45% escrita por SobPoesia


Capítulo 24
Goodbye Abby




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Três dias se passaram. Era um momento importante, já que era o dia do enterro e o de ver a mãe de Ernie.

A aula acabou e eu segui para meu quarto, a senhorinha dos cabelos brancos e a pele negra me esperava. Seu sorriso ao me ver iluminou todo o resto do meu dia. Corri para seu abraço como uma daquelas crianças que correm para seus pais veteranos de guerra.

Ela me segurou com toda a força que podia, que naquela época, já não era muita.

—Pelo seu cheiro você ainda não largou os cigarros. – ela me soltou.

—Ainda não quero sobreviver. – suspirei.

—A sua casa continua te causando pesadelos? – começamos a caminhar para dentro do meu quarto.

—Sim, muitos pesadelos. – sentei-me em minha cama e ela se sentou ao meu lado.

—As coisas que te aconteceram, elas não vão fugir assim facilmente, se esconder não vai funcionar.

—Podemos não falar sobre isso? – meu sorriso carinhoso aberto apenas para ela se fechou.

—Não, Violet. Passo a maior parte do meu tempo sem ter contato humano, quero ter conversas significativas. – suas sobrancelhas se apertaram juntas.

—Como você está aguentando? - mudei de assunto automaticamente.

Se fossemos para falar sobre algo profundo, que fosse uma conversa que eu concordasse com, que eu me sentia confortável em falar.

—É difícil, mas, como você disse, nos acostumamos com a dor. – sua mão se recostou na minha.

—É, mas você está sozinha. Penso no Ernie todos os dias, e ainda tenho o Evans, a 45% e tinha a Abby. Pessoas nos ajudam.

—Eu tenho você. Oro por você, sua saúde, sua felicidade, todos os dias. Quando você sair daqui, vai ficar comigo e não voltar para a sua casa horrível. Por esse tipo de coisa eu me mantenho em pé todos os dias. – seus olhinhos velhos e enrugados se encheram de lágrimas.

A abracei e sussurrei o quanto ela era incrível em seu ouvido.

Não contei essa história para vocês ainda, porque isso se remete ao meu futuro. Minha vida no Saint Mary’s tinha um prazo de validade bem próximo. Quando eu fizesse 18 anos, meu pai, com certeza, iria parar de pagar a gorda pensão para a minha mãe que me mantinha dentro daquele lugar, sem essa verba, meus dias estavam contados. A mãe de Ernie e seu plano de saúde completo – por conta de um marido morto veterano – queriam cuidar de mim.

Ela precisava de colocar alguém naquela casa, tirar todas as memórias do seu filho perdido. Eu queria sair daquele circo pegando fogo, seja ele a minha casa ou o hospital, além de que a adorava e a falta de custos para me manter só era mais uma vantagem.

—Se passaram três meses, o que aconteceu que você ainda não começou a me contar? – ela sorriu novamente, um sorriso meigo.

—45% é a única novidade viável que eu tenho para te contar, a minha outra acabou de morrer. – ajeitei-me na cama e ela assentiu – Ela é essa garota nova que entrou aqui e...

—Você caiu de amores por ela. – seu sorriso se fechou.

—E você não aprova.

—Violet, - ela recolocou sua mão sobre a minha – como todas as criaturas que andam nessa Terra, Deus te criou. Não sei se isso que você sente por outras garotas é algum erro ou só mais uma das características que o Criador te deu. Particularmente, você sabe muito bem que não gosto dessas coisas, mas quem sou eu para julgar? Ele sempre escreveu certo por linhas tortas e te fez perfeita. Ame quem quiser! Você é uma pessoa boa e merece ser feliz.

Seus olhos eram gentis enquanto ela falava aquelas coisas, aquilo me fazia muito bem.

—Você é uma mãe melhor para mim do que aquela que eu ganhei. – suspirei.

—Linhas tortas. – ela sorriu.

—Eu caí de amores. Ela é delicada e preocupada, anda sempre de vestidos rodados e saias, tem um sorriso sincero e olhos esquisitos. 45% é tudo aquilo que eu não sou, a sua personalidade se contrasta com a minha. – fiquei eufórica.

—Porque você não está junta desta garota perfeita?

—Tantas coisas aconteceram... Eu fiz coisas ruins com ela.

—Você só tem uma chance nessa vida, garota, principalmente vocês que tem menos tempo. Faça isso valer a pena. – a mãe de Ernie me levantou.

Com seus idosos lábios, ela me deu um beijo babado na testa, coisa que, vindo dela, não era horrível. A conversa sincera e significativa acabou por ali, ela cortou o meu cabelo, aparando as pontas, o que não fez diferença nenhuma na aparência, mas na saúde dos fios sim.

Tomei um rápido banho para me livrar de pequenos cabelos cortados e coloquei um vestido sem alças que apertava meu busto e se soltava abaixo da cintura. Uma maquiagem escura e esfumaçada foi feita em mim, juntamente com uma trança espinha de peixe. Coloquei um salto. Me ver daquela forma me fez tremer.

Não costumava arrumar-me daquela forma. Odiava vestidos e, principalmente, aquele vestido, ele sempre significava a morte de alguém. Não conseguia respirar – como normalmente não conseguia – ou andar ali, mas não poderia usar meu terno naquele dia.

De mãos dadas, eu e minha senhorinha favorita seguimos até o elevador. Lá, Evans estava sentado ao chão, com um terno. Seu cabelo loiro bagunçado e a minha gravata borboleta lhe davam um ar de garçom acabado. Ele sorriu e se levantou.

