As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 6
Viajantes




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“Não dói tanto quando penso que um dia matarei todos eles, um por um.”

Havia parado de nevar. O sol começava a se erguer em um céu límpido, fazendo a grossa camada branca brilhar como se fosse constituída de milhares de pequenos cristais. Muito acima das suas cabeças um falcão cruzava os céus, provavelmente ansiando encontrar um coelho faminto e tolo o bastante para deixar a segurança da sua toca. Lyvlin observou a ave com os olhos apertados por causa do reflexo da luz do sol sobre a neve. Torceu involuntariamente que não tivesse êxito em sua caçada. Afinal, também estava deixando a sua toca naquela manhã.

Puxou o capuz do casaco de pêlo de lobo fundo sobre suas orelhas, sendo lembrada que no norte um céu limpo escondia um frio cortante. Arriscou uma olhadela para Gilbert que apertava efusivamente a mão de Richard, o padeiro. Era dele o magricelo e obstinado burro que era carregado com sacos de mantimentos, roupas e quinquilharias desde as primeiras horas da manhã. Era um razoável monte de carga, o que não agradava à garota. Por mais precioso que mantos e comida possam ser durante uma fuga, aquele burro só os atrasaria terrivelmente. Preferiria partir apenas com os dois cavalos e o peso leve extra que eles poderiam carregar, caçaria para as refeições e desta forma viajariam rápidos e leves, sem chamar a atenção de qualquer bando de ladrões que estivesse esperando na beira da estrada. Gilbert, claro, fora contra e desta forma estavam perdendo preciosos minutos carregando sacos e mais sacos para fora. Só não leva as portas porque estão bem presas. Refletiu carrancuda, abaixando-se para erguer um saco de feno. Ainda que estivesse um pouco úmido, era com o que Darius, Flecha Dourada e o burro teriam que passar a curta viagem para Perth, uma vila maior que Evion e que seria o primeiro ponto de parada do grupo. Fez um careta quando levantou-se, sentindo os braços ardendo debaixo do peso. Uma mão agarrou o topo do saco e o puxou para cima antes que pudesse reagir. Uma gargalhada saudou sua expressão confusa.

–Sentindo-se um pouco indisposta esta manhã?- Ezra não esperou uma resposta e foi tirando o saco dos seus braços – Posso levar para você.

Lyvlin fechou as mãos sobre a bolsa de linho com firmeza.

–Não.

Algo sobre a forma com que disse isso deve ter alertado o rapaz, pois soltou o que carregava na neve. A falta do barulho de algo se quebrando indicava que se tratava provavelmente de vestes. E foi para o embrulho que Lyvlin olhou enquanto sentia Ezra analisando seu rosto. Se não olhasse para cima ele não saberia, pensou. A última coisa de que precisava era ter que explicar algo que nem mesmo compreendia. Quando sentiu as mãos do amigo segurando seus ombros teve que reunir todas as suas forças para não desabar.

–Leve-me com você. – pediu – Posso ajudar, permita que eu te ajude Lyvlin.

Ele está pedindo para me acompanhar em um caminho que nos levará à morte mais cedo ou mais tarde. Enfureceu-se por gostar tanto daquela ideia.

–Não.

–E por quê? Porque já passamos por tanta coisa juntos, você bem sabe. Posso dizer que você não está bem só pela forma como anda Lyvlin, não tente fingir que estás ansiosa para essa viagem repentina porque não está.

Ergueu o olhar para fitá-lo, pequenos flocos da neve que caíram mais cedo ainda estavam presos em seus cabelos ondulados. O frio fazia as bochechas e nariz cobertos por sardas corar. Estivera ajudando-os no carregamento já quando Lyvlin saíra bocejando do seu quarto de dormir e mesmo encontrá-lo de madrugada em sua sala não despertava qualquer estranhamento na garota. Estava acostumada a sua presença com a mesma naturalidade que estaria se fosse seu irmão, porque era isso que sentia. Ezra significava família. O pensamento de que talvez nunca o visse novamente a atingiu de uma forma que nenhum soco ou pontapé o fizera antes.

