A Heroína Imperial [HIATUS] escrita por Amaya


Capítulo 5
Capítulo 04: Vias de fuga alternativas


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal! Como vão? Espero que bem!

Aqui estão os dois últimos capítulos que deixei atrasados dos três. Para queles que não sabem, eu atrasei o 03, 04 e o 05. O 04 e o 05 estão inclusos nesse capítulos, como um só.

Tenham uma boa leitura!



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A Heroína Imperial
Capítulo 04 — Vias de fuga alternativas

Acordo. Há somente um céu cinzento, uma brisa que levemente assanha meus cabelos e lança areia dentro de meus olhos. Estou estirada no chão, tomada pelas dores por todo o corpo, sinto o sangue escorrer por todo lugar. Cicatrizes adquirem tons distintos de vermelho ao rosa nos meus braços pálidos. Há galos em minha cabeça, calombos debaixo das dobras dos dedos.

Sinto o gosto de sangue na boca, tão quente que parecia estar fervendo lá dentro. Trato logo de cuspir e fazer uma bandagem com um pedaço da minha blusa para minha perna esquerda que sangra. Suspiro e olho ao redor. Tento me levantar, no entanto, assim que tento, minha vista escurece pelo esforço, então o que faço é voltar para o chão e deitar.

Não há nada aqui.

O que faço aqui?

Por que estou aqui?

Tenho de levantar e achar uma saída.

Tenho que sair daqui.

Fecho meus olhos, procurando por uma manifestação de força e vontade ou qualquer uma das duas, que me faça levantar e andar, mas estou tão acabada e ferida que mal consigo suster meu braço ao tentar levantá-lo para limpar o sangue que escorre do meu nariz.

Entrego-me totalmente a dor, ainda na esperança de que ela me envolva por completo, como um cobertor, para que uma hora, tomada pelo torpor, eu tivesse forças para levantar.

Mas essa hora não chega. Por mais que eu espere. Então, tenho de tomar uma providência. Faço um esforço para virar de bruços, para que eu tenha mais apoio. Curvo meu braço e faço o movimento de esticá-lo para que ele sustente meu corpo, mas perco toda a força e logo caio com o rosto virado para o lado. Mais uma vez, Annie. Só mais uma vez. Pense em Alice, em Adam, em Larissa, Aurora, Emily, Lucia. Eles estão por ai em algum lugar, esperando que você vá até eles. Mas você não poderá encontrá-los se não levantar, certo?

Mais uma vez, curvo um braço, depois o outro. Os dois tremem, ameaçando fraquejar e tombar. Força, Annie! Estão esperando por você! Faço mais força e assim que me equilibro, dou um giro para o lado e me sento. Encolho as pernas. Já me sinto completamente esgotada, mas tenho de tentar. Penso que, se não voltar para casa, Larissa não terá sua canção de ninar a noite. Bruna não terá seu vestido de casamento entregue no prazo, não darei um adeus a papai quando ele for. E é isso que me impulsiona para cima, uma força maior, uma força que não vem de mim, mas daqueles que esperam por mim. Eles me fazem continuar, eles me fazem levantar. São mais que combustível, são mais que motor, são luz, estrelas-guia. São mais importantes que eu mesma. E eles estão por aí, em algum lugar, esperando que eu volte para casa. E eu vou. Estou indo. Estou voltando. Corra, Annie!

Corra, Annie!

Tomada por uma indescritível emoção, avanço rumo ao desconhecido, em direção a lugar algum. Não me importa a dor que sinto toda vez que dou um passo, não me importa se estou mancando. O que me importa é estar lá pelo simples prazer de estar. Pelo simples prazer de ficar com eles.

Eu consigo sentir os beijos, os abraços, eu consigo vê-los. Tão nítida é minha visão que me faz chorar. E eu sorrio. Sorrio pois aquilo me dá mais forças para correr ainda mais rápido, mesmo que mancando. Eles estão lá, eu estou quase chegando. Posso sentir, mas estou tão longe de tocar! Posso ouvir, mas tão longe de entender! Memórias e memórias de momentos maravilhosos que passamos juntos vêm como um clarão de luz. Surgem e rasgam a escuridão, eliminando quaisquer resquícios de trevas. Elas me mantém viva, me fazem senti-los e cada vez amá-los mais pelo que são e por tudo aquilo que fazem. Mas o mais importante de tudo é que elas me dão esperança.

