As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 16
Batalha no escuro




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“Beltring, cidade entre montanhas e banhada pelo ouro. Suas torres são altas e os muros inabaláveis. Suas fontes cristalinas, mas por trás de cada sorriso aguarda uma adaga pronta para acertar costas desavisadas.”


Amava Ezra. Era seu único amigo, o porto para qual retornaria sempre. Mas naquela tímida manhã, com a neblina noturna ainda tecendo véus flutuantes ao redor do Ligeiro, quis matá-lo. O empurrou para trás, também para colocar-se entre ele e Adisa e gritou.

– O que está fazendo aqui? - o deteve de colocar mais uma flecha no arco com uma tapa – O que está fazendo aqui Ezra?

Ezra a encarou, o rosto frio como as ilhotas que batiam contra o casco do navio. E com aquele olhar parecia bater diretamente em seu rosto.

– Estou salvando você. – disse categórico.

– Posso ver isso. Agora cale a boca, vou tentar fazer com que não viremos churrasco. – sua voz atenuou-se – Ela era uma ótima pessoa.

Parecia que iria dizer algo, mas neste momento ouviram o grito de dor de Adisa. Estava debruçando-se sobre a borda da embarcação, encarando a água como se esperasse captar um vislumbre de Desmera caso se esforçasse o bastante. Mas isso durou pouco e quando virou-se fogo dançava entre seus dedos. Quando seus olhos pousaram sobre o arco que Ezra segurava a barriga de Lyvlin revirou-se. Não. Foi a única coisa que conseguiu pensar antes de se jogar por cima de Ezra e para longe da onda de chamas lançada em sua direção.

– LEVANTE! – gritou Adisa, aproximando-se. A cada passo que dava parecia ser envolvido por uma nova camada de fogo – Estou apenas me aquecendo.

Por onde suas botas haviam passado a madeira enegrecia chamuscada.

– Adisa, você vai afundar o navio. – tentou a garota.

– E você acha que me importo? - só agora parecia perceber a sua presença, mas sua expressão voltou a escurecer quando viu que estava diante de Ezra – Saia daí, não é você que quero incinerar.

– Não posso. Ele é um amigo. – levantou-se e deu alguns passos adiante, tomando o cuidado de manter Ezra atrás de si – Adisa, isso foi um terrível engano. – disse, esperando que Ezra tivesse uma boa história para contar, caso sobrevivessem – Podemos olhar por ela, Desmera é forte...

Como resposta Adisa ergueu a mão e a garota estava pronta para se jogar no chão novamente, mas no lugar de um ataque o garoto apenas observou as chamas faiscantes. Elas dançavam, amarelo, laranja e vermelho e algumas pequeninas se desprendiam do grupo e voaram levadas pela brisa.

– Está vendo? - quis saber, hipnotizado pelo fogo – Essa é a prova. Isso é tudo que preciso para saber que ela está morta... E que seu amigo tem que segui-la.

– Estou aqui apenas para levar Lyvlin para casa. – Ezra tinha se recuperado e encaixava uma nova flecha. Parado ali parecia levar as palavras muito a sério – Se a garota era inocente eu sinto muito, de verdade. Mas não é o que parecia.

– E você parece vivo. – disse Adisa – Vou remediar isto.

Emanava tanto calor que a madeira abaixo deles rangeu em protesto. Por cima de seu ombro Lyvlin viu que marinheiros se amontoavam no deque sem saberem ao certo o que fazer. Pensou se havia alguma saída, não permitiria que Ezra se ferisse, mas temeu que Adisa não pararia quando os dois estivessem mortos. Na verdade não sabia se ele conseguiria parar nem se quisesse.

– Já é o suficiente – Raoul estava diante da escada e Lyvlin pensou ter visto a luz do sol que se erguia refletir-se entre seus dedos. Com um sentimento misto deu-se conta de que eram as pequenas lâminas – Adisa se afaste.

Adisa nem se deu o trabalho de se virar.

– Não ouse se intrometer. Ele matou Desmera.

– E você vai matar a todos se não se controlar.

– Ah, mas eu não quero me controlar. – cerrou os punhos, os olhos fixados em Ezra – Quero queimá-lo.

– Sabe que não me trará nenhuma felicidade amigo, mas o farei se forçar a minha mão. Cairá assim que fizer o primeiro movimento. Eu peço isto: não o faça Adisa. – falou, se posicionando melhor.

– Então vou ser bem rápido. – Adisa ergueu as mãos e Lyvlin ouviu Ezra libertar a flecha atrás de si. Não as via, mas sabia que as lâminas de Raoul estavam a caminho das costas de Adisa. Não queria ver nada daquilo e por isso fechou os olhos.

