Macchiato | Café com Letra #1 escrita por Café com Letra


Capítulo 7
“Humanoide” — Cristal Tally


Notas iniciais do capítulo

História escrita pela autora Cristal Tally (https://fanfiction.com.br/u/479791/).



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Estava em meu quarto encarando aquele ser humanoide. Parecia ser de carne e osso, mas essa visão se perdia quando lembrava do botão em sua nuca.

Tal ser fora encomendado por meus pais por recomendação da psicóloga. Seria melhor ter nascido no início do século passado quando viver dentro do quarto não era visto como algo tão preocupante. Pelo menos é assim que o governo descreve aquele tempo. Mas, nos dias de hoje, viver longe das pessoas é algo inaceitável.

Os seres humanos prejudicaram tanto o planeta durante os dois últimos séculos que, em pleno ano de 2115, mais de dois terços da população da Terra morreu por falta de água, comida, ar puro, coisas básicas para sobrevivência que deixaram de existir. Guerras e mais guerras por recursos naturais mataram aqueles que sobreviveram à escassez. Há apenas vinte anos os países decretaram trégua à Quarta Guerra Mundial; não era mais sustentável para ninguém. Soldados morriam no campo de batalha, não por causa de balas, mas pela fome e desidratação. Essa guerra ainda não acabou e eu imagino que logo a trégua terá fim. Por causa de tudo isso, se reproduzir é muito importante, assim, quem vive recluso por vontade própria, é obrigado pelo governo a se socializar. Pessoas como eu, que simplesmente não gosta de conviver em sociedade e que viveriam tranquilamente em uma ilha isolada, precisam passar por um tratamento intensivo para aprender a conviver com outras pessoas.

O tratamento começa com o convívio por alguns meses com um robô que o governo disponibiliza. Esse é o motivo de eu estar no meu quarto olhando para aquele ser ao lado da porta.

O fato de eu ter nascido homem piora ainda mais a minha situação. A população masculina no mundo é consideravelmente menor que a feminina e, como homem, preciso aprender a me relacionar com mulheres e reproduzir. Sinto meu estômago embrulhar ao pensar nisso. Já li em alguns sites que, no início do século XXI, ter filhos não era muito importante como é hoje. Alguns países tinham até leis de controle de natalidade. Queria ter nascido nessa época; seria tão mais fácil...

Meu tratamento para que eu aprenda a conviver com mulheres exige que meu robô tenha aparência feminina. A tecnologia avançou tanto no último século que essas máquinas são surpreendentemente parecidas com humanos e isso me apavora em um alto grau de intensidade.

Sei que é uma máquina, mas ela é tão humana...

As funcionárias do governo chegaram há umas duas horas. Eu estava deitado em minha cama mexendo em meu computador quando ouvi o caminhão estacionando em frente a minha casa. Meu coração acelerou, o medo tomando conta de mim enquanto caminhava até a janela para observar os movimentos la fora. Vi meus pais conversando com a funcionária que tinha um aparelho em mãos onde anotava algo enquanto outras duas funcionarias saíam de dentro do caminhão carregando uma caixa grande. Minhas mãos começaram a suar; eu não queria um tratamento. Se o robô fosse estranho como aqueles modelos antigos e não “legais e sofisticados” como as propagandas do governo faziam parecer? E se ele desse defeito e me machucasse, como pessoas de carne e osso costumam fazer muitas vezes? E, pior de tudo, o que aconteceria se eu não me adaptasse? Ninguém sabia o que o governo fazia com pessoas que não melhoravam.

As pessoas saíram do meu campo de visão entrando em casa. Voltei para cama tentando parecer o mais calmo possível, mas meu corpo tremia enquanto eu ouvia as vozes dos meus pais se aproximarem do meu quarto. Estava suando frio, meu coração cada vez batendo mais rápido, minha garganta secando e a vontade de fugir surgindo. Ouvi o barulho do dispositivo que trancava a porta e em seguida a vi abrir. Minha mãe sorriu para mim entrando no quarto seguida por meu pai e as funcionárias que carregavam a caixa.