–Porque não posso. – retrucou, a voz tremendo de raiva por não conseguir esconder a tristeza – Por favor, não faça mais perguntas.

O rapaz olhou para seu pai e Gilbert, que ainda conversavam. Mesmo a metros de distância era possível ouvir que discutiam se a rota do Desfiladeiro se mostraria mais perigosa que a passagem Uivante nesta época do ano. Nenhuma das duas o agradou muito e Lyvlin viu rugas de preocupação cortarem a testa do amigo. Ezra segurou Lyvlin pela manga de seu casaco e a guiou para o lado da casa, logo abaixo de uma das macieiras. Setas de gelo pendiam dos galhos retorcidos, refletindo a luz do sol nas mais diversas tonalidades. Apenas quando não estavam mais à vista de qualquer pessoa do vilarejo soltou-a.

–Você não pode pedir isso para mim. – falou carrancudo – Vejo a minha única amiga deixando a vila com o burro do meu pai carregado com provisão suficiente para duas semanas de viagem e sem nenhuma explicação. Tem que admitir, se fosse o contrário você faria perguntas.

–Provavelmente. – admitiu a garota – Mas você ainda tem Thom e Ullie.

–Thom cheira a carne e na maior parte das vezes está coberto por sangue. Não que não goste de carne, mas a sua presença consegue ser bem amedrontadora com o passar do tempo. E Ullie deixou a vila no meio do ano passado para se alistar na fortaleza de Faolmagh e você sabe muito bem. A essa altura prefiro não pensar no que pode ter acontecido a ele. Não tente mudar o foco comigo Lyvlin, isso não funciona há anos.

Virou o rosto em direção à floresta, mentir sempre era mais fácil quando não se olhava para a pessoa. Sentiu a brisa gelada contra o rosto e umedeceu os lábios rachados pelo frio. Teria que tomar cuidado com o que falasse, bastava que Ezra suspeitasse da gravidade da situação que estaria ao seu lado ainda antes do sol se pôr. Desejou amarrá-lo contra a árvore e amordaçá-lo para facilitar seu trabalho. Ou talvez, se acertasse sua cabeça com uma pedra com uma força suficiente... O rapaz exigia uma resposta e uma olhada rápida no chão a informou que precisaria revirar a neve para alcançar uma pedra. Deu um longo suspiro, como se estivesse contente por retirar um peso dos ombros com a confissão.

– A irmã mais velha de Gilbert ficou doente. Uma irmã distante, mas ainda assim. A notícia veio junto com o mensageiro que passou por aqui antes de ontem, aquele homem franzino e mal encarado que também tinha cartas para Oliver, lembra?

–Sim, você sugeriu que soltássemos a sua montaria. – teve problemas para continuar sério - Não me lembro de tê-lo visto entrar na casa de vocês.

–Não sugeri isso. – retrucou numa voz ofendida. Sentia-se quase culpada por mentir para Ezra, mas o estava fazendo para o seu próprio bem, não estava? – Ele falou com Gilbert quando estávamos cortando lenha e o velho ficou afetado de uma maneira que começou imediatamente os preparativos. Parece que ela possui uma estalagem numa vila mais ao sul, acho que Nrusk, e vamos ajudá-la enquanto está doente. Gilbert acha que no final do inverno já poderemos voltar.

Não conseguiu deixar de sentir um gosto amargo enquanto falava a última frase. Mas quando voltou a sua atenção a Ezra viu que ele tinha acreditado, ou talvez quisesse acreditar em qualquer coisa que lhe dissesse. O segundo pensamento a deixou insegura e começou a se afastar, imaginando que tudo estaria melhor quando estivesse a uma distância razoável. No lugar disso Ezra bloqueou seu caminho e a puxou para perto de si. Suas mãos fecharam-se atrás de suas costas, Lyvlin congelou, por pouco não largou o saco de feno. Ezra nunca a abraçara, nem quando não passavam de garotos.