Acima de todos um falcão mergulhou gritando. Lyvlin foi jogada para trás e quando abriu os olhos viu que o mesmo havia acontecido com todos os outros. O arco de Ezra estava quebrado, Adisa parecia completamente desorientado, mas inteiro. Raoul subiu até eles com Astaroth em seu ombro e de repente Desmera bateu contra a madeira ao lado deles.

– Sempre errando a altura. – reclamou, esforçando-se para respirar.

As flechas ainda estavam presas em sua carne, longas hastes negras enterradas em seu corpo e só de vê-las a raiva que sentira por Ezra voltou dobrada. Desmera estava encharcada de água gelada misturada com sangue e tremia violentamente.

– Ei – disse quando Adisa se abaixou ao seu lado sem um resquício da loucura que o tomara momentos antes. Quase podia ver o laço entre eles se restabelecer silenciosamente. Adisa afastou os cabelos de seu rosto, acariciou-o e baixou os olhos para seus ferimentos. Quando voltou a encará-la lágrimas escorriam pelas suas bochechas.

– Eu não posso curá-la. – chorou.

Desmera trouxe a sua mão para entre as dela.

– Não somos número doze por nada. Eu consigo aguentar.

– Na verdade não. – Raoul se aproximava, Astaroth encarou Lyvlin e levantou voo. Não parecia com vontade de ajudar mais uma vez.

– As flechas estão muito fundas, é de se admirar que ainda esteja viva. – abaixou-se ao lado de Adisa e pousou a mão sobre a testa de Desmera – E já começa a ter febre.

– Sempre fui uma pessoa admirável. – a garota fez uma careta, vislumbrou Ezra por trás dos ombros de Lyvlin, mas nada disse sobre ele.

– Você vai salvá-la. – falou Adisa para Raoul – O seu treinamento deve servir para algo.

– Não para coisas assim, receio. Posso limpar a ferida, podemos certamente aquecê-la. Mas aquela flecha ali? Está perto demais do coração, não podemos removê-la.

– Como assim “não podemos removê-la”? Ela não pode andar por ai com uma flecha atravessando seu corpo!

– Nisso concordamos.

Desmera fechou os olhos, arquejando. Lyvlin viu cada vez mais sangue empapar o seu vestido e foi tomada por uma onda de enjoo.

– Então ótimo. – Adisa levantou-se e apontou para Ezra, conjurando mais fogo – Lyvlin a cura. E caso não conseguir esse dai morre.

– Eu não posso. – disse Lyvlin.

– Ela não pode – concordou Raoul – E dificilmente seria justo.

– Não se engane Raoul, pouco me interessa ser justo agora. – acenou para Lyvlin se aproximar – Ela tem magia, Desmera sentiu que era forte. E não descobrimos se podemos curar até tentar.

– É perigoso.

– É a única forma de salvá-la, Raoul. Você sabe.

– Eu... Posso tentar. – Lyvlin olhava para Desmera, esperando que tivesse apenas desmaiado – Mas não sei como.

– Você precisa desejar que as feridas se fechem, que o corpo se remende. – disse Adisa, apesar de não parecer ter certeza – E precisa se concentrar isso é o mais importante.

– Vou tentar com todas as minhas forças, mas não com a vida de Ezra como moeda de troca.

– Sua tentativa já salvará a vida dele. – assegurou Raoul, ignorando o protesto de Adisa – Viverá, seja quem for, até ser propriamente julgado.

– E então será morto conforme a lei. – Adisa pareceu satisfeito e abriram espaço para Lyvlin – Segure a mão dela com força, não solte ou a conexão será quebrada.

Anuiu em silêncio. Fechou as mãos sobre as de Desmera que parecia cada vez mais distante e fechou os olhos.

Tentou estender-se até a garota, senti-la, alcançá-la de alguma forma. Mordeu os lábios, sentindo o suor formar-se em sua testa apesar da manhã fria e desejou que Desmera fosse curada, desejou por ela e por Ezra porque era a única forma de consertar as coisas. Desejou tanto que a escuridão começou a se mexer e de repente chovia diante de seus olhos fechados. Chovia, mas não molhava.

– Continue. – ouviu a voz calmante de Raoul, mas era como se falasse de muito longe.

