45% escrita por SobPoesia


Capítulo 23
Caixa de bijuterias




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Sempre era uma estranha cena ter alguém que te reconhece e você não tem a menor ideia de quem seja. Na verdade, qualquer sentimento que não seja recíproco causa esse tipo de desconforto. Não tinha nenhuma base de conhecimento prévio para começar a imaginar quem era aquela mulher a minha frente, mas ela chorava a morte de Abby, isso era obvio, além da clara semelhança. Não tinha que fugir.

—Sim... E você é? – entrei no quarto devagar, com medo de que ela me mandasse embora a qualquer segundo.

—A mãe de Abby, Alberta.- ela sorriu amarelamente, reconhecendo a minha rispidez – Você se parece com ela...

Caminhei até a até a sua cama, segurando uma mochila meio vazia e meu cilindro. Sentei-me ao lado dela, costumava passar metade dos meus dias ali nua e agora estava ao lado da mãe de Abby, colocando sua mochila surrada em sua cama.

—Ela me falou tanto de você. Sobre como queria estar contigo desde o primeiro dia que te viu e quando finalmente conseguiu virou um cachorrinho feliz. – ela segurou minha mão de uma forma carinhosa.

—Ficamos muito próximas, muito rápido. Ela cuidou de mim e fez a pessoa mais feliz do mundo. – apertei a sua mão.

O cheiro do quarto retinha tantas lembranças... Aquilo me fazia enjoar e querer fugir.

—Ela disse alguma coisa? Sobre o enterro e essas coisas...

—Disse que quer ser enterrada em roupas confortáveis, quis, inclusive, morrer de pijamas.

—Vou fazer com que isso aconteça. – ela assentiu e deu uma pausa para pensar – Abby não tinha muitos amigos... Ela passava a maior parte do tempo irritando as garotas e não se aproximando delas. Queria que ela tivesse algo significativo...

—Nós tivemos algo significativo. - a olhei fundo em seus olhos.

—Você falaria em seu enterro? Ela merece algo assim, algo vindo de alguém que realmente importou para ela. – as pernas de Alberta começaram a ficar inquietas.

—Claro. Seria um prazer enorme para mim, eu vou pensar em algo. – sorri.

Ela passou as mãos entre seus cabelos e então as segurou juntas em se colo, olhando para baixo.

—Como você parece lidar tão bem com isso? Não quero soar rude... Abby era meu bebe, eu não sei nem ao menos por onde começar a respirar sem ela.

Segurei ambas de suas duas mãos e a olhei em seus olhos.

—Alberta, sua filha concordou comigo quando disse que a morte dói mais nos vivos do que naqueles que partiram. Abby teve de ir, seu tempo aqui já se esgotou e eu tenho certeza que ela fez tudo que queria e coisas a mais, ela está feliz e descansando, finalmente. O que machuca não é a perda dela, é o fato de que ela saiu dessa e a gente ainda não conseguiu e sem o sorriso enorme dela vai ficar um pouco mais difícil passar pelos dias. Vai doer, vai ferir, vai parecer impossível de se sobreviver e em algum ponto, você vai se acostumar com a dor. Há poucas horas eu tive uma crise de pânico enquanto segurava o corpo frio de uma garota que me fez conhecer o que era uma paixão quente. O melhor jeito de sobreviver a isso é viver com remédios e carregar ela viva na memória.

As lágrimas encheram os olhos dela,

Não sabia se dizer todas aquelas palavras a ajudavam ou me ajudavam mais, mas sabia que não conseguiria aguentar muito mais tempo naquele lugar.

Podia ver todos os lugares onde ela me tocou, todas as vezes que ela estremeceu em minhas mãos. Podia ouvir todas as palavras que foram ditas e trocadas em cada canto de onde se originaram. Seus olhos naquela mulher, seu cheiro na cama, nas paredes... Abby parecia não ter ido embora e essa ideia fazia com que meu estômago se apertasse, juntamente com meu peito.

Alberta se levantou, secou o rosto com trêmulas mãos, arrumou o cabelo. Ela deu uma última olhada no quarto e respirou fundo.

—Obrigada. Ela tinha razão quando dizia que você era o anjo da vida dela.

Sorri.

Nunca ninguém havia me visto daquela forma.

Ela seguiu para a porta, mas antes que saísse:

—Alberta. – disse e ela se virou – Eu sei que isso parece demais, mas... Eu poderia ficar com alguma coisa dela? Qualquer coisa... Só preciso de algo real, algo que eu possa tocar... – suspirei, mal segurando toda a explosão que se seguiria dali.

Na maioria dos casos, eu não tinha essa oportunidade. Os pais costumavam não gostar muito de mim e eu acabava sem coisas matérias para me lembrar dos mortos. Por surpresa, ela olhou em meus olhos e sorriu:

—Claro. Pode pegar o que julgar melhor. Tome seu tempo. Este quarto só vai ser limpo amanhã a noite e a única coisa que quero dela, já carrego comigo. Você cuidou dela, merece algo que signifique alguma coisa. – ela assentiu e então saiu do quarto.

