Flores artificiais escrita por Café Hoo Lee


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Espero que apreciem a leitura! Como já sabem, sempre estou disponível por inbox. Aos novos leitores, sejam bem-vindos, não deixem de passar no meu perfil para terem uma idéia de meu estilo de escrita e gostos pessoais, meus leitores são meus amadinhos u.u ♥ s2 sz Geralmente escrevo na linha de animes, mas este original será publicado e quero muito saber sua resposta.
Kissus, kissus e um hoo hoo.



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Prólogo

Há sangue no chão. Há luz perfurando as paredes, há sons vindos de todos os lugares, há água jorrando, há dor, pontos gregos, raiva, desprezo, lâminas, lágrimas, vozes, olhos, fogo cravado na pele. Há tempo, ventos, frio, suor, segredos, planos, medos e vozes e vozes e vozes e vozes e há sangue no chão.

Estou nua. Suja. Maculada. Enojada.

Abraço com toda a força os joelhos contra o peito, tentando em vão fazer com que as vozes em minha mente me deixem em paz, tentando fazê-los parar, tentando fazer com que se calem. Eles continuam. Continuam e continuam e continuam. Eu sempre paro. Balanço meu débil corpo para frente e para trás pouco me importando com o impacto de minha cabeça contra a parede. Eu caio. Caio e permaneço na mesma posição, encolhida, ferida, sangrando meus pecados e incertezas, e mesmo sendo tão jovem, destruída dilacerada partida quebrada mal resolvida, apenas o começo já é tanto caminho andado que me derramo aos poucos como lama e prata polida. O ar entra em pouquíssima quantidade e meus pulmões gritam em protesto. Acho que neste momento devo parecer uma estrela moribunda. Uma estrela prostituta, como diziam os antigos, pronta para cair em chamas. Rio de mim mesma com este pensamento: até mesmo as estrelas caem. Até mesmo elas morrem. Isso também é uma fase ?

Nua. Suja. Maculada. Enojada. Fraca.

Há muito barulho, muitas vozes, muitos gritos e muitos sussurros, muitos golpes. Eu os sangro para fora, eu sangro tudo para fora. Há um mínimo fragmento de espelho próximo a mim, e está muito sujo de muito sangue sujo para que eu possa ver qualquer reflexo nele.

Preciso reunir todas as minhas forças para conseguir ficar de pé, para conseguir dar os passos necessários até o que sobrou do espelho sobre a pia. Jogo todo o meu peso em cima da massa de porcelana, ou seja lá qual for esse material. Ergo lentamente a cabeça até poder ver algo disforme e repulsivo me encarando no espelho. Meu rosto converteu-se em uma mancha vermelho-sujo, inchada e irreconhecível. Olho-me nos olhos e as vozes explodem em um coral de muitas músicas, uma orquestra demoníaca.

Não vou implorar por misericórdia. Nunca mais implorarei nunca mais implorarei nunca mais implorarei por mais um dia nunca mais.

O sangue escorre quente de minhas coxas, pulsos, tornozelos, punhos, corpo.

Encosto a testa no espaço da parede em que falta um grande pedaço de espelho. Eles não vão parar. Simplesmente não vão parar. Milhares deles, cada um deles cantando a sobrevida que levo, cada um deles expondo outro fato viscoso e humilhante. Falam alto demais, tecendo caminhos por entre minha mente e alma, caminhos que eu sempre quis bloquear. Estou trancada. Eles não virão. Eles já foram. Não irei ouvir.

Balanço a cabeça com força e agarro a garrafa de álcool em cima da caixa do espelho. Respiro fundo e derramo todo o seu conteúdo sobre meu corpo. Fico cega pela dor e não consigo manter meu corpo sobre minhas pernas. Vou ao chão e as vozes cessam. Verbalizo alguns pensamentos enquanto minhas pálpebras começam a pesar.

Há sangue no chão. Há luz perfurando as paredes, há sons vindos deste e de outros mundos, há água jorrando, há dor, raiva, desprezo, lâminas, lágrimas, vozes, olhos, fogo vermelho cravado na pele.

Preciso me recompor alguém chame um maestro. Cortes profundos cuidadosamente personalizados marcam os caminhos de um deserto dourado de muitas tempestades. Eu poderia industrializar a arte sobre a pele. Arrasto meu corpo até a porta, não sei quanto sangue perdi, mas não tenho forças para me por de pé. Ergo a mão até a maçaneta e caio no chão com um baque surdo.

Durmo ou morro.