Apertou as mãos contra as de Desmera com mais força e sentiu que seu próprio corpo era desenhado no escuro e percebeu que poderia andar livremente se quisesse. Deu o primeiro passo e perdeu o equilíbrio, porque andava sobre o nada. Mas não caiu, no lugar disso uma fonte de luz nasceu mais à frente, não sabia se estava perto ou longe, mas correu em sua direção mesmo assim. Quando estava perto o suficiente pôde ver que a luz era uma esfera prateada que flutuava errante de um lado para o outro. Estava tão tomada por aquele adensamento de névoa luminosa que tropeçou sobre algo e só então descobriu que a esfera guardava o corpo de Desmera. Parecia ainda pior que a Desmera que descansava no Ligeiro, os lábios tremiam e os olhos eram dois buracos fundos em seu rosto. O quente tom avelã que tingia a sua pele fora substituído por cinza, os cabelos compridos e alvos estavam negros, espalhados em volta de sua cabeça como um adorno mortuário. Lyvlin ajoelhou-se ao seu lado e instintivamente suas mãos dispararam em direção às dela.

Assim que a tocou sentiu a dor lacerante. Gritou e quis soltar, mas sabia que se o fizesse a perderia e no lugar disso cravou as unhas sobre as costas das mãos de Desmera. Arquejou, o ombro explodindo num turbilhão de dor ardente e logo depois sentiu a ponta de uma flecha invisível cravar-se em seu peito. Mordeu os lábios até sentir o gosto salgado de sangue, gemendo e chorando como uma criança.

– Isso não está certo. – escutou Raoul e dessa vez mal conseguiu distinguir suas palavras – Está vendo? As feridas estão se abrindo em seu corpo, não está curando, apenas as está transferindo.

– Parece o mesmo para mim.

– Adisa você sabe que não é.

– O que está acontecendo? - essa era a voz urgente de Ezra, um lamento morreu na garganta de Lyvlin – Está sangrando, faça parar!

– Não! – gritou Lyvlin para a escuridão ao redor – Está funcionando!

E realmente estava. Devagar a cor voltava ao corpo de Desmera, primeiro os cabelos depois lentamente deslizou para o resto do corpo. Mas ela não se mexia, Lyvlin ignorou a dor e debruçou-se sobre ela. A luz prateada refletia sobre seu rosto imóvel, mas o que a deixou preocupada era que a garota não parecia respirar. A névoa prateada se agitou e dispersou, deixando-a no escuro.

Foi nesse momento que sentiu duas mãos se fecharem sobre seus ombros e puxá-la para longe. A pressão foi enorme, a cabeça girou e repentinamente se viu cercada pelo caos e invadida pela dor.

Estava de volta ao Ligeiro. Ezra a segurava nos braços, quis protestar e mandar que a soltasse, mas quando abriu a boca para falar tossiu sangue. Peito e ombro ardiam num pulsar surdo e os olhos tornaram-se pesados. Então viu Desmera abrir os olhos e ouviu o alívio de Adisa. Olhou para o alto, diretamente no semblante preocupado de Ezra. Só naquele momento percebeu como havia emagrecido, como escuras bolsas de pele fizeram morada debaixo de seus olhos e como os cabelos ruivos estavam desgrenhados e sujos.

– Está tudo bem. – mentiu, tentando sorrir sem sucesso.

– Não está Lyv, não minta para mim.

Raoul abaixou-se e examinou-a rapidamente com os olhos. Seu suspiro de alívio encheu Lyvlin de esperanças, talvez não morreria ainda afinal.

– Temos que levá-la para baixo para que possa tratá-la. – disse, se levantando – Foi bom ter interrompido a conexão quando o fez, foi o suficiente para manter Desmera viva e insuficiente para colocar Lyvlin em seu lugar. Adisa leve Desmera para a cabine de vocês, passarei por lá assim que terminar com Lyvlin.

“Assim que terminar com Lyvlin” não parecia muito animador, mas a garota não estava em posição para protestar de qualquer forma. Enquanto Ezra a carregava, ignorando qualquer ajuda oferecida por Raoul, sentia como sangrava mais e mais. Sentia-se esgotada, o corpo estava quebrado, a mente exausta. Quando alcançaram as escadas para o deque os marinheiros se esquivaram do seu caminho. O capitão Mirek subia apenas agora as escadas, com um pedaço de carne de porco pendurada em sua barba o que denunciava a natureza da sua demora. Falou algo como “não, a pequena Lyvlin!” e deu passos desajeitados na direção deles, mas Raoul o manteve afastado com um gesto e palavras calmantes.

Insistiu que Lyvlin fosse levada para sua cabine, o que não era de todo mal uma vez que era consideravelmente maior que a da garota. Liderou-os mostrando o caminho e quando Ezra a deitou na cama parecia não saber exatamente como continuar.