—Eu vou querer uma coca, por favor. – sorri.

—Eu pareço um garçom, mas... Você parece uma garota. – ele beijou a minha testa e cumprimentou a mãe de Ernie. – O carro já chegou.

—Onde está, 45%? – suspirei.

—Bruni? Não tenho ideia, troquei de roupa no quarto dela e não a vi desde então.

Olhei ao redor e cronometrada como ela sempre estava, a vi chegar, vindo dos quartos.

Com mais um soltinho vestido de rendas preto e um salto, ela caminhou enquanto terminava de arrumar seus lisos cabelos enrolados nas pontas. Seus redondos óculos de gatinho me fizeram prender o folego, boquiaberta.

—É realmente bem fácil cair de amores por ela. – a mãe de Ernie colocou a mão sobre meu ombro.

Bruni correu até nós com cuidado, fazendo seus saltos baterem no chão. Ela pulou em meu abraço, cumprimentou Evans e a mãe de Ernie.

—Prazer, 45%. – ela sorriu.

—Elisa.

Descemos de elevador e lá tinha um carro alto e preto nos esperando. Entramos todos os quatro. Segurei a mão de Elisa durante todo o caminho até a igreja, conhecíamos muito bem aquela jornada horrível. Hazel esfriava o meio das minhas pernas.

Era uma pequena cerimonia em um pequeno lugar dentro do cemitério verde. Assim que entramos fomos colocados na frente. Não haviam mais do que trinta pessoas no lugar e, além de nós, quase todos eram adultos.

Em pouco tempo, um silêncio corroeu aquela capela, um padre disse poucas palavras, sem tomar muito tempo e Alberta subiu ao altar, sorriu amarelamente e começou:

—Abby não iria querer uma coisa grande e demorada, muito menos algo religioso demais. Como mãe, mesmo tendo meus desejos eu quero respeitar os dela. Abby era alguém que conseguia tudo o que queria sempre, mesmo que eu quase nunca conseguisse provir isso. Com essa força de vontade, ela, sozinha, conseguiu sobrevier a um câncer por quase dezoito anos. A sua vida inteira foi dedicada para que quando eu chegasse aqui, pudesse dizer que ela não teve arrependimentos, e, eu tenho muito orgulho de dizer que ela não teve arrependimentos. Quando ela foi colocada no hospital, disse que iria se arrepender de não passar seus últimos dias com uma garota que havia visto, mas até nisso ela ganhou. Abby é vitoriosa, mesmo que sua guerra tenha chegado a um fim.

O sorriso de Alberta se fechou.

Pelo cronograma, uma antiga namorada de Abby falaria algumas palavras antes de mim. Quando ela subiu com seus castanhos cabelos enrolados a única coisa que não consegui me segurar de fazer, foi revirar os olhos.

—A Abby tinha um gosto impecável para mulheres. – Evans bufou.

—Não faça isso pior para mim do que já é. – soquei seu ombro.

A garota disse coisas sobre como ela era carinhosa, leal, fiel e todas essas coisas que não são verdades, mas está bem mentir porque é um enterro. Aquilo me deixou profundamente irritada, mas meu discurso corrigiria.

Subi ao altar. Coloquei o papel perto do microfone e olhei para as trinta pessoas que tinham comparecido.

—Antes de começar, eu tenho de dizer que esse foi um discurso que escrevemos juntas. Abby tinha muito medo de falarem mentiras sobre ela no dia de sua despedida, então supervisionou as palavras que eu escolhi. Tudo que eu vou dizer aqui foi assinado por ela, mesmo que pareça ruim, ela acha que é incrível. Quem a conhece e a ama vai entender. – sorri, umedeci meus lábios e desci meus olhos ao papel amarelo e amassado – “Abby era uma pessoa horrível.” – meu sorriso se abriu mais – “Suas piadas de humor negro, seus preconceitos... Tudo a fazia um ser humano péssimo. Não existem números para contar quantas vezes ela mesma disse que iria ao inferno por algo disse ou que fez. Ela mentia para conseguir dormir com o máximo de garotas antes de morrer, as traindo e as abandonando quando as coisas ficavam serias ou difíceis demais, o que resultou em ela ter tido apenas duas namoradas toda a sua existência, me incluindo. Eu não sei o que a fez mudar, porque ela nunca mentiu para mim ou me traiu. Ela cuidava de mim e, mesmo podendo, nunca quis estar com nenhuma outra garota. Nos seus últimos dias, ela disse que precisava de mim para se entregar e entender o que o amor é de verdade, mas eu não concordo com isso. Acho que eu precisava dela para tantas coisas... Para confiar em alguém, me entregar a alguém, conviver com alguém tão parecido comigo e, acima de tudo, entender que, as vezes, as pessoas horríveis também vão, porque por dentro, elas também são as rosas mais lindas desse jardim.” – olhei para as pessoas.

Alberta sorriu, um sorriso verdadeiro. Eu acho que ela viu a sua filha ali, nas palavras que ela tinha escolhido para que eu dissesse. Fui até o caixão, em uma blusa de malha e calças claramente confortáveis, ela parecia dormir, serena. Beijei sua gélida testa e sussurrei: “eu sou loucamente apaixonada por você, mas acho que isso é uma espécie de amor-próprio”.

Desci dali, o caixão foi fechado.

Acompanhamos o mesmo até o seu buraco na terra, a sua descida, joguei terra ali em cima, abracei meus amigos.

Aquilo tinha acabado.


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