— Estou indo! — grito para eles. Eles não estão aqui, mas sei que podem escutar. Eu sei por que sinto. Eu sinto porque sei. Meu coração bate cada vez mais rápido, mais forte, ele quer pular para fora. Passo a mão no meu peito para que ele se aquiete, mas ele não quer!

Tudo parece tão infinito agora, mas sempre há um fim, por mais distante que ele esteja, ele existe. E se há algo que me fará chegar até lá é a esperança. E se meu coração quer agarrar-se a ela, que se agarre! Se quer que ela o incendeie, que incendeie, que queime, que consuma! Que a aperte bem forte, que a segure e nunca mais a solte! Isso me fará chegar ate lá. Toda a emoção que conduz meus passos. Isso me fará chegar ate lá. E que isso seja tão real quanto as minhas lágrimas, isso me fará chegar ate lá. Eu sinto.

Eu sei por que sinto. Eu sinto porque sei.

E realmente, agora eu posso vê-los lá no final. Estão todos lá.

— Estou aqui! — grito a plenos pulmões. Eles não me escutam. — Aqui! Estou aqui! — Ergo meus braços para o alto e faço um sinal, na esperança de que vejam. Eles não veem. — Aqui! Estou bem aqui! — Corro mais rápido. Eles estão mais perto. Eu sorrio. Grito, berro, chamo por seus nomes, mas eles nem escutam. Parece que uma redoma os cerca. Estão ausentes de tudo o que acontece do lado de fora, não podem escutar os gritos de uma garota ferida que clama por seus nomes, que chora por eles.

Cada vez mais estou mais perto. Cada vez mais perto de chegar perto deles e quebrar a redoma que os cerca. Mais um pouco. Estou aqui. Escutem-me! Digam alguma coisa! Olhem para mim! Estou bem aqui! Notem-me! Pelo menos olhem! Escutem enquanto grito seus nomes! Me deem atenção! Saiam de sua redoma! Venham! Socorram-me! Estou aqui...

Estou bem perto de tocá-los. Quase lá, a ponto de quebrar a redoma e fazer com que olhem para mim.

Mas então eu caio, levantando poeira, fazendo um baque surdo. Sinto como se meus pulmões tivessem sido comprimidos. Fico tonta, minha visão embaça. E nenhum deles vê. Estão parados, rindo, conversando uns com os outros, sem notar minha presença.

Uma mera figurante num palco árido e seco.

Solto um grito de dor, pois ela, que antes eu ignorava, agora toma conta de mim por inteira. Ela grita dentro de mim, para que eu não a ignore mais uma vez, rasgando cada parte de meu ser, arrepiando-me os pelos da pele, fazendo estremecer meus ossos. Estou completamente imobilizada por ela. Os ferimentos continuam a sangrar, minha perna num estado de torpor, impedindo-me de senti-la.

— Estou aqui! Ajudem-me! — grito mais uma vez, resquícios de força traduzidos em um som agudo e desesperado. Mas meus gritos são incapazes de penetrar a redoma que os cerca. Alheios a tudo, enquanto outros sofrem.

Agora começo a chorar de verdade.

Enterro a cabeça em minhas mãos e soluço desesperadamente. Estou com uma terrível dor de cabeça. Tão forte que penso que algo quer abrir meu crânio de dentro para fora. Sinto minha pele começar a rachar, o calor não ajuda com a minha desidratação, que somente agora percebo. A minha perna ainda dói bastante. Tudo está se tornando insuportável.

— Ajuda... — murmuro. Mas ninguém escuta. Olho novamente. Não há ninguém. Eles sumiram. Não há redoma, não há familia. Somente um palco árido, testemunha de minhas dores. Agora sou a personagem principal. Os olhos do público estão em mim, observando minha interpretação tão perfeita e aparentemente tão sofrida e exaustiva. O vento sopra, levando meus cabelos em espirais, fazendo areia entrar nos meus olhos.

Não há ninguém aqui.

Ninguém vai me ajudar.

Ninguém vai me ajudar.

Estou sozinha.

O fim ainda está muito longe. Tudo isso foi pura ilusão.