– Está tudo bem Mirek. – disse Raoul, puxando uma cadeira para diante da cama – Apenas mande buscar as minhas coisas, um pouco de água fervente e um pano limpo.

O capitão anuiu e saiu em disparada.

– Foi teimosa Lyvlin. – começou Raoul assim que Ezra era a única pessoa presente além deles – E quase conseguiu ser morta. Cura por transferência não costuma ser algo bonito, você teve sorte.

– Foi necessário. – limitou-se a dizer, mais porque achava que não conseguiria dizer alguma outra coisa.

Permitiu que ajeitasse os travesseiros atrás de suas costas enquanto esperavam e quando Mirek finalmente retornou Lyvlin estava próximo do desmaio.

– Pode ir agora Mirek, vou consertá-la. Prometo.

O capitão não parecia querer ficar mais tempo que o necessário e deixou a cabine com um gesto de despedida para a garota.

– Eu vou ficar aqui. – desfiou Ezra, cruzando os braços.

– Caso não incomode Lyvlin não tenho nada contra. - era uma resposta que Ezra não esperava e por um curto momento sua expressão raivosa suavizou-se. Aproximou-se ficando do outro lado da cama e segurou a mão de Lyvlin, coisa que ela sabia que precisaria.

– Vou ter que remover sua camisa. – avisou Raoul, molhando o pano na tigela de barro e espremendo-o para remover o excesso.

Era algo óbvio e que deveria ter esperado desde o começo, mas ainda que estivesse pairando entre o desperto e desfalecido a ideia não a agradou. Observou Ezra pelo canto dos olhos, mas seu rosto pálido não revelava que tivesse ao menos escutado o que Raoul dissera. Por fim anuiu, forçou-se a erguer as costas um pouco e fez uma tentativa terrível de levantar os braços, o que não funcionou. Raoul puxou uma faca e sem cerimônia cortou o lado que vestia o ombro machucado e então estava nua da cintura para cima. Desfalecer não parecia uma má ideia agora, ao menos a salvaria do constrangimento. No lugar disso viu Raoul passar o frasco que cheirava terrivelmente forte para Ezra e instruí-lo a segurar debaixo do nariz dela caso desmaiasse.

– Não quero arriscar. – falou, limpando a ferida do ombro primeiro com água, depois com uma substância que queimou tanto que Lyvlin quase quebrou os dedos de Ezra.

– Achei que poderíamos encontrar as pontas das flechas, nunca podemos ter certeza com magia. – dizia Raoul. Suas mãos trabalhavam treinadas e suaves e mesmo quando voltou suas atenções para o ferimento entre seus pequenos seios não demorou mais tempo que o necessário tocando-a. Lyvlin não o encarava, ainda assim. Nem a ele nem a Ezra, cuja presença sentia apenas pelo calor de seus dedos longos entre os seus.

Raoul encheu as feridas com ervas secas, o que rendeu alguns praguejos da garota ao que respondeu com o primeiro sorriso daquela manhã.

– Vejo que já se sente melhor.

Esperou até as feridas secarem e as enfaixou com panos limpos.

– Estes vão ser trocados periodicamente. – dizia enquanto envolvia seu ombro e apertava com força – Desculpe.

Puxou um agradável cobertor de peles até seu pescoço e arrumou as coisas para fazer o mesmo procedimento em Desmera.

– Teremos que conversar sobre a sua situação depois. – disse a Ezra que anuiu – Agora alguém precisa ficar com Lyvlin.

Assim que deixou a cabine Ezra cruzou os braços sobre a cama e escondeu o rosto. Lyvlin sentiu seu corpo tremer quando pousou a mão em cima de seu ombro.

– Veio um longo caminho para fazer uma grande bagunça. Típico. – disse com suavidade. De alguma forma não conseguia mais sentir raiva, não queria mais sentir.

– Fui um grande idiota.

– Isso não se deixa discutir.

Ezra ergueu a cabeça, os olhos duas esferas de âmbar polido. Como havia sentido falta daqueles olhos.

– Gilbert voltou para Evion sem você e assim que o encontrei sozinho me falou que você havia caído em mãos de homens da guarda real que a levariam a Ciandail. Não tentou me impedir quando disse que a libertaria.

– Você mostrou infinitamente mais empenho pela minha segurança do que ele. Quando Raoul e Casimir nos encontraram Gilbert me abandonou. – as palavras ainda eram amargas. Ezra deve ter notado o rancor que a preenchia, porque não fez mais perguntas sobre isso.

– Casimir é o esquentado? - quis saber no lugar.

