As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 15
O Ligeiro




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“Cortaram a nossa fuga. Recebemos chicotadas por cada passo que demos para longe do acampamento. Rayna desmaiou depois da nona. Mas eu aguentei mais, eu sempre aguentei mais.”

– Foi isso que ela disse sobre a magia dela?- perguntou Adisa, labaredas dançando em volta de sua cabeça. Estava incrivelmente mais agradável depois que partiram da estalagem e Desmera retirar o bloqueio, até deixara Lyvlin emparelhar com a sua montaria para conversarem ao longo do caminho.

Desmera cavalgava ao lado de Raoul mais adiante e vez ou outra lançava um olhar para seu companheiro, mas não parecia alarmada com o que ele poderia contar. Usava os cabelos presos naquela manhã e o imponente garanhão branco que montava tinha a crina tão alva quanto as madeixas de sua dona. Lyvlin recebera um simples cavalo de reserva que Willas cedera em troca de algumas moedas. Era o menor dos quatro e exibia um contraste injusto ao lado de sangue quente negro de Adisa que parecia partilhar com ele a certeza de que era o ser mais maravilhoso que havia.

– Quando chegarmos receberá um cavalo melhor. – prometeu Raoul ao ver sua falta de entusiasmo enquanto selava o animal. Não queria explicar a ele que seu descontentamento não se devia ao cavalo e sim a não ter conseguido se despedir de Ana. A garotinha ainda não despertara quando deixaram a estalagem na primeira luz do dia, forçando Lyvlin a deixar palavras de despedidas com Willas.

Era um dia de céu límpido e cavalgavam há algumas horas sem incidentes. A presença de Adisa deveria manter qualquer grupo de bandidos mais afoito a certa distância. O cavalo de Lyvlin ainda virava as orelhas nervosamente vez ou outra, levaria algum tempo para que se acostumasse com o fogo.

– Disse que existem muitas formas diferentes de magia. –respondeu Lyvlin, com os olhos no céu. Um grupo de andorinhas que voava muito acima de suas cabeças deu um chamado de alerta e a garota viu um falcão mergulhar – E que algumas são mais agradáveis que outras.

O falcão se recuperara de sua queda livre, mas o ataque fora em vão. Adisa observou Desmera que conversava gesticulando com Raoul.

– É verdade. Não é exatamente uma escolha, nascemos com uma essência. Podemos rejeitá-la e tentar transformá-la, mas nunca atingiremos o nosso potencial e se não podemos alcançá-lo não vale a pena.

– Mas então podemos mudar de uma forma de magia para outra?

Adisa refreou o garanhão e encarou-a.

– Acha que pessoas podem mudar Lyvlin Tessart? Porque para usar outra forma de magia precisamos mudar a nossa essência. Pessoas não mudam. Podem prometer e querer com toda a força, mas no final sempre voltam ao começo. Aqueles que conheço que tentaram mudar terminaram fracos porque a mudança não foi bem sucedida. Tornaram-se fracos porque não aceitaram a sua natureza e esqueceram que com intenso treinamento todas as formas de magia são equivalentes em poder. – menos os linair, claro, mas sobre eles um dos anciões poderá lhe explicar melhor.

Lyvlin anuiu, tentando não transparecer o nervosismo. Fora disso que Laoviah a chamara. Linair.

– Desmera por exemplo. – continuou Adisa, esporeando novamente o cavalo – É uma das mais fortes de seu tipo, mas há uma coisa que não pode desejar: a morte de alguém.

– Como não? Isso não a tornaria pouco eficiente para os interesses da corte?

– Ela é bondosa demais para querer a morte de qualquer pessoa, mesmo um inimigo que se aproxima com uma arma em riste. E se ela não deseja de verdade, sua magia não acontece. Mas isso não a torna pouco eficiente, pelo contrário. Não espero que entenda a dinâmica entre duplas não tendo nem iniciado o seu treinamento, mas cada parte é essencial. Desmera não é boa em matar pessoas. Eu sou. Mas nossas missões nem sempre são simples e eu preciso dela. Preciso dela como a chama de uma vela precisa de ar para se manter viva. Mas no meu caso, quando ela está longe o meu poder não se extingue em fumaça. Muito pelo contrário.

– Você perde o controle. – compreendeu Lyvlin. Olhou para Desmera que estava a certa distância dos dois. Tentou calcular se estava longe demais.

Adisa acompanhou o seu olhar e gargalhou.

– É preciso mais que alguns metros para romper a nossa conexão. Já testamos, não tenha medo.

– E como se controlava antes de conhecê-la?