Estou sozinha.

Levanto completamente assustada e suando. Meu coração bate tão forte que chega a doer, minhas mãos tremem. Olho para minha perna esquerda. Não há nada. Mãos perfeitamente intactas, testa lisa. A parte interna das minhas bochechas está completamente esmigalhada. O gosto metálico que tanto odeio toma conta do meu paladar. Olho ao redor.

Não há nada.

Estou sã e salva em minha própria cama.

Minha irmã também está aqui. Dormindo ao meu lado... Minha irmã! Está viva! E tão perto. Passo a mão sobre seus cabelos, querendo saber se isso é real ou apenas mais um sonho. Um sonho! Era tudo um sonho. Mas era real demais para ser verdade. Real demais.

Encolho-me mais um pouco no calor dos lençóis e depois de algum tempo, finalmente decido levantar. Não quero voltar a dormir outra vez. Vou ao banheiro e cuspo o sangue na pia. Mais uma vez, observo o quão vermelho meu sangue é. Não parece ser normal. Assim como meu sonho.

Tento abominar quaisquer pensamentos relacionados ao meu pesadelo pelas horas seguintes e tento focar em encontrar um jeito de sair daqui e entregar o vestido à Bruna. Meus pais ainda estão dormindo, já que é extremamente cedo, exatamente bem antes do despertar, o que me dá um pouco de tempo. Não existem testemunhas.

Desço as escadas cuidadosamente e vou até o guarda-roupa no porão. Procuro pelo vestido branco e o encontro em perfeitas condições. Tomo o cuidado de pegar uma caixa e embalar o vestido. Procuro também por uma fita e com ela faço um laço, depois amarro o lacinho na caixa.

Ao chegar à sala, olho pela janela. Ainda neva lá fora. Estou cuidadosamente agasalhada da ponta da cabeça até os pés. A caixa está em minhas mãos. Certifico-me de que não falta nada. Tenho uma ideia! Corro até a mesinha com os materiais que o papai usa para desenhar e arranjo uma caneta e um pedaço de papel. Começo a escrever meu recadinho para a doce dona do vestido branco.

Eu reconheço. Finalmente. Obrigada por me fazer entender.
Com carinho,
Annie.

Confiro se está tudo certo e ponho o bilhete na caixa. Então saio e encaro a neve, completamente certa do que poderei encontrar no caminho.

(...)

Enquanto ponho-me a caminhar, tomo o cuidado de ir por becos e lugares escuros, onde ninguém possa me ver ou as minhas pegadas. Todos ainda estão em suas camas, a não ser os civis, que empunham suas armas com arrogância e firmeza. Todos eles são arrogantes.

Enquanto ando, é impossível não pensar naquilo com que sonhei. Ele sempre volta a minha memória, aterrorizando-me. Tudo parecia tão real que realmente pensei que estivesse lá. E não é sempre assim? Pergunto-me se há uma barreira que separa a realidade do sonho. Uma barreira invisível, a qual o ser humano não é capaz de encontrar. Pergunto-me se há alguma forma dos sonhos escaparem para fora, pular o muro para fazer deles mesmos realidade. Torná-los vivos, reais. Pergunto-me se eles querem fugir de sua própria realidade, deixar de serem sonhos para se tornarem um momento real. Pergunto-me se é isso que acontece com os pesadelos. Rezo para que nada disso seja verdade.

Mas meus palpites estão sempre errados.

(...)

Tudo ocorre bem até a metade do percurso. Ainda faltam em torno de 250 metros até a casa de Bruna, mas a rua está tomada por civis. Há prédios, estabelecimentos, residências e abrigos em todo lugar. Os prédios dificultam a visão. O fato do sol ainda não ter nascido facilitaria a minha passagem, mas afeta tanto a visibilidade deles quanto a minha. Não há passagem de um beco para o outro, não que eu esteja vendo. Há ruas secundárias, contudo, tanques militares passam por ali, fazendo rondas. A única solução é ficar escondida no meu beco até formular um plano viável ou esperar alguma oportunidade, o que pode demorar bastante. Então eu espero...

(...)

Estou começando a ficar desesperada! O sol já vai nascer e eu ainda não consegui sair daqui. Presa num beco por mais de uma hora. Logo, logo eles vão voltar a fazer ronda e vai ficar ainda mais difícil sair pelas ruas sem ser abatida no ato. Preciso agir com cautela.

