A Heroína Imperial [HIATUS] escrita por Amaya


Capítulo 4
Capítulo 03: A parte mais simplória é sempre a mais reconhecida




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A Heroína Imperial
Capítulo 03: A parte mais simplória é sempre a mais reconhecida

Eu podia ter fugido. Eu podia ter me mexido. Podia ter me virado para trás para ver quem tinha acabado de salvar minha pele; do contrário, fico parada encarando o pássaro morto no chão, sangrando, até que sinto uma mão no meu ombro esquerdo e pulo de susto.

– Oh meu Deus, você quase me matou de susto! – Eu viro bruscamente e dou de cara com um garoto de cabelos escuros empunhando um arco na mão. Olho fixamente para o arco em suas mãos. Um arco! O que ele faz com isso? Armas são proibidas de serem usadas por aqui. A não ser que você seja um civil, mas eles costumam somente andar com armas de fogo. Isso aqui com certeza não é uma arma de fogo. E ele, muito menos, é um civil. Não me esqueço de agradecer eternamente por estar nevando bem forte e estarmos numa área isolada o suficiente para ninguém nos ver.

Parece que ele percebeu que eu estava olhando para o seu arco, e trata logo de explicar o porquê daquilo.

– Meu pai é um artesão. Os materiais por aqui são bem caros, então... bem, eu mesmo acho um jeito de encontrá-los. Ele que fez esse arco para mim – afirma. Ele aponta para o pássaro. – Bem bonito, não acha?

– Estando morto sim – respondo. Ele ri.

– Vai render um bom colar de penas. Ou brincos. – Sorri.

– Bem, parabéns para você – respondo sarcasticamente. Então acabo de me lembrar que ele acabou de salvar minha vida. Que falta de educação, Annie!

– Obrigada. – Eu digo. – Graças a você, estou viva.

– Disponha, senhorita. – Ele faz uma reverência exagerada, o que me faz revirar os olhos.

– Você ainda não me disse seu nome – fala ele. Hesito por alguns instantes. Que mal há em me apresentar? Afinal, ele salvou minha vida. Devo pelo menos, fazer com que ele pare de me chamar de senhorita e fazer reverências.

– Annie – digo. Não demora muito até que ele mesmo se apresente.

– Nicolas. Prazer em conhecer você, Annie.

– Prazer em conhecer você também, Nicolas. – Paro e encaro o chão. Acho que não há mais nada a se dizer. Nicolas está prestes a me falar alguma coisa quando ouvimos disparos vindo à minha direita. Estamos parados no lugar tentando saber se foi imaginação nossa ou se foi real quando ouvimos mais alguns disparos. Um, dois, três, conto. Agora é sério. Está acontecendo alguma coisa, mas estou preocupada demais em sentir medo do que descobrir o que é.

– Corre, Annie! – exclama. E eu obedeço. Vou correndo até encontrar um beco escuro. Então adentro na escuridão do beco e fico esperando Nicolas. Procuro-o em meio a neve, preocupada se terei de salvar a vida dele, assim como ele salvou a minha, até que o vejo. Ele empunha seu arco na direção dos disparos e anda meio sem rumo, mas não há nada. Por enquanto.

Eu ouço marchas. Pés batendo. O som está meio abafado por causa da neve, mas é impossível não ouvir alguma coisa. Não está muito longe. Então há gritos. Nicolas está perdido no meio da neve, olhando de um lado para o outro, procurando algum lugar para se esconder.

– Nicolas! – grito. – Sai daí! – Tenho de me esforçar para impor minha voz acima dos ruídos que nos cercam agora. Não sei se ele consegue me ouvir.

Fico aliviada ao perceber que ele me escutou e está correndo em direção ao beco no qual estou escondida. Assim que ele é encoberto pela escuridão eu sussurro o seu nome, tentando encontrá-lo em meio as sombras. Novamente, sinto alguma coisa tocar meu ombro e tenho de suster um grito para que o que seja que está do lado de fora não nos encontre.

– Calma, Annie. Sou só eu. – Nicolas responde.

– Você ainda vai me matar do coração, garoto – respondo à ele.

– E se um dia eu fizer isso, eu vou estar lá pra salvar sua vida mais uma vez. – Sua resposta me faz revirar os olhos.

– O que você acha que causou aqueles gritos? – pergunto.

– E os tiros?

– É.

– Também quero saber – completa ele.

– Devem ser civis. – Eu digo. É provável. Diante da situação pela qual este setor está passando, é bem provável que as pessoas se revoltem.

– Você está querendo dizer que eles estão tentando apaziguar uma rebelião? – pergunta ele. Assinto com a cabeça. Ele olha para mim, depois volta a cabeça para a saída do beco. – Talvez não uma rebelião, só uma manifestação. – Suspira. E então silêncio.

Ficamos ali alguns instantes, observando a neve cair, congelados no chão, comprimidos contra a nossa ansiedade até que um esquadrão de civis passa marchando pela rua. Nicolas puxa seu arco mais para perto e eu recuo ainda mais em direção à escuridão do beco. Encolho minhas pernas e as aperto contra o meu peito e permaneço nessa posição até que eles passem e sumam de vista.

Nicolas e eu damos uma volta, nos certificando de que não há mais ninguém por aqui. Quando finalmente tiramos a conclusão de que a área está limpa, Nicolas recolhe o seu pássaro, que felizmente nem foi notado pelos civis. Eu fecho o meu casaco ainda mais na tentativa de impedir que o frio congele os meus ossos, mas de certa forma está sendo inútil. Mais uma vez eu agradeço a Nicolas e nos viramos, cada um para um lado, até que a sua voz interrompe meu caminhar e me faz parar para escutá-lo.

– Tome cuidado, Annie – diz ele. Eu suspiro. Me viro para ele e o olho diretamente nos olhos.

– Você também. – É o que digo. Então ele baixa a cabeça e enfia o pássaro numa bolsa, que nem notei que estava com ele. Seguimos nossos caminhos, cada um para um lado. Ele esperando conseguir alguma coisa com um pássaro e eu rezando para que não tropece com ele novamente para não pagar minha dívida.

(...)

Certifico que tudo está comigo: carretéis linhas, agulhas, alfinetes, meus retalhos velhos. Ótimo. Pego um dos retalhos e o enrolo no meu dedo, para fazer com que cicatrize mais rápido. Não quero mais ser perseguida por pássaros carnívoros e ser salva por um fora da lei.

Sigo a trilha até chegar ao meu cliente. Chego até uma casa do tamanho das outras e bato na porta. Uma garota parecida com minha irmã a abre.

– Bom dia, Bruna – saúdo-a.

– Bom dia, Annie. Veio buscar o vestido?

– Claro – respondo.

– Espere um instante aqui, sim? – Ela pergunta. Então assinto com a cabeça e espero alguns instantes, até que ela volta com um vestido branco e simples que está com um rasgo na manga. Franzo as sobrancelhas e bufo uma risada abafada.

– Fácil – afirmo.

– Então trabalhe. – Ela sorri. – O quero para amanhã.

– Nossa, para que tão rápido? Compromisso inadiável? – pergunto. Eu vejo seu rosto pálido ficar vermelho de vergonha. Franzo as sobrancelhas mais uma vez. Oh não! Odeio quando meus palpites estão certos. Geralmente quando acerto, significa que algo nada agradável vai acontecer. Logo penso em meu pai, mas abomino esse pensamento da minha cabeça e foco no vestido.

– Sim. – Finalmente responde. – Casamento. – Ela fala.

– Ah jura? Posso saber de quem? – Não sou curiosa, mas isso está me coçando a cabeça. Esse vestido não serve para ir nem como convidada de uma festa de casamento. Muito encardido, simples e velho. Não é um modelito muito adequado.

– Meu – diz ela, de maneira quase inaudível. Estou chocada e pisco diversas vezes, tentando capturar o momento. Esse dia está demais. Quantas surpresas ele ainda guarda para mim?

– Você vai casar? – Pergunto. Não porque não tenha escutado direito, mas porque não havia mais nada para dizer e estou realmente chocada. Ela é muito jovem para se casar. E quem seria o pretendente? Se eu fosse o pai dessa menina, jamais deixaria que ela se casasse com um garoto dessa parte do setor, mas com um garoto de uma outra parte mais rica que a nossa. Assim ele poderia lhe dar melhores condições de vida. Nunca com um homem daqui, que não pode sustentar nem as próprias calças.

– Sim. – Ela diz.

– Com quem? – Sinto que estou fazendo perguntas demais e acabando com meu próprio tempo e com o dela também, que com certeza deve ter coisas mais importantes para fazer do que conversar com uma costureira na porta de sua casa sobre o seu casamento. Uma completa estranha. Nós quase nunca nos vimos. Apenas esbarramos nos corredores da nossa escola algumas vezes. Sei que é muito desconfortável compartilhar informações da sua vida pessoal com uma pessoa com a qual mal tem contato, principalmente a que você contrata para dar pontos num vestido sujo e esfarrapado que você vai usar no próprio casamento. Mas eu preciso saber, não consigo entender. Talvez eu seja um pouco curiosa, talvez esteja sendo agora, mas é que Bruna é apenas um ano mais nova do que eu. Precisaria de consentimento dos pais para casar e isso exige uma papelada absurda no Departamento Judicial. Com a maior certeza, o garoto com o qual eu a via agarrada na escola não pode sustentá-la. Não é ele.

– Com um garoto... – Ela trava. – Com um garoto de fora. – É por isso que rezo para que todos os meus palpites estejam errados, mas o universo está armando um complô contra mim. Da próxima vez não abro mais a minha boca. – Ele é um amigo da família-

– Você quer se casar com ele? – pergunto, interrompendo-a. Ela se assusta com a minha pergunta. Sei que cada vez que ouso abrir a minha boca, estou adentrando um território proibido. Quero me calar, mas é involuntário. Preciso saber o que vai acontecer com essa garota. Se ela vai ficar bem, se o garoto a quem está prometida vai poder sustentá-la, sustentar os filhos que terão juntos se o matrimônio se concretizar, afinal é algo que não vai poder ser desfeito depois.

– Quero sim! – Ela quase grita. Depois recua um pouco e se apoia na porta de madeira. – Eu quero sim. – Fala baixando o tom da voz. – Quero ajudar meus pais, quero tirá-los daqui. Eu quero ter uma vida boa. – Ela olha para dentro da casa. – