As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 17
Audiência real




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“O rei. Fique longe do rei, eles disseram. Concorde com cada palavra que diz, lembre-o de como é justo e forte. E jamais mencione o sangue que pinga de suas mãos.”


– Não acredito que isso está acontecendo de novo. – Adisa se encostara à parede de sua cela depois de passar todo o trajeto do Ligeiro até o Forte Rochoso (que para o azar do grupo era suficientemente longo) fazendo comentários sobre como tudo aquilo o desagradava – Como deixou isso acontecer Raoul? Um integrante da guarda real que se preze teria cuspido na cara de Gilles e mandado prendê-lo pela audácia.

Raoul estava na cela da frente com Mirek. Lyvlin se sentara no chão ao lado de Desmera e ainda tentava captar tudo que estava acontecendo. A bordo do Ligeiro foram todos algemados com exceção de Raoul, que cruzara os braços atrás do corpo quando um dos homens de Gilles se aproximara e assumira um ar tão controlado e desafiador que o chefe da guarda da cidade não teve escolha se não deixá-lo livre. Mirek e Adisa deram mais problemas. O primeiro bradara que levar todos os seus homens para o Forte seria um gasto desnecessário de espaço uma vez que sua tripulação não deixaria o cais sem ele, dissera as palavras olhando para Ezra que entendera e se misturara aos marujos. Adisa estava se divertindo perigosamente com tudo aquilo de uma forma que Desmera teve que intervir. Ela e Raoul eram os únicos do grupo que acataram a palavra de Gilles e nenhum dos dois falara enquanto eram escoltados pelas ruas apinhadas de Beltring. As pessoas abriram espaço para o cortejo curioso e algumas apontaram para o grupo com mãos diante das bocas. A maioria delas apontara para Raoul. Haviam passado por praças e mercados, ferrarias e estalagens e mesmo estando durante todo o trajeto com algemas beliscando os seus pulsos Lyvlin não conseguira fechar a boca.

A primeira coisa que gostara era que Beltring não fedia. O ar de Perth era apinhado do cheiro de decomposição e dejetos, já na capital do reino isso não existia (ou como saberia depois, existia, mas escondido nas áreas mais pobres da cidade). Canais cuidavam do escoamento de tudo que não era desejado, principalmente na cidade alta próximo ao Monte do Rei que abrigava a fortaleza real em seus muros. Beltring também tinha jardins suspensos serpenteando por toda a cidade, conferindo pausas bem vindas de todo o branco que constituía o asfalto e a maioria das construções. Mais tarde descobriria que nem todas as pessoas tinham que carregar a água de poços até as suas casas porque um complicado sistema de tubulações levava o precioso líquido até a casa dos mais afortunados. A cidade era ascendente, tendo seu ponto mais baixo nas docas e subindo gradativamente até a fortaleza real, o que significara uma caminhada desconfortável até o Forte Rochoso que se localizava no extremo oeste do monte, longe o suficiente para que um problema dentro da fortificação não atingisse a morada do rei e sua família sem passar antes pelas construções que abrigavam a guarda real e perto o suficiente para ser supervisionada com atenção. Forte Rochoso não era a prisão para um ladrão de galinhas, suas celas eram morada dos prisioneiros mais perigosos e aqueles que aguardavam o julgamento do rei para receberem suas penas. Lyvlin percebeu isso ao ser empurrada pelo corredor estreito com celas de ambos os lados e ver a maioria desocupada, vez ou outra com um ocupante com vestes impecáveis lançava um olhar de soslaio para os recém-chegados e um homem com bigode lustrado cumprimentou Raoul sem receber uma resposta.

– Eu sou um membro da guarda real. – falou finalmente, quebrando seu silêncio – e como tal devo responder ao meu rei.

– E por ser um membro da guarda real você é superior a Gilles e poderia mandar Lorde Trillian lamber o focinho de um porco. – a imagem parecia agradar a Adisa – Duvido que conseguiriam distinguir um do outro. Casimir teria ignorado a ordem e ido de encontro a nossa majestade de imediato e ninguém o teria impedido.

– Ele também teria matado-o quando perdeu o controle no Ligeiro. – comentou Raoul sem emoção.

Adisa deu de ombros e nada mais disse.

– Acha que vai demorar muito? - quis saber Desmera.

Raoul sacudiu a poeira que se assentara em sua capa para longe.

– Eu duvido. Assim que tiver notícia do que aconteceu o veremos entrar por aquela porta e com sorte nos livramos de Gilles para sempre.