–Desculpe por me aproveitar assim de suas mãos ocupadas. – falou. Lyvlin sentiu o corpo do amigo tremer enquanto segurava uma gargalhada mesmo através do feno e as camadas de roupa que os separavam. Ainda que sentisse vontade de empurrá-lo para longe era confortável ficar entre os seus braços e assim acabou fechando os olhos por alguns segundos.

–Se nos seguir, juro que te acerto uma flecha na virilha. E você sabe que posso fazer isso a uma distância considerável. – falou com um pequeno sorriso. Prometeu a si mesma que voltaria para Evion quando tudo tivesse se acalmado, talvez Ezra perdoasse o seu atraso e tudo seria como antes. O rapaz riu e a afastou de si.

–Sim, não soa como se fosse empolgante de qualquer forma. Apenas lembre-se de não usar frases assim quando estiver em Nrusk, não é próprio de uma estalajadeira sugerir que possa acertar a virilha de seus clientes a cinqüenta passadas de distância.

Sessenta. – corrigiu-o enquanto se aproximavam do burro – Encontre outra dupla para caçar enquanto estiver fora Ezra, não gosto da idéia de você cruzando a floresta sozinho.

–Da última vez que tivemos problemas, cara Lyvlin, fui eu quem nos tirou de lá. – seus olhos miraram as pernas da garota com curiosidade – Tem certeza que está melhor o suficiente para montar?

–Estou. – apressou-se em dizer. Desde que Richard e Ezra apareceram naquela manhã, antes mesmo dela acordar totalmente, estivera imitando um mancar leve. Não queria pessoas perguntando sobre sua cura “milagrosa”. – E ainda mais, Flecha tem um passo suave, não irá me causar problemas.

Ezra assentiu, amarrando as últimas cargas na sela do burro. Gilbert estava demorando tanto para ficar pronto que Lyvlin puxou Ezra para o estábulo comunitário, onde Flecha e Darius ainda esperavam para serem selados.

Evion seguia as tradições dos pequenos vilarejos do norte, assemelhando-se mais a uma família que crescera demais do que uma vila propriamente dita. As pequenas casas de madeira estavam separadas umas das outras por poucos metros, muitas delas possuíam ligações internas onde as famílias sempre podiam transitar sem precisar enfrentar o frio para chegar à casa vizinha. As casas rodeavam a pequena praça central, que nas estações mais amenas estaria repleta de crianças brincando, Marvim estaria em um banco fumando seu cachimbo fingindo que o círculo de crianças ao seu redor o incomodava, quando na verdade não poderia esperar mais da sua pequena plateia. Roupas estariam estendidas nos grandes varais e as macieiras estariam carregadas com seus frutos doces. Agora, no inverno, a única atividade na pequena aldeia acontecia na padaria, onde a família de Ezra estava preparando pães frescos.

Tudo em Evion funcionava em conjunto, havia aqueles responsáveis pela caça, outros pelo devido armazenamento da comida estocada no armazém comunitário, os poucos porcos, vacas e galinhas precisavam ser cuidados durante todo o inverno, mantidos aquecidos e longe da ameaça de lobos e ursos. Se tivesse que passar mais tempo fora ao menos seria poupada da matança de bezerros na primavera, quando alguns deles teriam suas peles usadas para reparar as janelas danificadas durante o inverno. Vidro era algo de que ela e todas as crianças da vila só tinham ouvido falar. Os mais novos eram encarregados de manter todas as construções limpas e conservar um olhar vigilante sobre tudo. No último inverno uma raposa havia conseguido cavar um buraco por baixo do galinheiro, o que rendeu aos garotos responsáveis por ele uma bela surra e a todos os outros um inverno sem sopa de galinha. Por isto o armazém era de pedra sólida, à prova de qualquer ladrão, por mais sorrateiro que fosse.