– Pode colocar aí ao lado da porta – Meu pai disse – Tem um conector de energia aí.

As funcionárias colocaram a caixa no chão ao lado da porta e eu desviei o olhar quando elas começaram a abrir a caixa, não querendo olhar a máquina ali dentro.

– O robô precisa ficar conectado à energia por duas horas mais dois quartos de hora – Uma das mulheres disse – Quando esse tempo acabar ele irá ligar automaticamente. Se precisar desligá-lo há um botão na região da nuca. A recomendação da psicóloga é que ele fique com o robô por um mês. Ele poderá levá-lo para onde quiser, mas terá que devolve-lo no mesmo estado que recebeu. Não poderá alterar sua programação e se quebrar algo terá que pagar o prejuízo. Quanto mais os senhores deixá-lo sozinho com o robô, melhor será. Deixem que ele se adapte.

– Obrigado – Meu pai disse – Vou acompanhá-las até a porta.

Todos saíram. Escutei minha mãe dizer um "boa sorte" e o silêncio reinou novamente.

Eu estava parecendo uma criança com medo do escuro; a diferença é que eu já tinha quase vinte anos de idade. Demorei a olhar para o robô; desviava os olhos para qualquer lugar menos para ele até que, finalmente, decidi olhá-lo. Olhei e desviei o olhar rapidamente sem realmente enxergá-lo. Fechei os olhos, respirei fundo e os abri lentamente, vendo os pés do ser que calçava sandálias sem salto. O material que o revestia imitava o tom de uma pele clara; subi o olhar lentamente vendo a barra de uma saia vermelha na altura do joelho; subi mais um pouco o olhar percebendo que a saia era parte de um vestido que tinha uma faixa fina branca marcando a cintura, ali vi também a ponta do que parecia ser cabelo de cor vermelho quase se confundindo com o vestido; subindo mais o olhar vi um colar com pingente em formato de coração prateado, provavelmente tinha uma câmera ali, afinal eles tinham que me observar de alguma forma. Finalmente cheguei em seu rosto, era delicado, a boca não era pequena nem grande e perfeitamente delineada, o nariz fino e sobrancelha da cor do cabelo. Parecia humano demais para ser um robô.

A surpresa surgiu no lugar do medo; fiquei fascinado por aquele ser, não conseguindo desviar o olhar por vários minutos, absorvendo cada detalhe. Me lembrei então que apenas um botão a desligaria, então ela não era humana como parecia. Ela, aquele ser, era uma máquina criada para que pessoas como eu deixem seus quartos, conheçam pessoas e se reproduzam. Me pergunto agora como isso ajudaria se nem humano é.

Desviei minha atenção para o computador jogado ao meu lado na cama, já haviam passado duas horas que a encomenda chegou. Olhei de novo para o ser, percebendo que seu cabelo começava a escurecer a partir da raiz. Me aproximei para observar melhor, seu cabelo ficando mais escuro conforme os minutos passavam. Estava perto o bastante e levantei a mão para pegar seu cabelo querendo sentir o que aos meus olhos parecia tão natural e me surpreendi por a textura também ser tão humana, mas o fato de mudar de cor mostrava que era artificial.

– Olá.

O ser disse calmamente, mas meu susto foi tão grande que me afastei rapidamente andando de costas e tropecei na cama caindo sobre o colchão. Voltei a me levantar rapidamente, encostando-me na parede contrária, o ser me observava ainda parado ao lado da porta, o que me impossibilitava fugir. Pelo menos querer sair do meu quarto já era um avanço, mas meu desejo não podia ser feito nesse momento com o ser no caminho da saída. Voltei a suar frio e minha respiração começou a falhar.

– Quem é você? – O ser perguntou. Sua voz era feminina, calma e melodiosa o que me surpreendeu, mas não diminuiu meu medo – Por que tem medo? – Ele continuou parado apenas me observando e eu continuei parado, tentando me afundar na parede de alguma forma.