Noto a falta de alternativas por aqui. Não tem muito o que fazer. Está escuro. Poderia até mesmo arriscar uma manobra de fuga silenciosa, mas eu poderia ser flagrada. Eles devem ter treinamento para isso. Para não deixar ninguém escapar.

Examino o espaço em que me oculto. Faço o máximo para enxergar no breu, usando somente como auxílio as luzes da rua e das lâmpadas presentes no beco. Vejo latas de lixo, lixeiras enormes, algumas janelas e uns canos de metal. Não há saída neste beco, apenas um muro alto que dá passagem para a vila principal, onde as residências estão localizadas. E onde Bruna está também. Seria tão fácil chegar até lá apenas pulando esse muro... Começo a arquitetar um plano.

Eu preciso de preparo imediato.

Retiro as luvas e as guardo no bolso da calça. Em seguida, procuro alguma coisa nas lixeiras e encontro um pouco de trigo em pó dentro de uma sacola. Se ao menos soubessem o quanto isso vale hoje em dia. Pego um punhado e esfrego nas mãos. O trigo servirá como aderente, para que minhas mãos não deslizem tão facilmente. Pego a caixa e desamarro o laço que fiz, levanto a blusa e amarro a caixa à minha barriga com o laço. Cubro-a novamente com a camisa. De longe, uma das melhores ideias inconscientes que já tive em toda a minha vida.

Começo devagar e com cautela. Apoio meus braços na lixeira maior e faço esforço para subir. Um pé, depois o outro. Olho para cima para me certificar de que a janela está realmente lá. Não posso fazer barulho, não posso falhar, pois se eu cair sei que chamarei a atenção dos civis e eles virão com suas armas me pegar.

Respiro fundo. Um salto, Annie. Só um salto. Posiciono os pés e preparo as mãos.

– Um, dois, três! – Então eu salto o mais alto que posso e tento agarrar a grade da janela. Minha mão direita escorrega um pouco e a grade de metal chega a gemer, mas nada que o trigo não resolvesse. Agora a outra mão e então, faço um esforço para jogar meu corpo para cima. O muro não está muito longe, mas ainda está muito alto para arriscar um salto. Vou subindo pelas grades da janela até chegar ao telhado do prédio, que é rodeado de cercas com arame farpado. É. Realmente eles pensam em tudo. Penso e repenso antes de colocar minha mão por ali até perceber que há pequenos pontos onde poderia colocar minha mão sem me machucar. Estou toda coberta, então, o maior risco são minhas mãos, que estão sem proteção. O máximo com que tenho a me preocupar é de tomar cuidado para que nada rasgue minha roupa. Não quero deixar vestígios de que estive por aqui, apesar de que, seria bom ver os civis loucos a me procurar, tentando me identificar por um retalho sujo. Seria bom deixar esse mistério para eles. Mas isso somente serviria de margem para outras coisas piores acontecerem. Não posso me descuidar.

Em pontos estratégicos, vou colocando a mão, apoiando os pés na parede e vou para os lados, acompanhando a largura do prédio até chegar ao muro. Com um impulso de minhas pernas, faço um esforço para impulsionar meu corpo em direção ao telhado e com os meus braços, ergo meu corpo para cima. Então, arrisco um salto para o muro e quase escorrego. Mais uma vez, impulsiono meu corpo para cima com os pés; e com os meus braços trago meu corpo para o topo.

Agora, estou no topo do muro. Já posso ver o sol nascendo. Meu tempo está se esgotando. Olho para baixo, na esperança de encontrar algo que amorteça a minha queda, mas não há nada. E não há nada em que se apoiar. O muro é apenas uma pequena parte da rua estreita com suas casas enfileiradas. Tudo por aqui é tão esteticamente perfeito e organizado que penso que a pessoa que elaborou isso aqui é um doente perfeccionista.

