver mostrando sua qualidade desde que atingiu a juventude, então o único empecilho é a mãe. – passaram pelas casas sem ver uma pessoa na rua, coisa que não era muito comum em cidades como Perth. Ao menos a taverna deveria estar cheia, mas ou as pessoas estavam recolhidas, ou os bêbados estavam silenciosos demais naquela noite – Deveríamos ter evitado Perth.

Lyvlin ergueu o olhar até o seu avô, o rosto estava coberto de preocupações.

–Tem medo que eles sejam “os homens que vem do sul”? – sua imitação de Laoviah fez o velho rir contra sua vontade. Ouvir o riso rouco de seu avô parecia a única coisa real naquele dia.

–O fato é que são homens e que vieram do sul. – disse Gilbert tentando controlar o riso – Nós dois sabemos que devemos tomar cuidado durante a nossa estada. Nada de dar uma de tagarela Lyvlin e quanto menos chamarmos a atenção, melhor.

Tentou ignorar o soslaio de acusação que Gilbert lançou aos seus cabelos ruivos. Odiava ser tão facilmente reconhecida, no norte as pessoas eram em grande parte loiras ou ostentavam uma cabeleira marrom, ela e Ezra eram os únicos com cabelos ruivos que conhecia. A diferença é que o cabelo do rapaz apenas continha um tom brando de cobre enquanto os dela pareciam determinados em imitar as cores de uma fogueira. Soprou os cabelos para longe do rosto e sentiu-se um pouco melhor quando A Rosa D’ouro surgiu em uma esquina.

No momento em que entrou na pequena estalagem lhe pareceu estranho que estivesse tão vazia. Poucos daqueles que estavam ali levantaram a cabeça para dar uma olhada nos recém-chegados, se tivesse um prato de cozido de batatas e carne diante de si também não se deixaria interromper durante a refeição, pensou a garota. Uma grande lareira esquentava todo o andar de baixo e em breve estaria cozinhando por debaixo de todas aquelas peles. O estômago começou a se manifestar de tal forma que deixou-se cair sobre um dos longos bancos de madeira e pediu ao garoto que servia na comida que lhe arranjasse um prato cheio. Enquanto esperava olhou para Gilbert que conversava com o estalajadeiro, um homem baixo que tinha as costas um tanto quanto arqueadas, mas quando balançou a cabeça repetidamente em afirmação ante as perguntas do avô a garota resolveu que era simpático. Sorriu e acenou de volta quando Gilbert a indicou para o homem e logo o cheiro de cozido se intensificou com a chegada do ajudante de cozinha.

–Obrigada. – falou olhando enquanto o prato era posto diante de si. Além do cozido havia ganhado ainda um pedaço de pão, que apesar de duro revelou-se muito gostoso quando mergulhado no líquido. Sentiu-o desmanchar em sua boca e precisou que Gilbert apertasse seu ombro para que percebesse a sua presença.

–Lyvlin, isto não são modos. – a velha voz de censura estava de volta. Mas os olhos do avô também se iluminaram quando foi apresentado ao seu prato.

–Você nunca se importou com os meus modos na mesa. – retrucou arrancando um pedaço do pão com os dentes e enfiando uma generosa colherada com cozido logo depois, para ajudar a descer – Está gostoso e não comemos nada o dia inteiro, o que esperava?

O avô apenas deu de ombros, obstinado a voltar sua atenção apenas para a comida.

Aproveitou o momento para observar melhor as pessoas que se encontravam ali. Eram todos homens, o que explicava os olhares de soslaio que recebia entre uma colherada e outra. Sentiu-se incomodada, mesmo enrolada em suas vestes grossas. Além de uma dupla no fim da longa mesa ninguém conversava. Talvez tivessem chegado antes de a bebedeira começar. Não estivera muitas vezes em estalagens porque Gilbert viajava pouco, mas sempre que iam a Perth costumavam ficar em outra hospedaria, O bardo rouco (que apesar do nome não contava com bardos como atração principal). Era um lugar maior e mais movimentado, mas não ficara decepcionada com a escolha de Gilbert, provavelmente apenas tentava evitar serem reconhecidos e terem que dar explicações sobre a viagem. Estava pronta para atacar o último pedaço de carne que deixara para o final quando o homem ao seu lado bateu o punho na mesa e a fez tremer.