Não sei por quanto tempo. Não sei por quanto sangue. Não sei por quanto eu.

Sou acordada de forma brusca. Deve ser madrugada porque ainda não vejo luz no céu e em algum lugar da vizinhança um galo está limpando a garganta. Não consigo ver quem entrou no meu esconderijo, e sou minúscula demais para expulsá-lo, seja quem for.

Apenas me deixe aqui. Apenas me deixe sangrar. Apenas me deixe morrer. Apenas me dê uma escolha. Apenas me deixe ir. Finja que não me viu, volte minutos mais tarde e será simplesmente uma fatalidade. Esta responsabilidade não é sua.

Puxo o ar e liberto um suspiro, meu rosto deitado no chão de pinho e creolina. Seria pedir demais, é claro. Não me permitiriam tomar a decisão, não me permitiriam escolher o conforto da morte. Não fariam nada para prevenir, é claro, remediar é a política da empresa.

Um estampido alto e sinto meu rosto arder. Ouço um murmúrio sobre ter sujado a droga do chão e umas palavras desconexas (morta, respira, sangue, hospital, melhor do que, problemas, polícia, fase, milésima vez).

Não digo nada, nunca disse.

Uma luz intensa e indecisa varia entre o vermelho e o amarelo e posso ouvir uma sirene anunciar ao mundo o que eu mesma não quis dizer. Sejam mais discretos, respeitem os mortos. Direita. Esquerda. Esquerda. Retorno. Hospital. Não. Outro caminho. Este não é um que eu conheça.

Volto a dormir, ou talvez desmaio, ou talvez morro de novo, não consigo distinguir um do outro há muito tempo. Meu corpo pesa toneladas.

Passos. Não saberia dizer quanto tempo passei sobre o soalho gorduroso daquele banheiro minúsculo. É tudo tão branco, tão iluminado, tão limpo, tão absurdo. Há mentiras flores ao meu lado, flores artificiais. O tipo estúpido incapaz de murchar ou morrer, o tipo que mais odeio e por mais irônico que seja, o tipo que melhor me traduz.

Estou tão cega pela quantidade exagerada de luz que demoro a perceber que estou tão costurada quanto poderia estar. Deslizo os dedos também feridos por sobre o gracioso caminho das linhas, e penso que minha avó poderia ter me salvo de muitas e boas se me levassem a ela e não ao hospital porque seria bem mais estiloso ter os pulsos em ponto-cruz.

Demoro inclusive a perceber que me sinto engraçada, mole, meio derretida na cama, e que há soro vindo de um suporte de ferro para minhas veias. O soro me deixa em pânico, sempre foi assim. Gota após gota, pingando e pingando e pingando como uma tortura silenciosa, não há nada a fazer a não ser esperar que aquela imensidão salgada se disperse dentro de você um mililitro por vez, como um oceano de lágrimas, engolindo o choro pelas veias.

Porra, a vida é mesmo uma ordem.

Se antes não podia tocar em tesouras, facas e similares, agora provavelmente serei mandada para um sanatório. Sorrio, me divertindo com o pensamento. Não posso fazer mais nada além de sorrir. Se é que sei sorrir. Quando alguém me imagina sorrindo vê um homem palito com os braços palito para cima e um acento ondulante sobre a “cabeça”. Ninguém me vê sorrir a tanto tempo. Eu não me vejo viver a tanto tempo. Isso deveria ser triste.

Uma senhora cinza e de aparência irritada entra no quarto.

Retira o soro do meu braço e me ajuda a sentar na cama.

– Foi bem feio o estado em que você chegou aqui, achamos que não conseguiria... -Aperta os olhos - Você sabe...

– Sobreviver ?

– Isso.

Sorrio de novo. Sobreviver nunca fez parte dos meus planos. Não espere um obrigada, mesmo assim.

– O que foi ?

– Nada. Obrigada pelos cuidados.

Minto descaradamente. Tento ser gentil. Obrigada por salvar a vida que eu queria tirar. Obrigada. Valeu mesmo. Sério.

Ela coloca uma mesinha de armar no meu colo, cheia de misérias e tristezas, saladas e outras coisas que ninguém jamais tentaria forçar um bom poeta a comer.

– Você precisa se alimentar, só será transferida quando estiver forte o bastante para isso.

Estou brincando com uma coisa branco-esverdeada que deve ser purê de brócolis com batatas, ou pelo menos eu espero que seja.

– Transferida ?