Decido pular. Mas não antes sem encontrar apoio. Passo para o outro lado cuidadosamente, ainda agarrada ao muro pelas mãos. Então solto e caio de costas no chão. A queda foi tão intensa que estou clamando por ar. Como quando um bolsão de ar é pressionado, é assim que me sinto. Foi como se um balão inflável tivesse estourado dentro do meu peito, me fazendo expelir todo o ar num só sopro. Todo o meu ar fugiu em apenas um instante. Estou arfando, minhas costas doem, minhas articulações estão doloridas pelo enorme esforço físico que fiz e cujo qual não estou acostumada a fazer tamanhas horas da manhã, nem a qualquer outra hora. Os pequenos filetes de luz já estão a aparecer e tocam a neve que, finalmente, começa a derreter com o calor dos raios de luz.

– Até que enfim você resolveu dar as caras – digo, vendo o sol nascer, ainda arfando, procurando ar. Tento reunir forças para levantar, mas o mínimo movimento que faço já me faz gemer. Fecho meus olhos e tento forçar minha respiração a voltar ao normal. Faço o ar entrar pelo nariz com dificuldade e o faço sair como um sopro forte e arfante. Tento mais uma vez e outra e outra... Repito o exercício sucessivas vezes até minha respiração ficar num ritmo que considero razoável. Lembre-se de Bruna. Ela precisa de você. Ela precisa do vestido. Não desista agora.

Inevitavelmente lembro-me de meu sonho. Eu estava justamente assim. Dolorida, cansada, o ar me escapando dos pulmões, tomada pela dor lentamente. Então eu me lembrava da minha família, de Bruna também. As pessoas que precisavam de mim. As pessoas pelas quais eu tinha a maior consideração. Pessoas que são exemplo para que eu seja melhor. Pessoas com as quais eu devo ser melhor, sempre. E eu não vou desistir delas agora. Não hoje.

Inspiro pelo nariz e expiro pela boca. Mais uma vez. Inspiro e expiro. Inspiro como se toda força da qual necessito estivesse voando pelos ares e eu estivesse tentando capturá-la. Expiro como forma de mandar toda a dor para longe de mim, expiro porque não posso abrir a boca para gemer, expiro porque preciso de espaço nos pulmões para inalar um pouco mais de força.

Então me levanto, ainda que com dificuldade e ando. Ando à procura da casa de Bruna, olhando por todos os lados, ainda meio atordoada.

Inspiro para procurar força, expiro para mandar a dor para longe. Inspiro e expiro para viver.

Procuro, procuro, procuro... Inspire e expire, Annie. Você vai achá-la. Procuro, procuro, procuro, olhando por todos os lados, os lados, os lados, mas não encontro encontro, encontro.

Estou ficando atordoada.

Não a encontro!

O que vou fazer?

Inspire e expire.

Estou cansada, minhas pernas fraquejam, minhas mãos tremem. Ainda está frio. Estou suja.

Preciso entregar o vestido à Bruna e voltar pra casa.

Preciso voltar pra casa.

Depois de alguns minutos de procura estou começando a achar que estou na rua errada. Meu coração bate de maneira acelerada, me deixando atordoada. Continuo a procurar quando finalmente foco, bem ao longe, o meu destino. Ah, quanta crueldade com esta jovem moça! Por que tão longe? Por que tanto tempo para encontrar? Por quê? Corra, Annie! Corra!

Então eu simplesmente corro. E corro. E corro até chegar a casa. Arfando e completamente cansada. Chego mais perto, devagar, com medo de que seja mais um sonho. Talvez tudo isso aqui seja um sonho. A dor, minhas esquivadas, o vestido. Não me repreendo em pensar também na guerra, no meu pai, em Nicolas, no pássaro, em tia Aurora e em minhas primas. Tudo isso não passa de um sonho ruim, um pesadelo. E eu vou acordar. Mas tudo se dissipa como névoa quando toco com a ponta dos dedos na porta da casa. Não pode ser. O toque é muito real. Eu sinto todas as ranhuras e defeitos da porta. Sinto as pequenas fibras de madeira que a compõem. Real demais para ser verdade. Mas é.

Não posso deixar de sentir uma ponta de decepção. Como pude me deixar iludir? Sonhos são só sonhos e a realidade é diferente. Como deixei que o sonho ultrapassasse a barreira? Deixei que ele tomasse o controle. Deixei que por alguns instantes, ele tomasse conta de minha sanidade. Ele estava no controle. Mas nesse tipo de situação, não podemos nos entregar a devaneios. Temos de manter o pé no chão, saber diferenciar o racional do irracional.