– Não, este é Adisa. Casimir não está aqui. – o que era muito bom – São pessoas boas Ezra, todos eles. E Desmera mais que todos juntos. – esperou um momento para que as palavras tivessem efeito – Preciso dominar a magia que carrego, do contrário serei uma ameaça para mim e para os que me cercam.

– Não precisa ter magia para ser isso. – Ezra gargalhou e Lyvlin sentiu os cantos dos lábios se curvarem em um sorriso involuntário.

– Não o assusta?

– Você? Desde sempre.

– Minha magia, Ezra.

– Não. Você curou aquela garota e impediu uma grande injustiça, não precisa ter medo do que você é pequena, até porque não é das piores. Agora descanse. Vou estar aqui quando acordar.

O ouviu puxar uma cadeira e notou o pequeno afundar do colchão de palha quando esticou as pernas sobre a cama. Ezra cruzou os braços e abaixou a cabeça, pronto para ter o primeiro tempo de descanso em muito tempo. O observou relaxando os músculos e espaçando a sua respiração até atingir um ritmo calmo.

– Está arrependido por ter vindo? – perguntou, sentindo os olhos cada vez mais pesados.

– Você sabe que não.

Fechou os olhos imaginando que seria difícil dormir. Dez segundos depois caiu no sono e por muitas horas dormiu como uma pedra.


O restante da viagem ocorreu sem maiores incidentes. Depois de dois dias Lyvlin estava de pé novamente, aproveitando o tempo para conhecer melhor a tripulação do Ligeiro e mantendo vigília ao lado de Desmera. Mesmo tendo transferido a maior parte dos ferimentos para si a garota teve dificuldades para melhorar. Havia passado tempo considerável na água gélida e reunido suas últimas energias no feitiço que a trouxera de volta ao Ligeiro, mesmo com os esforços concentrados de Raoul Desmera só mostrou melhora depois de uma semana. Uma semana particularmente perigosa para Ezra, que ainda recebia olhares fulminantes de Adisa mesmo depois de Desmera deixar seu leito. Uma vez a rede que usava para dormir pegara fogo, mas Adisa culpava um braseiro defeituoso e ninguém tinha vontade de começar uma nova briga. A situação de Ezra fora resolvida com alguma confusão com Adisa exigindo sua morte e sendo ruidosamente apoiado pelo capitão, o que fez com que Raoul tivesse que usar toda a sua lábia para evitá-lo. Depois de desperta Desmera deixou claro que não desejava a sua morte, o que encerrou a questão.

– No fim nada de mal aconteceu. – disse em uma manhã enquanto se debruçava sobre a borda do navio com Lyvlin. Estavam procurando lontras que a garota jurara ter visto mais cedo. Assim que a vira subir ao deque Ezra descera, o que havia se tornado uma espécie de rotina. Lyvlin achava que não tinha coragem de encará-la depois do que acontecera e podia entendê-lo – Ah, olhe ali! – arquejou apontando – Três deles! E como são fofos!

Lyvlin anuiu. Ainda não se acostumara com a mudança de paisagem que acontecia ao seu redor a cada dia. Há cinco dias não viam mais ilhotas de gelo e a neve na margem parecia diminuir a cada novo amanhecer. Naquela região o Grande Girtrab perdia um pouco de sua largura, o suficiente para que pudessem ver as florestas que se erguiam nas margens. As árvores carregadas de neve se espelhavam na água cristalina e vez ou outra um grupo de patos selvagens passava numa bagunça de grasnados sobre suas cabeças. Passavam muito tempo no deque, onde ocasionalmente Desmera, Adisa e Raoul treinavam (e algumas vezes deixavam Lyvlin participar, essas eram as suas manhãs favoritas). Naquelas situações até Ezra surgia dos andares inferiores e observava por algum tempo. Se aquilo ajudava a provar a ele que nenhum deles era perigoso Lyvlin não tinha tanta certeza, mas oferecia uma opção menos monótona a como os dias costumavam seguir a bordo do Ligeiro.