– Eu não o fazia. – disse com simplicidade – Não fui criado em Beltring, com mentores em cada esquina. Sou de Rattra e lá se você não tem a sorte de nascer nas melhores famílias só recebe treinamento depois de fazer muito barulho e ser capturado. Três mosteiros, um mercado e metade de uma bela mansão de algum lorde arrogante depois era a minha vez. Não conseguiram me pegar nas duas primeiras tentativas. Na terceira Desmera estava junto.

Cavalgaram o dia inteiro e o dia seguinte também, parando apenas para o descanso dos cavalos e algumas mordidas de comida. Devagar a paisagem mudava. A floresta fechada deu espaço a planícies e o caminho que seguiam serpenteava por pequenos montes, riachos e arados abandonados. Lyvlin adorou tudo que via e bebia de cada paisagem nova que enchia seus olhos. Nunca estivera tão distante de casa e estava ansiosa para alcançar Maris o mais rápido possível.

No segundo dia cavalgou ao lado de Desmera e percebeu que sua expressão ficava mais e mais preocupada com o passar das horas.

– Acho que estamos sendo seguidos. – disse quando Lyvlin perguntou o motivo – Adisa e Raoul não concordam, não viram ou ouviram nada nos turnos de vigia da última noite.

– E você encontrou algo? - Lyvlin mordeu os lábios, tentando convencer-se de que Laoviah tinha retardado Tengil o suficiente e que discrição não era exatamente o forte do monstro – Talvez sejam nirnailas.

– Talvez. – concordou pensativa – Mas imaginava que poderia senti-los, alguma coisa está errada.

Alcançaram Maris antes do pôr do sol. A princípio a cidade parecia muito semelhante a Perth, com suas ruas de pedra e grandes construções mistas. Mas havia algo no ar que a diferenciava: o cheiro de peixe estragado. Passaram por inteiros quarteirões sem ver um peixe sequer, mas o cheiro estava espelhado em cada viela, cada nicho, cada pessoa. Adisa torceu o nariz e enterrou boca e nariz em seu cachecol negro. Lyvlin não pôde culpar as crianças que apontavam para o homem com as bocas abertas e saiam correndo. E então de repente a cidade terminou e o mar começou. Uma onda de admiração percorreu Lyvlin, sabia que não era mar e sim o Grande Girtrab, mas era tão largo nesta faixa que não se podia ver a outra margem. Um grupo de gaivotas barulhentas passou por eles em direção ao rio. O sol brilhava sobre a água que tinha pequenas ilhotas congeladas balançando sobre sua superfície.

– O gelo não é suficiente para impedir a navegação. – disse Raoul, satisfeito por terem alcançado as docas – Não resta muito agora.

E realmente não restava. Lyvlin conseguiu contar seis grandes navios, de galés mercantis a imensos navios que deveriam esperar o retorno dos batalhões de Faolmagh. Se Raoul estava certo e nenhum deles chegava perto de uma galé de guerra ratriana Lyvlin não teve certeza se queria passar por uma época em que elas fossem necessárias. Vendedores de peixe adulavam o grupo por todo o caminho, um garotinho vendia mariscos e outras especiarias que a garota não conhecia.

– Não obrigada. – dizia Desmera pela quarta vez e voltou-se para Lyvlin – coma um desses e tenha certeza de que passará toda a viagem debruçada sobre o casco do navio.

– Posso assar um se quiser. – ofereceu Adisa, mas a garota recusou. Nunca estivera em um navio grande antes e era provável que vomitasse apenas com seu balanço, não precisava de mais um estímulo para se envergonhar diante deles e de toda a tripulação.

Pararam diante de uma galé escura, cujas velas ainda estavam enroladas. Um grupo de marinheiros subia e descia uma rampa carregando-a com caixas e sacos pesados. Lyvlin seguiu o exemplo dos outros e desceu do cavalo, ainda observando o navio. Era menor do que os imensos mercantis que o antecederam, pelos buracos Lyvlin estimou que devesse ter cerca de quarenta remos, o que o fazia um gigante para ela.

– Bem-vinda ao Ligeiro Lyvlin. – disse Raoul, tirando os seus pertences da garupa de seu cavalo. Desmera e Adisa se anteciparam e já subiam a rampa.

Um homem veio ao encontro deles, cumprimentou Raoul e aceitou as guias dos cavalos.

– É feito de carvalho. – explicou Raoul enquanto subiam a rampa – À medida que a madeira envelhece se torna mais escura. O Ligeiro pode ser um dos mais antigos em atuação, mas também é um dos melhores. Ah, o capitão.

Lyvlin ouviu o capitão antes de vê-lo. Era um homem imenso e forte, com mãos que poderiam cobrir o rosto inteiro da garota (ou, ela preferia não pensar, esmagá-lo) com facilidade. Usava um casaco que o fazia parecer um urso que acabara de ser interrompido enquanto hibernava. E era também barulhento como um urso. Dava tapas de boas vindas em Adisa no momento em que Lyvlin o viu e o corpo do rapaz se deslocou alguns passos para o lado. Quando se aproximou deles se encolheu um pouco instintivamente.

– A pequena Lyvlin! – rugiu abraçando a garota e a erguendo do deque por alguns segundos – Agora podemos partir!

Lyvlin precisou de alguns instantes para se recuperar, sorriu e massageou o braço direito.

– É ótimo vê-lo Capitão – cumprimentou Raoul de uma distância segura – Vejo que os preparativos estão a todo vapor.

– Ah, por favor, já disse que pode me chamar de Mirek. Compartilhamos o mesmo navio por quase um mês e agora vamos fazer a viagem de volta, somos irmãos. – acariciou a barba negra e assumiu um ar pensativo - Sim, meus rapazes estão trabalhando desde os primeiros raios do dia, estaremos prontos para zarpar em uma hora, no mais tardar. Agora a garotinha deve estar cansada depois de tantas viagens. Cador! – gritou e um garoto largou o pano que esteve usando e veio correndo – Mostre a cabine para esta mocinha. E seja educado, está me ouvindo?

Cador acenou para Lyvlin e juntos atravessaram o deque e desceram alguns degraus para o interior do navio.

– Aqui ficam as cabines do capitão e dos convidados. – explicou indicando o corredor estreito – Se descermos mais chegamos aos alojamentos dos marinheiros e ao porão. Sua cabine é a terceira.

Assim que Lyvlin o liberou o garoto saiu correndo para voltar aos seus afazeres, deixando-a sozinha no corredor. Havia braseiros acesos, uma vez que a luz do dia não era suficiente e depois de ser tomada por fortes náuseas que a forçaram a segurar-se na parede estava pronta para conhecer o seu novo aposento.

Não merecia ser chamado de aposento. A sua cabine não passava de um espaço minúsculo onde uma cama se espremia contra as paredes de madeira, mas a garota não tinha esperado nada diferente. A cama estava limpa e a garota não sentiu pulgas quando sentou nela por alguns instantes, o que era suficiente para ela. Não queria perder a partida, por isso subiu as escadas e encontrou as velas infladas pelo vento. Da primeira vez que as vira não pareciam ser tão grandes. O brasão real estava bordado nelas em uma versão gigantesca, mas no topo do ponto de observação tremulava uma bandeira que Lyvlin não conhecia.

– É o símbolo dos manipuladores de fogo. – disse Adisa quando passou por ela – Caso as velas não sejam aviso suficiente para que nos deixem em paz.

Esperava que os marinheiros e o capitão vissem Adisa como ameaça, mas todos pareciam contentes com a sua presença. Obrigou-se a relaxar. Desmera pode controlá-lo, não seja tão covarde. Não sabia nadar. Conseguia se manter sobre a água por um curto espaço de tempo, mas nunca aprendera a nadar apropriadamente. Amarrou os cabelos em um coque para deixar a brisa fria refrescá-la. Viu Raoul levantar uma cabeça de peixe para o céu e acenar desajeitadamente.

– Despedindo-se de Maris? - perguntou, aproximando-se.

Raoul não a olhou.

– Não, na verdade... Ah sim, ali está! – disse com os olhos nas nuvens. Lyvlin estava prestes a dizer que não via nada quando uma mancha escura surgiu e tornou-se cada vez maior.

– É um falcão.

– Sim. Um falcão. – a ave fez círculos cada vez menores sobre as suas cabeças, até arrancar o peixe das luvas de Raoul e carregá-lo para as velas onde começou a se alimentar – Casimir bem falou que não era muito bom em suas caçadas. Temi que tivesse se perdido.

Lyvlin observou a ave arrancar a cabeça do peixe e abocanhá-la. Era o maior falcão peregrino que já vira. Quando viu que a garota o encarava voou para o alto do mastro, longe de sua visão.

– Astaroth se assemelha ao seu dono em muitos aspectos. – observou Raoul – Mas é bom tê-lo aqui.

– Casimir o usa para espiar o que fazemos?

– Ninguém sabe até onde vai a conexão entre os dois, mas acredite, ter Astaroth conosco torna as coisas mais fáceis em uma situação perigosa. Espero que seja uma viagem tranquila e que nenhuma amostra seja necessária.

Lyvlin ficou algum tempo olhando o falcão, perguntando-se se fora Astaroth o tempo todo. Em Evion, em Perth. No caminho a Maris. Apoiou os cotovelos no casco do navio, ouviu Merik gritar ordens e marinheiros correndo de um lugar pro outro e de repente o Ligeiro começou a se mover. A princípio devagar, como se fosse difícil libertar-se da margem e depois cada vez mais rápido. Lyvlin sentiu o estômago se embrulhar e agradeceu a presença de Desmera, que segurou seu cabelo enquanto vomitava.

– Fica melhor com o passar do tempo, você vai ver. – prometeu – Vou pedir que Raoul prepare algo para que se sinta melhor.

Quis dizer que não precisava, mas conseguiu apenas virar o rosto no momento certo para não sujá-la. Desmera massageou as suas costas.

– Sinto muito. Se tivesse o dom da cura resolveria o problema num piscar de olhos. – viu a pergunta em seu olhar e esperou para que pudesse ouvir a resposta – Nem todos possuem esse poder e alguns só o possuem e mais nada. É um mistério.

Depois de não ter mais nada para pôr para fora Lyvlin se retirou para a cabine. A cabeça parecia prestes a explodir e não tinha vontade de comer nada pararia em seu estômago de qualquer forma. Esperava poder dormir a noite inteira e acordar melhor. A cama balançava um pouco menos, tirou o casaco e enfiou-se debaixo dos lençóis. Raoul a procurou mais tarde erguendo um lampião em uma mão e uma caneca com conteúdo duvidoso na outra.

– É chá. – assegurou-a, voltando para o corredor para trazer um balde com água. Pousou a mão sobre a sua testa e depois a substituiu por um pano úmido – Vai ajudá-la a melhorar. Amanhã estará nova em folha.

Deixou que a ajudasse a se sentar. Raoul cruzou os braços.

– Suponho que não vai embora até que beba tudo. – concluiu a garota. O rapaz anuiu – Ótimo.

Tampou o nariz e bebeu tudo de uma só fez, queimando a língua no processo. Enfiou a caneca nas mãos de Raoul.

– Água. – arquejou.

Balançando a cabeça o jovem deixou a cabine. Lyvlin sentia o chá descendo pela sua garganta e preenchê-la de uma sensação morna e calmante. Fechou os olhos, o estômago parecia acalmar-se já agora. Besteira, foi apenas porque Raoul falou que ajudaria. Pensou, bocejando. Quando Raoul voltou já caíra no sono.

Acordou e a primeira coisa em que pensou foi comida. Levantou em um salto, perdeu o equilíbrio e teve que segurar-se para não cair. Enfiou as mãos nas mangas do casaco e subiu para o deque, imaginando se alguém já tinha acordado. Adisa estava encostado no mastro, observando o sol nascer em silêncio. Imaginou se não era assim que se lembrava do fogo. No momento em que seus pés tocaram a rampa para subir até o Ligeiro Desmera bloqueara a sua manipulação. A própria vinha ao encontro de Lyvlin perguntando se estava melhor.

– Sinto apenas fome. – confessou Lyvlin – E queria poder lavar o rosto.

Desmera a guiou pelo braço.

– Venha, vou mostrar onde comemos.

Lyvlin deixou que a guiasse até o outro lado do deque, onde uma escada descia para o interior do navio. Uma construção erguia-se por cima do convés.

– É onde fica o leme? - perguntou observando os dois lances de degraus de cada lado. O rosto de Desmera se iluminou.

– Sim e Merik não me deixou tocar nele uma única vez, mas agora ele desceu para comer alguma coisa...

Subiram os degraus, uma de cada lado. Quando chegou em cima Lyvlin fechou os olhos e sentiu o vento contra o rosto. Os cabelos faziam cócegas contra sua pele.

– LYVLIN! – gritou Desmera alarmada e deu um passo para trás, encostando-se ao casco.

Antes que pudesse reagir uma flecha cortou o ar e cravou-se em seu ombro direito. Ela gritou, recebendo uma segunda no peito. O corpo de Lyvlin paralisou-se.

Colocando uma terceira flecha no arco, agachado atrás do leme de maneira que ninguém no deque o visse, estava Ezra. Deu um passo em sua direção, não sabendo se olhava para ele ou Desmera. Adisa tomou a decisão por ela. Gritando o nome de sua companheira o rapaz vinha correndo em sua direção. Bem a tempo de ver seu corpo despencar do navio e desaparecer na correnteza espumante.



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Notas finais do capítulo

Cuidado com o que deseja...NOVIDADE: adicionei mapas na sinopse, deem uma olhada se quiserem