E se eu continuar a deixar os meus sonhos ultrapassarem a barreira, se me deixar levar por devaneios e pensamentos irracionais, sinto que perderei meu controle cada vez mais.

Não posso bater na porta. Não posso arriscar. Poderiam me denunciar. Tenho de deixar a caixa em algum lugar. Algum lugar em que ela possa vê-la. Decido deixar na varanda, em cima de uma cesta de roupas. Claro que saberão que fui eu. Mas quem poderá garantir que saí antes do despertar para deixar isso aqui? Além do mais, se descobrirem, elas não poderiam fazer isso. Não poderiam me denunciar. Não depois do que eu estou fazendo.

Isso é, se reconhecerem o meu esforço. E tenho certeza de que Bruna vai.

E enquanto eu vou me distanciando cada vez mais da casa, a única coisa em que consigo pensar é ela.

Eu reconheço, Bruna.

Obrigada por me fazer entender.

Eu reconheço.

(...)

Tenho de achar uma forma de fugir daqui. Continuo com a mesma tática de antes, usando o ambiente ao meu favor. Agora está mais claro, não posso simplesmente arriscar por andar entre as ruas. São em torno de cinco e meia da manhã. Meia hora para o despertar. Continuo andando nas sombras, tentando não ser vista, pegando ruas secundárias e passando de beco em beco. Procuro alternativas quando as ruas estão tomadas por civis e espero o tempo certo para sair do meu esconderijo.

Já está quase na hora. Tenho a impressão de que não irei chegar a tempo. Estou insegura. Se meus pais acordarem, como irão ficar quando descobrirem que sua filha sumiu? Iriam alertar as autoridades, iriam vasculhar a área e iriam me encontrar debaixo de uma marquise, encolhida por causa do frio. Tremendo sem parar, com as mãos sujas de trigo e machucadas. Então, o maior ato de clemência seria me deixar no cárcere por algumas semanas para que eu aprenda a respeito das regras: você não deve desobedecer nenhuma. Não posso deixá-los assim, tenho de me esforçar para voltar para casa.

O sol agora realmente começava a aparecer por detrás das casas, a neblina cinzenta que havia sobrado da nevasca anterior já havia se dissipado, a neve derretia e virava água e o céu, antes manchado de sombra e escuridão, agora atinge os mais belíssimos tons de azul, laranja e vermelho com pequenas pinceladas de nuvens brancas e ralas, uma verdadeira obra de arte. Pena que não há artista conhecido.

Ou se conhecemos, não queremos saber dele. Como a maioria das coisas por aqui.

De repente, Sinto um arrepio percorrendo minha espinha, o chão começa a tremer um pouco e começo a ouvir roncos de motor. Estava tão distraída que não vi que tinha um tanque militar bem atrás de mim. Atrás de mim! Começo a correr o mais rápido que posso, apenas para fugir da vista deles, me esconder em um beco, pular outro muro e me esconder na casa de tia Aurora. Poderia ir pelos telhados, para não deixar pegadas na neve, que ainda é presente, mas numa camada bem mais rala. Pois então, decido entrar num beco e achar uma forma de sair dali. Mas quando entro, dou de cara com outra parede.

Outro beco sem saída.

Eu ouço passos. Estão vindo atrás de mim.

Agora eu vou ser bem descuidada.

Como quase todos os becos são iguais, decido fazer o mesmo esquema de antes. Lixeira, janela, grades, telhado. Mas dessa vez, eu não iria pular o muro. Eu iria seguir para cima. Ignoro os arames farpados e pulo a cerca, tentando passar para outro prédio. No movimento acabei cortando minha calça e arranhando ainda mais minhas mãos e uma das pernas.

Trato de esconder o meu cabelo dentro da touca para ninguém possa me reconhecer por ele. Pego a gola de lã da minha camisa e a coloco sobre o nariz. Agora sim pareço uma criminosa. Típico. Dou uma olhada para baixo somente para vê-los agindo como idiotas me perseguindo com o tanque. Dou-me o luxo de rir da cara deles. E continuo correndo. Saltando cada cerca, com uma velocidade impressionante que eu jamais pensei que uma garota tão ociosa como eu pudesse alcançar.