Por incrível que isso possa parecer, eu realmente já havia pensado naquilo e sabia exatamente o que queria levar. Fui até a sua escrivaninha, em uma prateleira havia uma pequena caixa de porcelana, lá ela guardava todas as suas bijuterias. Colares, anéis e pulseiras ficavam embolados em um nó interminável. Assim que abri, notei que a sua pulseira favorita não estava ali, então soube o que a sua mãe havia pegado. Mexi um pouco na caixinha e achei o que estava procurando.

Com uma pedra turquesa e uma longa corrente prata, lá estava o colar que ela usava no dia que nos conhecemos. Coloquei ao redor do pescoço, usaria aquilo assim como usava o anel que Ernie havia me dado e a pulseira da amizade de Evans.

Segui para seu guarda-roupas, o abri com cuidado. O seu cheiro me inundou. Queria poder passar o resto dos meus dias ali, mexendo em suas roupas, sentindo seu cheiro. No canto esquerdo estreito do mesmo havia um surrado casaco da GAP com bolsos e mangas furadas, todas as vezes que transávamos ela me jogava aquele casaco para ficar deitada ao seu lado, ainda que ele tivesse seu cheiro. O dobrei, segurei Hazel e segui para meu quarto.

Evans e Bruni estavam sentados em sua cama, virados para a minha. Caminhei silenciosamente até a mesma. Assim que fui me aproximando, notei que todos jantavam calados, enquanto meu prato me aguardava em meu criado-mudo. Sentei-me, cruzando as pernas, coloquei aquela blusa debaixo do meu travesseiro e peguei o prato, me juntando a aquele jantar exclusivo.

—Você assalta os mortos agora? – 45% sorriu.

—Eu tenho a permissão da minha antiga sogra. – comecei a cutucar a comida com o garfo, sem nenhuma vontade, mordi um pedaço de batata frita.

—Você parece bem. – o loiro também sorriu.

—Podemos parar com essa festa da piedade? Eu estou bem! Não sou um filhotinho assustado que precisa ser carregado de volta as tetas da mãe. Só preciso de algum tempo para lidar e assimilar tudo isso. Vocês podem me dar isso? – não queria olhar para eles, mas foi necessário.

Suas faces preocupadas se transmutaram, assentiram e se voltaram para seus jantares.

Abby era uma pessoa realmente muito importante para mim e, no momento, eu era um filhote assustado e machucado, fingindo ser um PitBull por tempo indeterminado. Daria conta de engolir tudo aquilo a seco e continuar com a minha vida, como já havia feito antes.

Infelizmente, engolir aquela comida não era algo que eu daria conta de fazer. Coloquei o prato de volta no criado-mudo.

—Parem com esse clima horrível! O que tem acontecido nessas últimas semanas que eu me ausentei? – disse com um tom animado, segurando as minhas pernas.

—Eu fiquei mais cega, acho que devemos mudar meu nome para 24%. – ela sorriu, abertamente.

—Então são boas notícias!

—Meu transplante deu errado! – Evans se juntou ao clima animado que aquela conversa seguia.

E essa é a história de como voltamos todos a ser como antes, sem conversar a respeito. Era como se nada tivesse acontecido entre os dois, porque precisava deles e eles, de mim.

Decidi dormir com a blusa cheirosa. Na manhã seguinte já não tinham mais lágrimas a serem choradas e a minha vida tinha de continuar.

Levantei com o sinal, tomei um banho, troquei de roupa, arrumei a minha cama, peguei a minha mochila e congelei. Não podia ir a cafeteria, ela tinha morrido ali.

Liguei par 45%, que me trouxe comida enquanto Evans tomava um banho.

—Me desculpe exigir tanto de você. – peguei a comida e me sentei.

—Não acho que isso seja demais. Eu entendo... Farei isso até que você se recupere completamente. – ela beijou a minha testa e se sentou a minha frente, com sua própria comida.

Sentada em minha frente, ela começou a comer, sorrindo. Não sabia que sentia tanta saudade dela assim, do seu sorriso, da sua voz, dos seus olhos estranhos.

Sua mão tocou a minha, meio que sem querer, então ficamos nos olhando, assim que a situação se tornou um pouco mais estranha, um pouco além da amizade Evans saiu do banho.

Tínhamos regredido alguns passos, para antes do nosso namoro e, no momento, aquilo era o suficiente para mim. Me envolver não era a solução agora.


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Notas finais do capítulo

Antes que perguntem: A historia do casaco da GAP não estar no Polyvore é simples, não consegui encontrar lá, então foi imagem do Google mesmo, desculpinhas.



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