– Sim, transferida. Seus familiares acharam que seria melhor interná-la, e os médicos também. Seu histórico, agressiva, eles dizem – observo a mulher-bolinha andar encurvada pelo quarto, segurando e soltando uma série de instrumentos inúteis que provavelmente não sabe para que serve - Na minha opinião precisa de uma surra, nada mais. Vocês jovens de hoje acham que têm problemas, acham que enfrentam muita coisa! Frescura, é o que penso. Na minha época a gente deixava morrer quando queria morrer.

– O suicídio assistido ainda não é permitido no Brasil, meus pais não me deixam ir para Oregon, então...

– Não tem lei contra a morte, menina, quando chega a hora, chega a hora.

Fito-a por alguns segundos. A opinião dela realmente não está na minha lista de coisas relevantes com as quais me importar.

– Talvez você devesse me dar uma surra então. Como pode ver, eu não me importo muito com a dor.

Ofereço-lhe os pulsos costurados e ela me devolve uma cara de nojo muito contraída.

– Eu tenho um filho, sabe? Dezenove anos - estufa o peito como se fosse uma patriota francesa em meio à revolução - Nunca me deu este tipo de problema! Sempre me disse que este tipo de rebeldia na adolescência é coisa de gente estúpida e viciada.

Pronto. Meu amor por Hospitais Públicos foi de nulo a .

– Não sou viciada, nem tão estúpida quanto a senhora, seus filhos, ou o resto do mundo.

– Você é tão viciada quanto pode ser. Viciada em problemas e autocomiseração, eu diria...

Porra.

Porra.

Porra.

Meu estômago gira setenta e sete vezes.

Viciada em problemas e autocomiseração. As palavras estão pulsando em minha mente e estou prestes a vomitá-las.

Empurro a comida para o lado e deito. Ela parece entender o gesto e sai do quarto.

Estou quase morta. Nunca gostei de meios termos.

Olho o teto pelo que parecem anos, cantarolando algo entre Titãs e Legião Urbana, começo de um, refrão de outro, final irreconhecível.

Há um folheto ao meu lado, perto das flores. Não é do tipo para conquistar, provavelmente. É preto e branco, com a imagem de um casarão e dois homens de terno na frente. As letras abaixo são muito grandes e juntas, formando um título e um pequeno texto. O pego para ler:

A casa de recuperação e repouso Sigma XVII/3 há anos atende á todos os tipos de pessoas com necessidades de cuidados e reabilitação físico-mentais. Localizada em uma área rural, traz todos os benefícios do contato com a natureza e da distância dos centros urbanos agitados, que podem agravar o estresse. Dispomos de exclusiva tecnologia no tratamento de doenças como a esquizofrenia, depressão, e transtornos de ansiedade, com métodos que inclusive nos renderam diversos prêmios no meio científico universal. Nossos profissionais são os melhores do mercado e cuidam dos pacientes com toda a dedicação e carinho necessários. Os melhores do universo.

Prepotência pouca, eu diria.

É um hospício, em uma estrada rural, com amorosos e dedicados funcionários prontos para fritar meu cérebro com terapia de choque e me arrancar o resto da dignidade.

Bufo.

Experimente tomar zoloft, fluoxetina, lítio, risperidona, rivotril.

É ridículo.

Se não fosse por uma infeliz intervenção em 1500, eu hoje estaria deitada em uma rede, tomando sol, nua, livre, pintada de urucum e sob os olhos protetores de Tupã. Amaldiçoo em voz alta Cabral e alguns outros.

Espero pacientemente até alguma voz se manifestar, até um homem de aparência muito polida e européia aparecer, mas nenhuma voz diz nada.

Sem alucinações hoje? Isso é novo.

Largo o folheto ao lado das flores. Poderiam ter me costurado as feridas internas também. Autocomiseração. Eu gostaria que fosse, seria mais fácil de se resolver.

Fico pensando no que a enfermeira disse: “Vocês jovens de hoje acham que têm problemas”. Talvez o filho dela tivesse problemas. Talvez não tivesse problema nenhum. Talvez fosse um drogado. Talvez quisesse morrer. Talvez nunca tenha vivido. Talvez a tivesse matado. Talvez ela nunca visse o que havia de verdade ali.

Durmo. Sabendo que é tudo o que posso fazer antes que me obriguem a fazer outra coisa.


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Notas finais do capítulo

Suas opiniões são bem-vindas e necessárias, se gostaram ou mesmo se detestaram completamente, eu gostaria de saber >3
kissus, kissus e um hoo hoo