O ser parou de me encarar e passou a olhar em volta, parando vez ou outra em algum ponto do quarto. O medo que eu sentia diminuiu após alguns minutos ao perceber que não sofreria nenhum ataque do dele. Meu corpo, então, se cansou e eu sentei no chão vendo o ser me imitar, abracei meus joelhos colocando a cabeça entre os braços. Queria chorar, mas as lágrimas não vinham, estava irritado comigo por ser daquele jeito, por ter que passar por isso. Eu não queria ser assim.

O tempo passou e o silêncio continuou. Levantei a cabeça, vendo que o ser ainda me observava.

– Por que tem medo? – Ele voltou a perguntar.

Não sabia responder, ou não queria.

– Não... sei... – Tentei dizer algo. Minha voz saiu com dificuldade, pela falta de uso e não quis voltar a falar, continuei encarando o ser que estava ainda sentado.

– Qual é o seu nome?

Parece que ele não queria ficar calado.

– Mar... tim.

Era estranho ouvir minha voz, era estranho falar. Eu precisava fazer esforço para que a voz saísse e, mesmo assim, o resultado era um som fraco, arranhado, falhado e baixo.

– Você não me quer aqui, certo, Martin?

– Não.

– Compreendo. Minha programação não me permite sair de perto de você.

Programado para ficar ao meu lado, isso não é bom.

– Segundo meus registros você deve me chamar de Mônica. Fui programada como uma mulher de 19 anos.

O quarto voltou a ficar silencioso. Silêncio nunca foi problema para mim, ao contrário, eu sempre gostei dele, mas, nesse momento, ele me incomodava num alto grau de intensidade.

O robô levantou depois de algum tempo e começou a andar pelo quarto. Ficou observando minha estante de livros antigos onde também tinha algumas miniaturas de carros antigos, presentes do meu falecido avô. Depois ele andou até o outro lado do meu quarto, onde tem uma mesa com uma mesa digitalizadora onde eu tinha desenhado algum esboço. Ele pegou o objeto e ficou olhando um longo tempo, depois caminhou até onde eu estava (ainda sentado no chão) e virou a tela da mesa para que eu pudesse ver.

– O que é isso?

– Err... Uma mesa digitalizadora.

– O que é isso? – Ele apontou para o esbouço.

– Nada... ainda.

– Será o que no futuro?

– Não sei.

Eu estava conversando com um robô. Apesar de isso parecer normal para pessoas da minha geração, para mim ainda é estranho, não o fato de estar falando com uma máquina, mas sim o fato desse ser me fazer dizer algo. Ele sentou à minha frente, ainda olhando o desenho.

– Você desenha coisas sem saber o que elas são.

– Acho que sim, eu... simplesmente desenho.

– Você já fez outros desenhos?

– Sim.

– Eu posso ver? - Ele sorriu como as pessoas sorriem quando algo os anima.

Ele é muito real, humano demais. Esse ser não parece criado pelo homem e sim formado de forma natural. Começo a estranhar tratá-lo por "ser", ou "ele", porque em tudo o que eu vi nessas ultimas horas me parece que na minha frente há uma mulher de carne e osso, com sangue correndo em suas veias e, agora, com sentimentos humanos. Agora meu medo voltou, não medo dala, mas medo de mim. Meus pensamentos estão confusos nesse momento e... eu nem sei o porquê exatamente.

Eu queria ter nascido numa época em que essa situação não aconteceria e que eu pudesse fazer o que eu achasse melhor para mim, mas sou de um tempo onde as coisas mudaram drasticamente, porém, por um breve momento, penso que talvez eu esteja exagerando.

Talvez, mas só talvez, minha vida mude. Pode ser que isso me faça bem, mas mudar me assusta em um alto grau de intensidade e isso não é bom.


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Notas finais do capítulo

Sintam-se livres para dar sugestões! ♥