As noites também eram divertidas. Os marinheiros cantavam e cantavam, músicas alegres que os lembravam de casa ou simplesmente exaltavam a vida no mar. Lyvlin muitas vezes escutava a cantoria e ria das danças improvisadas. Havia pedido a Raoul para ser responsável pela comida de Astaroth e depois de duas noites que passara empoleirado nas velas examinando-a com desconfiança o falcão levantou voo e teceu círculos cada vez menores no ar, até dar um mergulho rasante e arrancar a carne que a garota segurava. Não havia sido o melhor dos começos, mas a ave a intrigava e estava determinada a ganhar o seu respeito. Nas últimas duas semanas a bordo do navio a situação melhorara ao ponto do falcão engolir a comida enquanto cravava suas garras nas luvas da garota e Raoul jurava que o animal começava a gostar dela. Lyvlin não partilhava da sua confiança, mas na noite anterior à chegada ao porto fez menção de acariciar a sua cabeça ao que a ave respondeu com um bater de bico a poucos centímetros de seu rosto. A garota fingiu perceber o aviso, mas assim que a ave começou a comer pousou o indicador sobre sua cabeça e se maravilhou em como era macia. Astaroth congelou durante alguns segundos, no fim aceitou e quando engoliu o último pedaço soltou um chamado de agradecimento antes de desaparecer na noite. A garota perdeu-se olhando para as estrelas no firmamento e perguntou-se quando haviam ficado tão brilhantes. O vento gélido do norte havia ficado para trás e de alguma forma sentia falta, mas era o tipo de falta que nunca esperava sentir, o tipo que não passaria pela sua cabeça caso alguém perguntasse do que sentia saudades de casa.

A última vez em que realmente sentira as bochechas coradas pelo frio foi quando haviam aportado em Ibortam, a maior cidade do norte para reabastecer os porões e tudo que Lyvlin vira da capital de Faolmagh fora a intensa fumaça que saia de seu exército de chaminés. Cada uma levava a um poço de fundição, onde os robustos metais do norte eram derretidos e moldados nas melhores armas de Vassand. Tudo isso Raoul lhe contara depois de recusar a ideia de uma pequena expedição diurna. Uma vez que proibira um passeio ao redor da cidade resolveu contar tudo que sabia sobre ela, o que levou todo o tempo que os homens precisaram para carregar o navio com os mantimentos que faltavam. Carne salgada em tonéis, barris de cerveja e vinho, farinha para pães e peles que Mirek pretendia vender em Ciandail uma vez que o inverno batesse à sua porta.

– É uma noite agradável. – disse Raoul, juntando-se a ela e afastando suas lembranças. Haviam deixado de usar os longos casacos de pele há uma semana e a túnica prateada que usava juntamente com os cabelos loiros lhe dava um ar etéreo, coisa que o Ligeiro havia perdido qualquer traço. O capitão procurava manter sua tripulação com o trabalho diário rigorosamente inspecionado, mas cada milha que os aproximava de Beltring parecia diminuir a importância que os marinheiros davam a limpeza. O navio fedia e Lyvlin temia ficar com aquele cheiro queimado em sua pele para sempre. Banhar-se era um luxo longe de seu alcance e mesmo em limpar-se a cada noite com um pano úmido estava falhando. Em breve o vestido que Desmera a emprestara estaria arruinado e jamais teria coragem de pedir mais um.

– Estamos cruzando a fronteira de Faolmagh. – anunciou o rapaz, fechando as mãos atrás de suas costas – Finalmente estamos voltando para casa.

– Nunca estive tão longe da minha.

– E isso a deixa inquieta?

– Me deixa empolgada e ansiosa.

– Bom. Foi isso que senti a primeira vez que atravessei os muros de Beltring. A cidade não a desapontará.


Na manhã seguinte Lyvlin acordou com as ordens gritadas do capitão. Puxou o vestido sobre a cabeça e lavou rapidamente o rosto, deslizou para dentro das botas gastas e subiu até o convés. De imediato contemplou as montanhas que se erguiam de cada lado da margem, altas e pontiagudas, como facas rochosas que se erguiam contra o céu. Não haviam passado por uma parte tão estreita do rio antes, parecia ser suficiente apenas para três navios passarem lado a lado sem se atracarem. Lá em cima árvores tentavam entranhar suas raízes em espaços entre as pedras que não pareciam existir. Cânhamos e bétulas, mas também imensas castanheiras.

– Me pergunto como não caem lá de cima. – dizia Adisa para Desmera. Os novos ares amenos haviam feito bem a ela, debaixo dos primeiros raios de sol piscando através de falhas nas paredes rochosas sua pele radiava morena e saudável. Com um aceno chamou Lyvlin para seu lado e a garota hesitou um momento, decidindo-se por fechar a mão sobre a de Ezra que mais uma vez estava afastado do grupo e puxá-lo até os outros. Adisa adotara a postura de ignorá-lo na última parte da viagem, mas vez ou outra surpreendia Ezra conversando com Desmera. A cada dia que a garota ficara mais forte, a culpa dentro dele parecia diminuir e Lyvlin se sentia contente.

– Vamos chegar em breve – Desmera sorriu para eles e apontou adiante, onde o longo corredor de água parecia se alargar – A baía Dourada. Beltring se ergue ao final dela.

Lyvlin apenas anuiu, porque de repente frio apossara-se de sua barriga. Observou o fim de o corredor montanhoso aproximar-se cada vez mais e sentiu que em breve a sensação de segurança que proporcionava estaria perdida. Um navio passou por eles num turbilhão de espuma, uma clara galé mercantil de sessenta remos.

– Há mais uma maneira de atingir a baía, nós viemos da estrada norte. – Desmera não parecia mais capaz de esconder a felicidade pela viagem estar perto do fim - A outra maneira é vir do mar e passar pelo desfiladeiro de Sadr. É um caminho mais estreito, apenas um navio pode passar cada vez o que garante certa segurança em caso de ataque estrangeiro. Água vinda do mar circula os muros da cidade baixa e da cidadela, quando as grandes pontes são erguidas Beltring é inatingível.

– Ou assim gostamos de dizer. – murmurou Adisa.

Mirek gritou ordens para que seus homens fechassem as velas e de repente o corredor deu lugar a uma imensa clareira de água salgada.

Imediatamente compreendeu o nome que a baía recebera. Pareciam ter adentrado uma lagoa de ouro derretido que só era interrompida por mais um corredor de água muito adiante. Lyvlin debruçou-se sobre a borda do navio e viu que o leito da baia parecia ser constituído de toneladas de moedas de ouro. Mirek girou totalmente o leme com uma quente gargalhada e diante deles, encravada nas montanhas como se fosse parte delas erguia-se Beltring com suas torres e muros brancos. Era tão linda e grandiosa que Lyvlin não conseguia fechar a boca. A baía estava recheada de navios com os mais estranhos estandartes e bandeiras. Lyvlin viu uma lebre das neves, um leão e uma cobra enrolada. Viu também diferentes folhas adornarem as bandeiras dos navios e luas e sóis. Estava sendo inundada por cores e sons, cheiros e sensações que nunca experimentara antes e estava tão envolvida pela cidade que não percebeu Raoul ao seu lado.

– Agora a situação com Ezra pode ficar complicada. – falou baixo o suficiente para que apenas ela o ouvisse – Fale para que se junte a tripulação no desembarque, assim atrairá menos atenção e ninguém fará perguntas desnecessárias. Diga que amigos o encontrarão antes do meio dia e o levarão ao lugar onde poderá esperar por nós.

– Eles virão Raoul? Como sabe que ele acreditará nessas palavras? - Ezra retribuía o aceno da tripulação de um cargueiro que se arrastava lentamente na direção contrária.

– Acreditará se elas virem de você. Se me permite, tenho alguns arranjos para fazer antes de aportarmos.

Lyvlin o observou afastar-se tentando imaginar como Beltring mudaria o relacionamento deles. Observando-a se aproximar a cada conjunto de remadas parecia impossível haver qualquer maldade além daqueles muros. Achou que o capitão teria dificuldades para aportar sem bater em nenhuma daquelas embarcações, mas as mãos de Mirek eram firmes e momentos depois o Ligeiro deslizava para seu espaço nas docas e grossas cordas foram jogadas do deque. Lyvlin observou o movimento nas calçadas feitas de pedras alvas (como tudo daquela cidade parecia ser), mercadores gritavam ordens para servos que carregavam sacos com os mais diversos conteúdos e marinheiros esfarrapados andavam para cima e para baixo, rindo e fazendo piadas ou apenas esgotados depois de mais uma viagem. O navio ao lado deles descarregava caixas e mais caixas de joias e pedras que brilhavam incandescentes contra a luz do sol. Viu o capitão do navio em pé no deque, parecendo completamente relaxado.

– Não tem medo de ser roubado? - quis saber Lyvlin gesticulando para o homem cujos trajes pareciam tecidos em ouro.

– É uma galé ratriana – disse Adisa como se aquilo explicasse tudo e quando percebeu que não acrescentou impaciente – Só um louco tentaria roubar de uma galé ratriana, trazem tantos tesouros quanto assassinos. E você não iria gostar de ter seu nome na lista deles.

A atenção de Lyvlin foi chamada para um novo grupo que se aproximava na calçada. A maioria das pessoas usava roupas simples de cores neutras, mas a pequena comitiva que vinha diretamente na direção do ligeiro era tudo menos simples. Deviam ser guardas porque todos usavam espadas amarradas às cinturas, armaduras leves e lanças. Um estandarte dourado e vermelho era erguido no meio do grupo, mostrando o que devia resultar do cruzamento de um leão das montanhas com uma águia. É o brasão da cidade. Pensou enquanto observava o líder da comitiva lutar contra sua montaria nervosa. O garanhão negro não parecia empolgado com a ideia de se aproximar da água e virava as orelhas, seu cavaleiro apesar de ostentar uma armadura de escamas esmaltadas estava muito longe de fazer jus à imagem que deveria passar. Depois de quase atropelar um vendedor de peixe irritado conseguiu fazer o cavalo parar, abriu a viseira de seu elmo e levantou a mão diante do rosto para proteger-se do sol enquanto olhava para o Ligeiro. Gritou algo que a garota não conseguiu entender, mas Adisa que acompanhara toda a comoção ao seu lado soltou um praguejo.

– Não ele de novo. – disse revirando os olhos – Posso tocar só um pouquinho de fogo desta vez?

– Não. – retrucou Desmera, o cenho franzindo-se em preocupação – Chame Raoul, ele parece sério desta vez.

– Ele sempre parece sério.

– Algum problema? – Lyvlin observava o homem descer do cavalo e checar se sua capa estava impecável. Cruzou os braços esperando a rampa do Ligeiro ser estendida, depois mandou seus homens a subirem com um leve aceno.

– É o que parece. Mas nada que Raoul não possa consertar. – não parecia muito confiante em suas palavras, mas era difícil ver aquele homem como ameaça.

O homem com a armadura de escamas foi o último a subir a bordo. Retirou o elmo revelando uma penugem cinzenta sobre a cabeça e inspecionou a tripulação com olhos severos.

– Onde está Raoul Cadarn? - exigiu saber com voz afetada.

A parte visível através da barba de Mirek ficou vermelha e Lyvlin o viu cerrando os punhos. Desmera tocou seu braço com suavidade e os ombros do homem pareciam relaxar lentamente.

– Onde está Raoul Cadarn? - repetiu o homem, atingindo um tom agudo desconfortável na última palavra – Eu não vou perguntar três vezes.

– Estou aqui Gilles. – disse Raoul surgindo das escadas – Não precisa gritar, consigo escutá-lo perfeitamente.

– Então por que não respondeu da primeira vez? - quis saber, logo depois mudando de ideia – Está com um terrível problema garoto, esse será um dos meus dias favoritos. Ah, se vai.

– Existe algo que veio fazer aqui? Além de nos entediar até a morte, é claro. – Adisa cruzou os braços diante do peito, um pequeno sorriso brincando nos lábios.

Você. Hoje deve ser o meu dia de sorte. – voltou-se para seus homens e ergueu teatralmente a mão – Raoul Cadarn, garoto chamuscado e todos os demais aqui – deu um giro apontando de Desmera até capitão Mirek – Estão presos em nome do comandante da guarda, lorde Trillian, que mil vezes seja saudado etc., por desacatar a ordens expressas de nossa majestade. Vamos ver quanto sua lábia vale, Língua de Prata.



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Notas finais do capítulo

Capítulo novamente muito longo, sinto muito, mas não vi um ponto oportuno para dividi-lo e no fim das contas não queria. Tem seus altos e baixos e é o primeiro dos três últimos com o qual não fico totalmente satisfeita, mas oh well...Não sei se o site tá brincando comigo novamente, mas de acordo com as estatísticas tenho mais leitores que as que se manifestam (luv ya my dear) e não sei se são pessoas que leram dois capítulos pensaram "jesus, não" e debandaram, ou se são pessoas que simplesmente pararam de ler em algum ponto ou se continuam comigo, mas não se manifestam porque sim. Então essa nota vai pra você, querido leitor anônimo, que por algum motivo não deixa pegadas (talvez até pelo maior engano possível do "não faz diferença"). Sou muito de escrever quando sinto impulso (esse capítulo por exemplo foi escrito nos dois últimos dias) e não é impulso de criatividade, não sei se dá pra notar pela qualidade oscilante, mas sim de sentir obrigação de contar essa história para alguém (e por consequência me sentir feliz). Então nem sei se estou realmente escrevendo para ninguém, mas peço isso: saia das sombras. Venha me contar o que está achando, o que posso melhorar, no que estou errando porque é o maior combustível que posso ter (e uma dose de coragem que preciso para silenciar o monstrinho da auto-crítica). Essa nota opcional versão redação é fruto de postagem de madrugada e pode ser apagada mais tarde, mas saiba isso: se leu até aqui você merece um cookie. Até a próxima (:NOVIDADE: adicionei mapas na sinopse, deem uma olhada se quiserem