A única outra construção de pedra da aldeia era um pequeno altar para os deuses. Quando passaram por ele Lyvlin viu que alguém tinha posto novas oferendas sobre a rocha esculpida de maneira a parecer uma pequena gruta com uma proeminência ao centro. Flores, mel, pequenos frascos com essências, tudo isto abarrotaria o espaço diminuto no verão, mas agora podia se ver bonecos de madeira rudemente esculpidos e uma taça de bronze que continha uma poça sólida vermelha. A garota não parou para olhar melhor, mas supôs que fosse sangue. Os sacrifícios de sangue para os deuses era um costume do leste e que era duramente reprimido pelo rei e seus representantes nas três províncias, mas era difícil conter as pessoas quando os tempos estavam tão difíceis. Porque quando a situação se tornava cada vez mais desesperançosa era necessário chamar a atenção dos deuses da maneira como desse.

Mas se os deuses realmente existissem, e Lyvlin ponderava sobre isso desde seu encontro com Laoviah, então não pareciam se importar muito. O inverno já durava três meses e mesmo para os padrões do norte estava excepcionalmente severo, a idéia pelo que os vilarejos que se situavam mais para cima estavam passando para sobreviver lhe dava calafrios. O velho Marvim gostava de dizer que primeiro comiam os cachorros, depois os cavalos e por último as crianças, mas Lyvlin não acreditara. Adentrou o estábulo ao lado de Ezra e quando seus olhos caíram sobre a égua marrom teve certeza que sob circunstância alguma seria capaz de comê-la. Flecha, como preferia chamá-la desde que deixara para trás os anos de deslumbramento com lendas e seres fantásticos, era um animal de porte mediano, mas orgulhoso. A garota ocupava horas de seus dias escovando seu pelo até que brilhasse como bronze. Seu tom avermelhado contrastava com seu nome, mas a havia ganho de Gilbert quando tinha dez anos e Flecha Dourada lhe pareceu um nome digno para a égua que enfrentaria muitos perigos e aventuras em sua companhia. O máximo de aventura que já tinham passado foi fugir de um grupo de garotos raivosos do vilarejo vizinho por causa de uma briga qualquer, mas ainda agora com os anos empurrando-a para a idade madura Flecha ainda era um animal muito rápido, de passo suave e inteligência que muitas vezes a intrigava.

Quando a égua avistou Lyvlin a cumprimentou com um relincho baixo, observando-a com seus olhos castanhos cujos cílios eram absurdamente longos. A garota andou até ela começando a conversar em um tom muito baixo, fazendo a égua girar as orelhas em sua direção. Passou a uma mão pela sua crina escura e sedosa enquanto pegava com a outra o cabresto. Flecha odiava esta parte e foi necessário acalmá-la com palavras e carinhos para que deixasse colocar nela. Algumas celas adiante ouviu Ezra praguejar. Darius também não gostava de cabrestos, mas diferente da égua deixava isso bem claro através de mordidas. Alguns momentos depois Flecha estava pronta, equipada com a sela que Lyvlin demorou anos para conseguir comprar. Quando deixaram o estábulo Ezra já os esperava segurando as rédeas de Darius. O garanhão estava impaciente, raspando o chão com suas patas dianteiras e bufando, sua respiração tornando-se nuvens de fumaça assim que tocava o ar gélido.

–Como odeio este cavalo. – admitiu Ezra quando o alcançou.

Darius olhou-o com desprezo, mas permitiu que o guiasse rua acima sem oferecer muita resistência. O animal era de um negro profundo, fazendo com que seu pêlo refletisse a luz num tom azulado. Estava no auge da juventude e sua força competia apenas com a impetuosidade com que galopava. Muitas vezes sugeriu a Gilbert montar o garanhão quando faziam pequenas viagens, mas o avô não se mostrava receoso diante do temperamento do cavalo e rejeitava a proposta com um aceno de que não era nada. O som das patas dos cavalos e de suas próprias passadas contra a neve foi a única coisa que ouviram durante o curto percurso até a casa de Lyvlin, se é que ainda a podia chamar desta forma.