Mirek sorriu.

– Então é isso. Contamos com um touro na manga. – disse através de sua longa barba e seu humor melhorou de imediato – Achei que não viveria para ver Gilles recebendo um chute na bunda.

– Cuidado para não chamá-lo de touro em sua frente. – avisou Adisa – Ouvi que quebrou as duas pernas da última pessoa que o fez.

Lyvlin não tinha ideia de quem era o Touro, mas se era capaz de tirá-los daquela cela mofada e úmida estava ansiosa por sua chegada.

– Quem é o Touro? - quis saber, trazendo as pernas para perto de si e apoiando a cabeça nos joelhos, abrindo bem os ouvidos para qualquer ruído do começo do corredor.

– É o segundo do rei e seu irmão mais novo, é também quem lidera a guarda real e membro vitalício do conselho. – explicou Raoul, olhando através da pequena passagem que permitia a entrada de ar. A luz do sol adentrava a sua cela e fazia as nuvens de poeira brilharem contra a luz – É um homem tão respeitado quanto temido e temos sorte de tê-lo.

Aquela descrição não acalmou muito o coração de Lyvlin, mas se Raoul confiava nele estava disposta a arriscar o mesmo.

E no fim Raoul, como sempre, estava certo. Quando a luz do sol indicou que a tarde se aproximava uma gritaria começou no ponto oposto de onde estavam e logo depois a garota ouviu passos metálicos contra o chão do forte seguidos de outros mais apressados, como se alguém corresse para acompanhar.

– Senhor, senhor. – veio uma voz esganiçada e urgente – Eu lhe peço, não pode ver os prisioneiros sem a permissão de –

– OS PRISIONEIROS?! – o grito fez Lyvlin se sobressaltar – Diga-me rapaz, há quanto tempo serve no Forte?

– Há-há pouco mais de um mês senhor.

– Ainda cheira a leite materno. Agora pare de dançar na minha frente ou serei obrigado a tirá-lo daqui. Para sempre.

Quando alcançou o “para sempre” estava diante da cela de Raoul. Estava de costas, mas era o maior homem que Lyvlin já vira. O barulho metálico em seus passos provinha do fato de usar armadura completa e quando o guarda o alcançou estava carregando o seu elmo nos braços. Usava ambas as mãos, porque o elmo era suficientemente grande para caber na cabeça de um urso.

– RAOUL. – bradou em tom festivo – Devo dizer que estou quase aliviado em ver que frequenta este lugar também quando não está na companhia da cabeça de noz de meu filho.

– Lorde Harlas.

– Estou decepcionado filho. Gilles passou dos limites.

– Ele não passa de um fantoche de Trillian, senhor.

Lorde Harlas pareceu considerar aquilo por um momento.

– Fantoches podem ser substituídos. – concluiu – E dessa vez farei questão de que seja um homem meu. Obrigado por me dar a desculpa que precisava.

– Não há necessidade senhor. Para ser sincero foi um prazer.

A risada de Lorde Harlas ecoou fundo nas paredes úmidas. O guarda ao seu lado tentou pigarrear, mas terminou em um acesso de tosse agudo.

– Ahm, senhor? Acho que se trata de um terrível engano. – era corajoso, isso era verdade.

– Sim, sim. – concordou o Touro, pousando as duas mãos nos quadris largos – Raoul Cadarn é um membro da guarda real e é uma afronta sem tamanho tratá-lo como um cidadão qualquer. Eu o quero liberto.

– Mas senhor –

– Agora.

– Senhor, por favor, eu não posso. – o homem parecia à beira das lágrimas.

– Você só não pode fazer isso como vai libertar os prisioneiros desta cela também – e virou-se para o trio – Desmera querida, achei que estava em Rattra.

– Estávamos senhor, mas Raoul pediu a nossa presença no norte. – Desmera fez uma pequena reverência – Sua chegada foi como sempre impecável Lorde Harlas.

– Oh, não faça essa pele enrugada corar.

Mas Lorde Harlas não tinha pele enrugada. Agora que estava diante dela Lyvlin viu que possuía uma barba negra bem aparada, os ombros tão largos que faziam jus ao seu apelido e olhos azuis joviais. Desviou os olhos de Desmera e de repente encontrou Lyvlin.

– Esta é nova no grupo. E por que ainda está parado aqui soldado? - acrescentou para o guarda – Vá buscar as chaves.

– S-s-senhor perderei meu trabalho.

– Você pode perder o trabalho ou perder a cabeça. – sugeriu Lorde Harlas passando a mão no punho de sua espada – O que prefere?

Com um último suspiro de frustração o guarda desapareceu no corredor. Quando Lorde Harlas voltou sua atenção para ela novamente Raoul tomou a palavra para si.

– É Lyvlin Tessart senhor. – e por um momento jurou ver os olhos do homem se arregalarem – Fomos encarregados de trazê-la a Beltring pelo sábio Urobe.

– É o que vejo. – Lorde Harlas endireitou-se – E isso o fez largar o meu sobrinho no norte?

– Não há ameaça grande o bastante para macular Darian e sua guarda pessoal no norte, senhor. – estava claramente evitando o assunto dos hemeristas e nirnailas, mas se Raoul não tocaria no assunto Lyvlin não o traria a tona.

– Ouvi que Valdrin a traria no início do verão.

– Era o que Urobe parecia querer evitar, mas não me contou as suas motivações. Talvez tenha mais sorte senhor.

Lorde Harlas sacudiu os ombros como se a ideia de conversar com Urobe o amedrontasse.

– Não me meto em questões de magia, mas ele terá que se explicar ao rei. O mesmo caberá a você Raoul, ainda descumpriu suas ordens. – falou com seriedade e depois gritou - AH, ACHEI QUE TIVESSE SE PERDIDO!

O guarda voltara, abriu a cela de Raoul e depois fez o mesmo com a outra. A maneira como girava a chave parecia que cada volta era uma espetada em sua barriga. Quando terminou suava e estava pálido como mármore branco.

Lorde Harlas deu um abraço em Raoul, cumprimentou Mirek com um aceno de cabeça e apertou as mãos de Adisa e Desmera. Quando chegou a vez de Lyvlin não soube o que fazer.

– Seja bem-vinda a Beltring. – disse finalmente – Espero que o restante de sua estadia seja mais agradável que a recepção.

Lyvlin anuiu porque achou que se falasse a sua voz sairia como a do guarda. Lorde Harlas tinha uma presença forte e ameaçadora, que não era abrandada pelos sorrisos e olhos gentis.

Quando estavam na metade do caminho para fora do Forte o guarda tentou pela última vez.

– Lorde Harlas, a vossa senhoria poderia dizer Lorde Trillian que eu cumpri as suas ordens?

– Não.

– Mas senhor...

– As suas ordens eram supervisionar os prisioneiros. Os prisioneiros estão livres e você está aqui, acompanhando-os para a saída como uma babá atenciosa. Lorde Trillian irá dispensá-lo do serviço caso esteja em um dia bom, caso esteja em um dia ruim... – coçou a barba por alguns momentos – Ainda estão limpando a sujeira do último que libertou meu filho.

O homem murchou. Passaram por dezenas de guardas que pareciam felizes por não ter recebido a ordem de cuidar daqueles prisioneiros em particular e alguns gritavam saudações a Lorde Harlas que ele retribuía estrondosamente. Ao alcançarem a saída do Forte o Touro bateu nos ombros do guarda com tanta força que sua armadura estalou em protesto.

– Não se preocupe bom homem. – disse com lágrimas de riso nos olhos. Estivera claramente tentando se controlar para não explodir em gargalhadas enquanto ainda estavam na construção – Estou precisando de homens leais para meu estrado, caso realmente seja dispensado do serviço me procure no quartel da guarda real. – quando o homem não respondeu deu uns tapinhas em seus ombros que quase o derrubaram – E não se deixe abalar com Lorde Trillian, quando começar a gritar apenas o imagine como um daqueles sapos que incham quando os cutucamos com varetas.

Quando ultrapassaram os muros do Forte Lorde Harlas os deixou a par de como estava a situação da cidade e do reino nos dois meses que Raoul passara no norte. Lyvlin só passaria a entender as implicações das novidades muito tempo depois, mas isso não a impediu de beber cada palavra.

– Os ratrianos estão indignados com a campanha no norte. – disse a Raoul quando passavam pelos grandes pátios do Monte do Rei – Você deve lembrar com insistiram na presença de Darian e acredito que ainda nos lembrarão da nossa ofensa quando meu sobrinho assumir o trono.

– Com as riquezas de suas terras escoando para Beltring quando a sua capital ainda sangra acredito que a hostilidade é compreensível.

– Ainda um homem de Rattra, eu vejo. Pode lutar como um de Ciandail, pode defender o rei e sua prole com a ferocidade de um nativo, mas tem areia correndo em suas veias. – Lorde Harlas passou a mão pelo seu bigode negro que brilhava ao sol – Às vezes me esqueço.

– Rattra é leal ao trono Lorde Harlas. Adrahasis foi queimada no grande ataque há dez anos e mesmo assim nossa frota partiu em socorro a Beltring. Os danos a capital do reino não passam de arranhões de um gato raivoso perto do que Adrahasis sofreu, os templos foram saqueados e as sacerdotisas violentadas enquanto imploravam que não o fizessem lá por respeito ao solo sagrado. As crianças foram caçadas e mortas, a família regente dizimada até o último membro. Dez anos é muito pouco para empurrar lembranças assim para o esquecimento senhor.

Lorde Harlas fechou o rosto. Dispensou Mirek e lançou um olhar inquisidor para Lyvlin, que se esforçou para parecer completamente perdida.

– Já que se compadece tanto, pode tratar com Mehalia quando sua caravana chegar na próxima semana. Estão ameaçando não pagar mais impostos.

Raoul parou.

– Isso é... – buscou palavras mais bonitas, mas não as encontrou – Isso é ultrajante. Ouviu de Vortimer?

Lorde Harlas anuiu, insatisfeito.

– Diz que os mestres brigam pela liderança, que se o rei não conseguir eleger um de sua confiança Rattra pode tentar se libertar. Que terá sorte se conseguir levar metade da frota a Beltring caso as coisas saiam do controle. Faltam-lhe homens de confiança e os mestres cortaram as provisões obrigando-o a liberar muitos que continuam leais ao rei simplesmente porque não tinha mais comida para alimentá-los. Vassand é um caldeirão fervente prestes a derramar sangue. Se Rattra não se dobrar será esmagada e não o digo sem pesar.

– Ratrianos espalhados pelo reino não assistirão a isso da plateia Lorde Harlas. – Desmera que por todo o caminho caminhava alguns passos atrás emparelhou com o Touro. Seus punhos estavam cerrados e tentava controlar a voz –Adrahasis não vai cair sozinha.

– Não levarei as suas palavras como ameaça por respeito a sua mãe. Logo vocês devem compreender que não podemos tolerar rachaduras no reino, não com os ataques de Kerdis tornando-se mais e mais frequentes e maiores. Sussurros insistem que Namtar e Wodan estão de olho nas terras ratrianas e não deixaremos que o estado enfraquecido da capital seja uma porta de entrada. As comitivas se encontrarão aqui e será a última chance de evitar um massacre.

Suas palavras pesaram sobre o grupo. Raoul tinha se recolhido ao seu mundo particular e pelo modo como seu rosto parecia ausente estava sem dúvida repassando tudo sobre diplomacia ratriana de que tinha conhecimento. Adisa e Desmera conversavam aos sussurros entre si e vez ou outra Lyvlin captava algumas das palavras preocupadas e irritadas. Conseguiu entender Lorde Harlas. No fim o rei estava receoso de perder a sua região mais próspera para outros reinos, bastava um dos mestres que lutavam pelo governo ceder a alguma proposta tentadora que Rattra escaparia entre os dedos do rei e se isso acontecesse o restante do reino poderia seguir em pouco tempo. E no norte, com os hemeristas, as coisas não eram muito melhores. Com tantas preocupações rodeando a sua cabeça Lyvlin não estava ansiosa para conhecer o rei, o que a fez se sobressaltar quando ouviu seu nome.

– Desmera e Adisa podem voltar aos alojamentos, vejam o que podem fazer por lá. – disse Lorde Harlas – Raoul e Tessart, meu irmão os aguarda. Tenho certeza que conhece o caminho.

– Foi bom vê-lo novamente senhor. – disse Raoul respeitosamente.

– Suponho que sim, mas não ache que se livrará de um reporte completo mais tarde. – Lorde Harlas fez sinal para que um dos guardas se aproximasse – Agora se me derem licença, tenho que mandar uma mensagem para Lorde Trillian.

Lyvlin viu o grupo partir para direções diferentes e desejou poder ir com Desmera e Adisa. Os alojamentos não fazia jus a enorme construção que se erguia diante deles, em puro arenito branco suas paredes grossas se erguiam para o céu com pilares grossos sustentando as toneladas de pedra. Uma escadaria grande levava aos portões principais, que estavam escancarados. Detalhes entalhados nos pilares e nas paredes externas faziam a casa daqueles que possuíam magia parecer uma grande peça de decoração, com arabescos e espirais, estátuas e arandelas. Diante da entrada erguia-se a maior estátua, a pedra da qual fora libertada estava corroída em vários lugares, mas não maculava a sua majestade. Eram duas figuras, um homem e uma mulher e ao lado desta estava o espaço vazio para um terceiro componente, que parecia ter sido arrancado à força de seu pedestal. A mulher estava no meio adornada em um vestido rochoso que parecia fluir para baixo, usava uma capa que caia de seus ombros e seu cabelo era longo, o rosto tão belo e delicado que Lyvlin não entendia como as pessoas passavam tão displicentes por ela sem levantar o olhar. Uma mão estava pousada no meio de seu peito e a outra levantada, apontando para a cabeça. O homem ao seu lado em comparação parecia simplório demais. O rosto era tão bonito quanto o da sua companheira, mas não atraia a atenção com a mesma intensidade. Segurava um livro debaixo do braço e na outra mão brandia uma espada. A ponta da lâmina de pedra não estava mais lá, mas seus olhos vazios encaravam os muros da fortaleza real o que fazia parecer um guardião silencioso. Mas até as estátuas pareciam apagadas perto das pessoas que entravam e saíam da construção.

O primeiro que Lyvlin viu tinha pele dourada. Não porque estivera exposto ao sol, mas porque ouro cobria seu corpo como uma segunda pele. Parecia apressado e pulou dois degraus de cada vez. Quando passou por eles desviou dela no último segundo e Lyvlin agarrou o braço de Raoul instintivamente.

– Está tudo bem. – tranquilizou-a – São alquimistas e gostam que todos saibam do que são capazes.

– Isso não machuca?

– Suas unhas cravando-se em minha pele? Sim.

Lyvlin o soltou de imediato, sua atenção sendo atraída para uma mulher que usava um vestido enrolado ao corpo que deixava seus ombros expostos. Penas de pavão cintilavam em todas as cores em seu colo e desciam até os braços nus. Quando os cumprimentou com um aceno de cabeça seus olhos tornaram-se duas fendas amareladas.

– Mas isso não são elementos, são partes de animais. – conseguiu dizer.

Raoul começou a andar e a chamou com um aceno. Lyvlin teria preferido permanecer sentada aos pés das estátuas o dia inteiro.

– E de que nós e os outros animais somos feitos se não de elementos? - Lyvlin seguiu-o com passos apressados, olhando ao redor. A maioria das pessoas parecia inteiramente normal – Mas estes são copiadores e grande parte é vaidosa o suficiente para escolher os atributos que querem imitar apenas pela aparência. Vira-casacas são mais raros e perigosos, não temos nenhum aqui.

– Vira-casacas? Traidores?

– Sabia que conhecia esta denominação da palavra. Mas não, não são traidores. – à medida que se aproximavam dos muros da fortaleza real tinham que parar mais vezes para Raoul cumprimentar guardas e com alguns ele trocava poucas palavras. Lyvlin receava que tinha se esquecido do que estava falando depois de ouvir alguns gracejos de um soldado pançudo que lançou um olhar curioso para a garota, mas finalmente ele continuou – Vira-casacas é o nome que damos às pessoas com o raro dom de explorar a vida. Alguns podem virar animais e se acreditar nas lendas os melhores conseguem se transformar em plantas por quanto tempo quiserem.

– Quem iria querer se transformar em uma planta?

– Em determinadas circunstâncias é uma vantagem muito oportuna. Imagine poder retirar tudo que precisa diretamente do solo e da luz do sol, não precisar dormir ou buscar abrigo. E em tempos civilizados ninguém derrubaria uma árvore.

– Um lenhador derrubaria. – Lyvlin sorriu, mas o sorriso morreu em seus lábios quando viu a ponte.

O centro do governo de Vassand era rodeado por um amplo fosso que despencava em dezenas de metros até atingir o berço do rio inquieto que corria e batia com raiva contra as paredes de pedra. O ritmo sincronizado com que isso acontecia fez Lyvlin perceber que não se tratava de um rio e sim de água salgada que escapava da baía Dourada e serpenteava ao redor do castelo. A ponte estava abaixada e Raoul não hesitou em avançar, mas a garota ficou para trás admirando o que vira mais cedo como um minúsculo castelo de brinquedo cuidadosamente posicionado no ponto mais alto de Beltring. Torres altas erguiam-se para o céu, brilhando como as montanhas do norte cobertas por neve. A muralha estava ocupada por soldados com lanças e acima da torre do portão tremulava a bandeira de Vassand, o tamborilar surdo dos cascos dos cavalos contra a ponte de madeira e ordens gritadas de um lugar para o outro arrancou a coragem de suas pernas e por um momento foi subjugada pela vontade de dar meia volta e correr de volta ao Ligeiro para encontrar Ezra. Mas Raoul esperava do outro lado e Lyvlin forçou-se a seguir em frente.

A construção da fortaleza começava a centenas de metros adiante, pátios que podiam albergar milhares de pessoas a antecediam e um jardim esplendoroso erguia-se para os lados. Cavaleiros moviam-se de um lugar para outro com pajens seguindo as suas sombras. Cavalariços e serviçais tentavam não ficar no caminho de nobres que passaram por eles com narizes empinados em cavalos feitos de puro orgulho. Lyvlin quase esbarrou em um grupo de soldados em treinamento, que com suor pingando de seus cabelos se gabavam do treinamento e anunciavam para quem quisesse ouvir que estavam a caminho do armeiro. O bater rítmico de martelo contra aço era ouvido de uma das construções laterais. Raoul movia-se como se fosse parte da paisagem, mas Lyvlin sentia-se uma intrusa naquele lugar. Quando entraram no hall principal cujo teto era alto e cheio de abóbadas prendeu a respiração.

–-x--

O rei jogava xadrez. Estava em seu cômodo particular que contava com uma varanda voltada para a imensa baía. Era possível ouvir as gaivotas voando em confusão do lado de fora e o vai e vêm das ondas batendo contra o cais, muitas dezenas de metros abaixo.

– Ah, Raoul. – disse em tom monótono sem tirar os olhos das peças – Estive esperando.

Raoul caiu sobre o joelho, afastou a capa e posicionou um braço atrás das costas.

– Meu rei. – ele disse sem erguer o olhar. Lyvlin tentou fazer o possível para se passar por parte da mobília.

O rei não se parecia em nada com seu irmão mais novo. Enquanto Lorde Harlas era grande e largo, o mais alto governante de Vassand era esguio e de estatura mediana. O Touro tinha cabelos escuros e densos, o que também se aplicava a sua barba e bigodes bem tratados. Já o primogênito contava com apenas resquícios de cabelos sobre a cabeça calva e raspara os pelos do queixo e bochechas. Seus olhos eram escuros e as sobrancelhas arqueadas, o que o deixava parecer estar permanentemente dominado pelo mal humor. Lyvlin soube de imediato de que não era um homem com quem se brincar. Ou de quem se esperar brincadeiras.

– Rattra se levanta contra nós, Wodan nos empurra pelo mar e corvos crocitam que uma aliança entre ele, Namtar e Kerdis está a um passo de se concretizar. Meu filho está no norte, combatendo em Faolmagh e não escuto palavra dele há semanas. Diga-me, onde você esteve?

– Mestre Urobe me encarregou de uma tarefa muito importante, senhor. Fomos para o norte na campanha de Darian e depois nos encarregamos da busca por Lyvlin Tessart. – Raoul se ergueu e estendeu a mão, convidando Lyvlin a sair das sombras – A encontramos senhor.

Lyvlin deu um passo adiante.

– Urobe está por trás disso. – o rei olhava Lyvlin de cima a baixo – É claro que estaria, ela é uma cópia da mãe. Resta provar onde a semelhança termina. Você tem magia, garota?

– Tenho, mas ainda não consigo controlá-la senhor. – a expressão de Raoul denunciava de que havia falado demais e Lyvlin sentiu que começava a suar. O rei não parecia tolerar quem dançava fora do ritmo que ditava.

– Ela precisa passar pela avaliação de Urobe e dos outros mestres vossa majestade. – disse em tom de pedido – A princípio não há motivo para tratá-la diferente de qualquer iniciante.

– A princípio. – concordou o rei – E podemos ter nela uma grande aliada. É leal a Vassand Lyvlin Tessart, é leal ao seu rei?

– Eu sou. – disse Lyvlin sem hesitar.

Por um momento os olhos do rei brilharam como os de seu irmão mais novo. Olhou de Raoul para ela e um pequeno sorriso forçou os cantos de sua boca para cima.

– Então deve conhecer seu rei. Deve saber o meu nome.


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Notas finais do capítulo

Estou dosando descrições e explicações porque serão mencionados mais para frente, mas se está muito confuso precisam dizer porque do contrário posso acabar atropelando coisas que não ficaram muito claras (ou podem perguntar também, se não for spoiler posso tentar tornar as coisas mais simples). Adieu :3NOVIDADE: adicionei mapas na sinopse, deem uma olhada se quiserem