–Que se fodam todos vocês! – bradou, ganhando a atenção de todos na sala – Já falei mil vezes que NÃO inventei a história, eu realmente os vi!

–Sim sim, você e ninguém mais. Bela maneira de ganhar a atenção das garotas, esperto. Mas não espere nos enganar tão facilmente. – retrucou um rapaz que não deveria ser muito mais velho que Lyvlin. Deveria se tratar do filho de algum mercador, porque suas vestes eram melhores que as da maioria. Quando se inclinou para encarar o homem sobre a mesa revelou ter espessos cabelos cor de trigo. – Não o chamaremos de herói por ter lutado contra algo que não existe.

Lyvlin ainda olhava para a carne que jazia no chão, junto com as tigelas partidas quando se ouviu dizer:

–Do que estão falando? – o homem que gritara a olhou por cima da barba negra como se só agora a percebesse. De repente o cômodo estava cheio de discussões acaloradas. Sentiu Gilbert a puxar pelo braço, mas se desvencilhou e manteve o olhar fixo nos olhos negros do homem. – O que você viu?

O homem deu de ombros, parecendo reunir todo seu autocontrole para não socar o rosto do rapaz que sem delongas atravessou a mesa e sentou-se nela, com os pés apoiados no lugar onde Lyvlin estivera sentada antes de ver seu jantar voar pelos ares. Observava a garota com o queixo apoiado nas mãos e uma expressão deliciada no rosto.

–Não vai querer ouvi-lo, é apenas um ajudante do meu pai que vê coisas onde elas não estão. – deu uma tapinha no braço do homem – Não é isso Alfred?

–Não me interesso no que você diz, quero saber o que ele viu. – o sorriso se desmanchou como o gelo com a chegada da primavera. Alfred parecia de repente muito desconfortável.

–Não vai acreditar em mim de qualquer modo.

–Aposto que é mais interessante que o que eles estão discutindo. – indicou com a cabeça o restante do pequeno grupo. A poucos passos começava uma briga e o estalajadeiro estava tentando sobrepujar sua voz a todas as outras, sem muito sucesso. O grande homem abaixou-se um pouco para que conseguisse ouvir tudo.

–Estava arrumando o carregamento para Mirza nas primeiras horas da manhã quando os vi andando sobre os muros da cidade. Eram reais, eu juro que os vi. Juro pela minha mãezinha. Nirnailas. – fez uma pausa para esperar o impacto da palavra, mas Lyvlin apenas continuou o observando sem piscar – Eram dois, ambos altos e vestidos completamente de negro, as capas desgastadas quase translúcidas por causa dos séculos de uso. Eu os vi.

–E como sabe que eram nirnailas e não uma dupla qualquer que tentava entrar sorrateiramente em Perth? Consigo pensar em alguns tipos de pessoas que iriam querer evitar os guardas.

–Você pensa melhor do que aparenta garota. – observou o rapaz, Lyvlin o ignorou.

–Eu senti que não eram humanos. – Alfred parecia prestes a chorar diante de mais uma opinião negativa – Estava segurando as cargas na mão quando vi os vultos, quando virei a cabeça na direção deles vi que conversavam entre si. Um deles ergueu a mão para mim como se acenasse e fui acometido por uma sensação estranha, como se cada centímetro de mim doesse. Fechei os olhos e rezei para os deuses. Quando olhei não estavam mais lá, mas eram reais, eu juro.

Nunca conseguiu lhe dar sua opinião. Porque naquele momento o aperto de Gilbert tornou-se mais forte e um dos homens que brigavam foi jogado contra Alfred e seu companheiro arrogante.

–BASTA – urrou o estalajadeiro que estava perto – SE QUEBRAREM MAIS ALGUMA COISA PODEM ARRANJAR OUTRO LUGAR PARA PASSAR A NOITE E QUE OS NIRNAILAS OS CARREGUEM!

–Lyvlin, vamos. – murmurou Gilbert e a arrastou atrás de si. A ameaça do homem parecia surtir algum efeito, porque as vozes gradativamente se tornaram mais baixas e as coisas que foram derrubadas ganharam seus antigos lugares de volta. Lyvlin olhou para trás e viu Alfred perdido na confusão que causara, sentiu pena, porque aquele homem não parecia ser um mentiroso. Parecia apenas estar preenchido pelo medo. Deixou que o avô a levasse escada acima para o quarto que seria seu durante a estadia. Cheirava a mofo e grande parte do espaço estava ocupado por uma cama de palha. Ao menos o cheiro de mofo não provinha dela. Quase tropeçou sobre as trouxas que Gilbert havia trazido, a grande maioria dos pertences estava guardada no quarto que o avô ocuparia.

–Lugar agradável. Não que esteja reclamando, na verdade acho as conversas daqui mais interessantes que no Bardo rouco. – observou, deixando-se cair na cama e entrelaçando os braços por trás da cabeça. Olhou para o avô. Parecia pálido à luz da única vela que enfrentava a escuridão. Endireitou-se. - Gilbert? Você não acreditou no que aquele homem falou, acreditou?

O velho deu um longo suspiro, indicando que a pergunta não era a que queria ouvir.

–Não Lyvlin, tratava-se provavelmente de bandidos querendo uma entrada fácil como você falou. A discussão que presenciamos teve origem na mente fértil de um homem, mas não foi por isto que se prolongou e tomou uma proporção grande demais, se considerarmos sua natureza simplória.

–Estou muito cansada. – Lyvlin sabia para onde aquela conversa levaria e a perspectiva não a animava – Podemos discutir sobre entidades amanhã?

Divindades. – corrigiu o avô secamente e a garota soube que perdera. Restou se acomodar o mais confortável que a cama de feno permitia enquanto Gilbert já começava a falar num tom calmo e paciente ao qual sempre recorria quando conversava sobre este tema com a neta. Como de costume estava obstinado a fazer com que compreendesse daquela vez. Como de costume Lyvlin deixou de prestar atenção na terceira frase. – Aqueles homens lá embaixo não estavam brigando por terem opiniões contrárias sobre a existência ou não de nirnailas, estavam brigando sobre as consequências. Negar a existência dessas criaturas é ao mesmo tempo estender esta negativa sobre outros assuntos, assuntos que há muito tempo são postos de lado por ser mais fácil desta maneira. Rattra e Ciandail possuem seus próprios deuses, são ao mesmo tempo fonte e destino dos anseios, preces e adorações das pessoas que nasceram naqueles lugares. Não importa se são pobres ou membros da família real, esperam todos obter a proteção de Sydril e Tiadelik. Mas nós vivemos no terceiro domínio de Vassand, não possuímos um deus próprio, não desde A grande perda.

–Quando Vaus puniu os humanos primordiais por serem arrogantes e indignos.

Gilbert a encarou de forma parecida com que olharia se tivesse lhe cravado uma flecha no peito.

–Agora soa como uma conservadora. Lyvlin, talvez seja melhor não discutir mais nada com você.

–Seria uma boa mudança. – retrucou a jovem olhando através da janela que deixava o luar tocar sua cama. Decidiu que a abriria um pouco mais tarde, uma brisa fresca cairia bem naquele ambiente mofado, mesmo se um nirnaila achasse a entrada muito convidativa. – Não queria ofendê-lo, me desculpe. Apenas considero discussões sobre deuses e seres sobrenaturais uma perda de tempo.

–Mesmo depois do que vem acontecendo com você?

A pergunta a pegou desprevenida, não conseguiu encontrar uma resposta suficientemente boa. Laoviah, Tengil, sua maldição. Os três pareciam querer levá-la a tomar o lado de Alfred, deixá-la saber que há mais coisas lá fora esperando, vivendo, vigiando do que conseguia explicar. E havia os fantasmas, as pequenas sensações que não pareciam se encaixar de maneira alguma num cotidiano precariamente normal. Os conservadores faziam rituais para Vaus, rituais que muitas vezes tomavam caminhos sombrios. Ouvira certa vez que sacrificavam animais e pintavam os rostos com seu sangue. Pediam perdão, imploravam para serem desculpados e poupados da ira do deus e dos nirnailas, que nada mais eram que a punição divina numa forma que andava pela terra, capaz de arrastá-los para o sofrimento eterno. Espreitá-los seria a palavra mais correta agora que parava para imaginá-los sobre os muros da cidade.

Aqueles que insistiam em agarrar-se ao deus como um homem a ponto de se afogar agarra-se a um pedaço de madeira eram chamados de conservadores, traidores dos homens ou coisa pior. Porque as pessoas rapidamente haviam se voltado para outras divindades que pudessem atender aos seus pedidos e acalentá-los nos tempos difíceis, era fácil, bastava-se precisar deles. Nos últimos tempos, porém, a situação saíra do controle e era cada vez mais comum que conflitos surgissem e que as crenças contrárias fossem resolvidas em confrontos sangrentos. No outono espalhou-se a notícia de que em uma pequena vila não muito longe de Evion uma família fora morta por ter sacrificado um bezerro em nome de Vaus, a menina não havia passado dos seis e fora apedrejada diante dos cadáveres dos pais. Um dos primeiros decretos pronunciados pelo Unificador após a guerra dos três reinos proibira o culto ao deus que trouxera a desgraça sobre a humanidade há milhares de anos, mas o número de conservadores nunca havia sido maior. Talvez o Unificador estivesse morto há tempo demais e a união já não fosse importante, ou se fosse via-se a cada passar de ano sendo empurrada para o lugar menos prestigiado da mesa, como um nobre faz com seu filho inconveniente em grandes banquetes na esperança de que passasse despercebido.

Se havia verdade nos rumores que se espalhavam numa velocidade de fazer qualquer surto de doença ser tomado pela inveja os dois mais ricos e poderosos domínios de Vassand estavam à beira de uma guerra por orgulho enquanto o terceiro se deparava com tumultos cada vez mais violentos. Rezar talvez fosse mesmo o melhor a ser feito, se ao menos soubéssemos para quem. Lyvlin nunca se deixara levar pelas discussões inflamadas. Para ela os deuses que tinham seu pequeno altar na praça de Evion eram suficientemente divinos para receber suas preces, Ciandail e Rattra longe demais para ocupar seus pensamentos. Não tinha muito tempo para louvar deuses de qualquer forma, havia tarefas a cumprir e depois de um dia árduo de trabalho ansiava mais pelo descanso de sua cama que pela bênção de um deus, fosse ele quem fosse. Gilbert não cansava de tentar convertê-la aos seus princípios religiosos e interpretava as evasões da garota como rebeldia juvenil. Que continuasse assim.

–Duvido muito que o ataque de Tengil seja consequência das poucas horas da minha vida que passo louvando-o. Ainda que a total falta delas pode não ter caído muito bem para mim, confesso. – olhou com divertimento para o avô – Estamos sendo caçados de qualquer maneira, uma prece aqui outra ali não vai nos salvar agora. Não me salvará agora.

As palavras tinham um gosto amargo na boca. Estou com medo, percebeu. E a verdade a apavorou.

–Se esquece de que Tengil não é senhor de suas ações. – a voz de Gilbert era um manto quente e protetor - E de que ainda não foi batida minha querida. Sobre o seu dom sei pouco mais que você, o suficiente para querê-la longe de Faolmagh e recebendo lições de um velho conhecido. Quando estiver iniciando seus conhecimentos sobre a magia vai achar que tudo é fácil e simplório demais, mas com o treinamento correto vai perceber o quanto estava se enganando. Perguntou-me mais cedo o nosso destino final e acho que tem o direito de saber. Seguiremos cada vez mais para o sul, evitando as grandes massas por trás das muralhas das cidades e às vezes unindo-nos a elas para passarmos despercebidos. Se não tivermos problemas chegaremos antes da próxima lua cheia. – tomou as mãos de Lyvlin nas suas e as apertou, o sorriso pareceu mais cansado que sincero – Você pediu por uma aventura minha querida, vai desistir antes de começá-la?

–Preferiria um começo mais brando. – confessou a garota, mas não pôde deixar de retribuir o sorriso. Era tímido e fraco, mas ainda assim estava ali. – Devemos descansar bem se queremos cobrir todo o percurso em três semanas, durma bem Gilbert.

–Estarei no quarto da direita. Não abra a janela ou pegará um resfriado, é a última coisa que precisamos agora. – deu uma olhada nas bolsas antes de sair – Tem certeza que tem tudo o que precisa para passar a noite Lyvlin?

Acenou positivamente e observou o avô caminhar pela porta. Há quanto tempo a idade transparece em seu caminhar? Gilbert sempre fora um homem alto e os anos começavam a forçar suas costas a um ligeiro inclinar para frente, coisa que tentava disfarçar, mas quando estava muito cansado esquecia-se de manter o porte erguido. Quando estava em público, porém, seus passos eram impulsionados pelo orgulho e o olhar severo escondia a gentileza por trás de seus gestos. Gostava de pensar que conseguia se enxergar nele, no nariz reto e um pouco grande demais para o rosto fino, no modo como olhava desconfiado quando estava diante de uma situação nova, as mãos do avô se fechavam com a firmeza da neta quando estava próximo de explodir, ainda que só o vira assim uma única vez. Meu avô... Imagino quando conseguirei chamá-lo assim.

–Ele te criou. – disse Ezra certa vez deitado debaixo de um carvalho – Gilbert é mais um pai que avô para você, mas não consegue chamá-lo de tal porque sabe que não é verdade.

–O amo de maneira como amaria meu pai se ainda estivesse vivo. – concordara Lyvlin, esfolando o coelho que tinha abatido mais cedo com a faca de caça. Era um trabalho sujo, mas havia aprendido a ser rápida. – Mas não consigo explicar o motivo... Olha, também não o chamo de irmão.

–Não sou seu irmão. – retrucou Ezra veemente demais. A garota ergueu os olhos do trabalho sangrento e sorriu.

–Você é um idiota Ezra, para mim é como se fosse.

Ezra parecia desconfortável e mudou de posição na relva.

–Não sou seu irmão, ainda que Gilbert seja seu avô. Experimente chamá-lo assim, aposto que o velho dançaria de felicidade. – as folhas da árvore faziam garoto ser recoberto por pequenas sombras que corriam pelo seu rosto ao sabor do vento, disputando espaço com suas sardas. Escutavam o gorgolejar do pequeno riacho logo atrás deles e um merlo estava escondido na floresta, cantando a plenos pulmões. Lyvlin já se alegrava pelo caminho da volta, talvez conseguisse convencer Ezra a subir com ela em uma das cerejeiras selvagens que estavam carregadas com os pequeninos frutos, poderiam pendurá-las nas orelhas como se fossem brincos ou apenas encher a boca com a maior quantidade de cerejas que conseguissem. O verão a envolvia em seu feitiço, fazendo com que quisesse correr descalça e rir o tempo inteiro, sentindo que com os dias mais longos vinha também o fim de qualquer problema.

–Pensarei no que você disse, irmãozinho. – e riu, até um coelho morto a acertar na barriga – E pare de brincar com o jantar!