Parecia demasiadamente solitária, perdida no branco. Tentou guardar fundo em sua memória aquele lugar, cada pequeno detalhe. O telhado irregular e coberto de neve, as macieiras cujos galhos nus pendiam tristes em direção ao chão, a floresta escura a menos de cinquenta passadas, parecendo estranhamente convidativa naquela manhã. Na floresta poderia se esconder e jamais ser encontrada, na floresta encontraria comida e abrigo se fosse esperta o suficiente, na planície calva só atrairiam atenção, se seguissem pela estrada seriam alvos fáceis. Quando se deu conta disso ficou parada, enterrando as botas na neve até sentir as pequenas pedras que formavam o caminho que levava até em casa. Fugir não adiantaria nada, se ficasse aqui teria tempo para se preparar, para construir um abrigo na floresta. Teria a familiaridade da região em seu favor. Se ficasse estaria em vantagem.

–Aqueles dois nunca param de falar. – observou Ezra enquanto olhava para seu pai e Gilbert – Vamos logo, ou vocês vão chegar a Nrusk quando sua tia-avó estiver curada, seria muito constrangedor.

Deu por si assentindo e seguindo o garoto enquanto deixava para trás os últimos metros que os separavam da dupla barulhenta. O resto aconteceu rápido demais para o seu gosto. Gilbert tomou as rédeas de Darius das mãos de Ezra agradecendo ao rapaz e soltou mais um gracejo para Richard. Enquanto o trio ria Lyvlin olhava para o avô numa mistura de admiração e amargura. Fingir que estava tudo bem não era um problema para Gilbert. Depois de algumas palmadas nos ombros dos dois estava pronto, parecendo preenchido por uma energia que Lyvlin já não vira há tempos. A garota amarrou a corda do burro à sela de Flecha, uma vez que o mais certo a acontecer se fosse Darius a guiar o burro era que levasse um coice ou que precisaria acompanhar o galope desgovernado do garanhão. Enquanto tentava dar o nó sentia o olhar de Ezra sobre si e parecia de repente ter duas mãos esquerdas. O rapaz estendeu o arco em sua direção quando estava pronta para montar.

–Leve-o – disse com a voz séria, o humor usual não transparecia através das palavras – Vai precisar dele, ainda que seja uma viagem curta. Prendi a aljava do lado direito da sela, espero que não se importe.

–Estou levando o meu arco.

–Embrulhando como se fosse feito de cristal e na garupa de um burro. Não me parece muito útil numa situação de perigo. Pegue-o, nós dois sabemos que você fará mais proveito dele do que eu.

Lyvlin aceitou que o amigo fixasse o arco com uma alça larga de couro ao redor de seus ombros, ainda que fosse grande demais para ela.

–Obrigada. – murmurou enquanto se lançava sobre a sela. Gilbert já estava à meia centena de metros de distância e gritava qualquer coisa contra o vento gelado. Lyvlin puxou a pele de lobo ao encontro do pescoço. Presenteou Ezra com um último sorriso e o recebeu de volta. Suas pernas pareciam feitas de chumbo, mas finalmente conseguiu fazer com que Flecha se movesse.

–Vejo você daqui a um mês! – despediu-se Ezra - Tente se manter viva até lá!

–Não se preocupe, estarei. – respondeu a garota puxando as rédeas para o lado para que não pudesse ver seu rosto enquanto o dizia. Acenou para Richard e seguiu as pegadas que Darius deixara na neve sem se virar nenhuma vez.

Gilbert a esperava nos limites do vilarejo. Á frente estendia-se a estrada que levava ao sul, se a seguissem por uma semana chegariam a Ibortam, a capital da província do norte que recebia o nome da grande fortaleza de Faolmagh que se erguia nos limites do reino a milhas de distância. Faolmagh encostava-se a cordilheira de montanhas que formavam a meia lua que envolvia o reino do norte ao oeste, Tureis. Vassand era desta forma protegida dos reinos do oeste por um muro natural de centenas de metros de altura e largura. Um obstáculo que se mostrara grande o suficiente para afastar os inimigos e manteve o oeste livre de invasões por séculos. Aprendera tudo aquilo com Gilbert, uma vez que raramente deixava Evion e quando o fazia era para acampar na floresta com Ezra para caçar ou para visitar os mercados de Perth na primavera.