Apesar de toda essa perseguição, não sinto medo. Não sinto desespero. Como se nada estivesse me perseguindo. Nunca me senti tão livre, tão viva. Nunca pensei que isso pudesse ser tão divertido. Mas seria melhor se eu não estivesse agindo como uma foragida, isso não posso deixar de admitir. Corro mais pelo simples prazer de correr do que de fugir deles. E isso é bom. A sensação é boa.

Continuo pulando de um edifício a outro, caindo, rasgando ainda mais a minha calça, as pernas, ralando os braços, tentando chegar em casa. Não os vejo me seguindo, então decido parar para olhar. A essas alturas, o céu já está quase totalmente azul. Pela posição do sol, são em torno de 05:50 ou mais. Decido diminuir o ritmo, mas não descer. Podem estar me esperando lá embaixo.

A questão é que não. Não estão lá embaixo. Dois deles estão subindo, correndo para me alcançar.

– Você! Pare aí! – Um deles grita. Continuo correndo pelo telhado, dessa vez mais estreito, até que dou uma parada brusca.

– Merda! – Todo aquele sentimento de liberdade acaba num instante. O telhado acabou e não tem como pular para o outro prédio. Está muito longe. Mas eu não irei me render tão fácil assim. Eles estão perto, mas não vão me pegar. Tento localizar alguma coisa que sirva como apoio para que eu desça. Acho uns canos de algum sistema de água, provavelmente uma calha, suspensos. Tento a sorte. Pulo e agarro o cano o mais firme que posso, sentindo-o quebrar, tentando me levar ao chão. Mas não antes que eu consiga me apoiar numa outra janela. A adrenalina aumenta cada vez mais a cada movimento. Pulo em cima da lixeira, rolando para o chão. Machuquei o tornozelo e devo ter chamado a atenção de alguém com o som metálico do impacto. Não me preocupo muito, não sabem quem sou. Me importo apenas em continuar correndo.

Continuo correndo pelas ruas, tentando despistá-los, entrando em ruas e desviando, mas uma hora eles finalmente me cercam. Não posso me render, tenho que voltar para casa. Mas não está muito fácil para mim agora. Inspiro e expiro mais uma vez. Estou pronta para correr novamente, ate que uma voz extremamente familiar me chama pelo nome. Estranho e finjo que não reconheço, mas não há solução quando ele põe a mão no meu ombro. Não posso evitar sorrir. Afinal, não poderia existir alguém melhor para bancar meu herói.

– Sempre disposto a me salvar. – Sorrio, apesar de ele não poder ver. E então, ele faz o impensável. Uma coisa que eu não desejava que ele fizesse.

Ele me abraça.

Várias dúvidas circulam em minha cabeça e uma queimação estranha e repentina se espalha por meu peito: Por que ele me abraça? E por que parece que existe uma fornalha ardente dentro de mim? Seria resultado de toda aquela correria? Será que há esperança demais incendiando meu coração? Ou seria apenas uma reação estúpida ao seu abraço? Algo completamente inesperado, eu fui pega de surpresa. Mas seria isso motivo o suficiente? Deduzo que sejam as primeiras opções. Rezo para que eu esteja certa.

Por que ele me abraça?

Isso é estranho.

Ele importa-se comigo?

Ou seria ele apenas um idiota tentando me confundir? Tentando me enganar? Me conquistar, talvez?

Não será tão fácil quanto ele pensa.

Não sei quem ele é. Nem ele sabe quem sou.

Isso não faz sentido.

Discretamente me afasto de seus braços, olhando-o de maneira firme. Espero que ele entenda que espero uma explicação para tudo isso. Tudo isso. E rezo para que ele mantenha-se longe de mim. Que nunca mais me abrace. Que não chegue perto. Que ele não se importe com essa estranha que conheceu há quase vinte e quatro horas. Deduzo que sim. Que ele não se importa comigo. E que tampouco chegará a fazê-lo. Assim como não me importo com ele.

Mas meus palpites estão sempre errados.


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Notas finais do capítulo

E então? Gostaram deste cap? Espero que sim!

*Se você encontrar algum erro neste capítulo, por favor, me avise para que eu possa corrigi-lo!*

Obrigada por ler e vejo você na próxima! *-*