Pensar em Ezra a fez se sentir estranhamente só. Ali, naquele minúsculo quarto mofado, duvidou que o verão chegasse algum dia. Lavou o rosto com um pano úmido e aproximou-se da janela, abrindo-a sem vacilar. O vento gelado a mordeu de imediato, mas não se importou. Perth parecia o fantasma de uma cidade, com a neve cintilando á luz da lua cheia. Era ela que se depositava em tudo, cobrindo telhados, ruas e muros, a garota pareceu que o branco tentava comprimir as construções, abafando-as. Dali conseguia ver parte do muro que rodeava a cidade, uma longa sombra negra que se erguia protetoramente. Nirnailas. A ideia de que fossem reais parecia ridícula agora que as brigas tinham silenciado. Dois dias atrás também não acreditava em lobas falantes. O pensamento não a perturbou, no lugar disso deixou-se cair na cama, sentindo cada músculo do seu corpo finalmente relaxar.

Perguntou-se se Ezra a perdoaria quando não voltasse no início da primavera. Talvez tivesse sido melhor contar-lhe a verdade e acertá-lo na cabeça para que desmaiasse logo em seguida, impossibilitando-o de segui-los. Suspirou chegando à conclusão de que isso apenas o deixaria mais irritado quando a encontrasse, porque Ezra seria capaz de encontrá-la em qualquer lugar. Se soubesse que precisava ser encontrada. Por um momento parecia conseguir sentir o cheiro amadeirado da floresta, ouvir os pássaros e sentir suas costas apoiadas nas do rapaz, era assim que se sentavam na maioria das vezes, costas contra costas. Por um momento desejou que estivesse ali, sentado na beira da cama e rindo de como ela parecia uma criança assustada. O cheiro de madeira...

No momento seguinte arregalou os olhos e pulou da cama. Deu dois passos em direção do manto, fechando sua mão no cabo de Arcturus ao mesmo tempo em que se perguntava em que momento poderia ter se tornado tão estúpida. A brisa que entrava pela janela não trazia apenas frio, estava impregnada com o cheiro de carvão. Perth ardia.

O fogo parecia ter início na porção leste da cidade, mas estava espalhando-se numa velocidade voraz. Lyvlin inclinou-se sobre a janela, agora havia também gritos à medida que as pessoas percebiam o que se passava. Elas estavam em todo lugar, saindo às pressas de suas casas, muitas não tiveram tempo ou bom senso para vestir suas peles. Observava tudo como se fosse um grande espetáculo monstruoso, incapaz de mover-se. Quando as labaredas começavam a avançar sobre a construção vizinha a vida parecia ter retornado a suas pernas.

Correu para a porta, pronta para buscar Gilbert e sair dali o mais rápido possível. Foi o avô, porém, quem abriu a porta com violência antes que conseguisse alcançá-la.

–Você precisa sair daqui!- berrou sobre todo o barulho.

–Eu sei! – disse a menina avançando em sua direção – Vamos sair antes que o fogo-

–Não é o fogo! – gritou Gilbert de volta, dando uma olhada rápida por sobre o ombro e empurrando a garota para o fundo do quarto. Nunca o vira tão apavorado. Tentou segurar as mãos do avô.

–Gilbert, é só fogo. – a frase deveria soar tão tola.

–NÃO, ELES ESTÃO AQUI!

Então compreendeu.

–Não seja ridícula Lyvlin. – disse o velho. Só então se deu conta que empunhava a afiada lâmina negra – Não poderá matá-los.

Estava prestes a dizer que poderia sim matar qualquer pessoa que adentrasse aquele quarto quando a figura apareceu atrás de Gilbert. Era alta e escura, a capa que vestia tornava impossível ver o rosto. Ergueu uma mão na direção da menina como se a chamasse, mas então sentiu as mãos do avô a empurrando para trás com tanta força que por um momento achou que iria se chocar contra a parede. No lugar disso sentiu a resistência da janela ceder atrás de si. Estou caindo. Tentou gritar, mas a única coisa que adentrou seus pulmões foi fumaça. Logo depois veio o chão.



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Notas finais do capítulo

Suspiros...



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