–Estamos tomando um caminho óbvio. – observou a garota pela enésima vez desde que soubera dos planos – Se seguirmos a estrada vamos caminhar para os braços de quem quer que queira nos matar desta vez.

–A estrada é o melhor caminho. – retrucou Gilbert por meio da barba cinzenta. Sua expressão havia perdido a gentileza de momentos antes, estava agora se concentrando no caminho que seguiam, atento a não sair da estrada que era apenas perceptível pela elevação da neve em seus dois lados.

Era uma pena que soubesse se orientar mesmo com um metro de neve cobrindo a estrada, pensou Lyvlin com frustração. Se não estivesse tão certo do caminho a garota poderia levá-los para longe da estrada principal e para os perigos que ela trazia. O mais certo é que a nevasca da noite anterior tivesse espantado qualquer grupo de bandidos que esperavam por alguma presa fácil, mas ainda assim movia-se inquieta na sela e prestava atenção a qualquer barulho fora da normalidade. Trocou a aljava para o lado esquerdo, sabendo que perderia preciosos segundos caso precisasse dela. Mas precisava sentir Arcturus por perto, por isto amarrou a bainha da espada no flanco esquerdo da sela, a poucos centímetros de onde suas mãos seguravam as rédeas.

O crocitar dos corvos os acompanhava e vez ou outra viu um dos pássaros negros raspar a superfície da neve por cima das plantações, procurando restos da colheita ou sementes que jamais vingaram. A garota sabia que não teriam muita sorte, no inverno as aves seguiam principalmente o odor de alguma carcaça congelada para forrar seus estômagos com alimento. Não contavam com a proteção de árvores naquele trajeto e a ausência completa de arbustos nos quais poderiam se esconder deixava Lyvlin cada vez mais inquieta. Avançavam lentamente e naquele ritmo alcançariam Perth apenas à noite, quando no verão percorriam o mesmo trajeto com facilidade em poucas horas. Era verdade que naquelas ocasiões não arrastavam um burro velho atrás de si, nem precisavam tomar cuidado para os cascos dos cavalos não escorregarem. Forçou Flecha a aumentar a velocidade e ouviu o burro reclamar, mas o ignorou.

–Deveríamos ir para o norte. – falou deixando a égua diminuir o passo assim que emparelharam com Gilbert – Seria a rota menos provável a seguir e a floresta nos protegeria.

–Estamos no caminho certo. – assegurou Gilbert sem olhá-la – Não se preocupe Lyvlin, estamos seguros.

–Por enquanto. Não quero zangá-lo Gilbert, mas se formos atacados por um bando de ladrões ou estivermos caminhando ao encontro de um dos nossos inimigos minhas últimas palavras serão: eu avisei. – resmungou a garota encarando-o aborrecidamente – Você nem sequer se deu o trabalho de contar para onde vamos.

–Para Perth.

–Sim, mas o senhor não quer que eu acredite que vamos passar uma temporada inteira lá quando tem monstros, humanos, deuses e seus mensageiros nos caçando, me corrija se estiver esquecendo alguém. Tínhamos conversado sobre isso antes e concordado que o fato de eu não saber a verdade já não é vantagem. Estou disposta a retardar mais perguntas sobre minha mãe para quando tivermos novamente um teto sobre as nossas cabeças, mas isso eu preciso saber.

Odiava se sentir uma tola tagarela, mas era exatamente nisto que Gilbert a havia transformado nos últimos dias, pois falava apenas quando sentia vontade, deixando-a muitas vezes com respostas monossilábicas, quando sequer respondia. E também agora não parecia ter sorte, porque o velho deu de ombros e fez um carinho no pescoço musculoso de Darius.

–Estamos indo para Ibortam. – respondeu por fim e o fez num tom tão baixo que Lyvlin inclinou-se na sela para ouvir melhor – É uma cidade grande o suficiente para pessoas como nós nos perdermos e sairmos de vista. Uma vez que chegarmos lá farei contato com velhos conhecidos e apenas então traçaremos novos planos.

–E um desses conhecidos poderia me explicar melhor sobre a minha maldição? – ignorou a careta de Gilbert ao mencionar o que ele gostava de chamar de “dom” – Saber utilizar magia poderia revelar-se muito útil.

Era a vez de Gilbert inquietar-se na sela.

–Sim, sim... Suponho que não será muito difícil arranjar alguém que lhe ensine, nem que seja apenas o básico. Mas Lyvlin – agora a olhava fixamente e sua voz assumiu um tom de urgência – você poderá usar seu dom apenas quando for de extrema necessidade, você compreende?

–Sei que pode ser perigoso Gilbert. O velho Marvim contou uma vez uma história sobre um grande mago que proferiu uma sílaba errada do encantamento e virou um sapo! Imagino como deve ter se espantado, mas então uma cegonha o abocanhou e o engoliu inteiro. – adorava aquela história porque sempre imaginava magos como humanos cheios de si, que se julgavam melhores que todos os outros.

–Acredite, virar um sapo será o menor dos seus problemas. – censurou Gilbert – Agora diminua o passo, o burro estará colocando as tripas para fora em breve.

Revirando os olhos deixou que o avô abrisse uma vantagem, mas uma olhada para trás revelou que o que falara estava próximo da verdade.

–Talvez devêssemos fazer uma pausa para que descansem e lhes darmos algo para comer. – gritou.

–Se pararmos para descansar agora não chegaremos antes que o sol se ponha. – foi o grito em resposta.

Não seria agradável se chegassem tarde demais em Perth e os portões da cidade estivessem fechados. Como qualquer cidade um pouco maior do norte era centro de trocas de mercadorias e por este motivo muitas vezes alvo de grupos de bandidos ou mercenários, os grandes portões de madeira e o muro que rodeava a cidade serviam também para manter longe animais famintos. Lyvlin deixou se embalar pelo balanço rítmico da sela, Flecha sabia por onde andava e por isso a garota deixou as rédeas cada vez mais frouxas entre suas mãos. Finalmente fechou os olhos, sentindo a brisa gelada contra o rosto, rachando seus lábios, fazendo o sangue brotar deles quando sorria.

E estava sorrindo. Sorria porque pensava em Ezra. Decidiu que sobreviveria o que quer que enfrentasse, que voltaria para casa assim que tudo estivesse resolvido e que as coisas voltariam a ser como antes. Gostava de estar viajando porque enquanto o fazia estava livre de qualquer outra atividade. Se estivesse em casa estaria caçando, ou cortando lenha, mas agora que estava viajando estava apenas a caminho, não precisava se preocupar com o que precisava fazer. Primeiro chegariam a Perth e depois traçariam um novo plano para Ibortam, enquanto a distância para a cidade diminuía não tinha nada a fazer senão tentar aproveitar. No horizonte esquerdo era possível ver as primeiras árvores da grande floresta do norte, a mesma floresta que contornava Evion. Quando virava o rosto para o lado oposto conseguia ver através do céu límpido os contornos das montanhas de Nasl, um pequeno grupo de montanhas que se erguiam solitárias contra o azul do firmamento. Percebeu pela primeira vez como sua terra natal era bonita e que sentiria falta de cada pedra, clareira e pássaro que conhecia. Sua atenção voltou-se para pegadas que atravessavam o caminho. Apenas com uma rápida olhada sabia que se tratava de um cervo que passara por ali não muito antes, se as seguisse talvez conseguisse uma bela porção de carne. Ignorou o estômago furioso e tomou a decisão de continuar seguindo Darius, afinal Gilbert estava certo e precisavam manter o ritmo se quisessem chegar a tempo.



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Notas finais do capítulo

Aconteceu algo inédito até o presente momento: o próximo capítulo se encontra pronto. Então é só questão de torturar as pessoas sobre a hora de postá-lo e etc. Estou realmente tentando melhorar certos aspectos a cada capítulo e quando paro para olhar para trás acho que talvez esteja chegando perto. Espero que não seja apenas uma impressão.



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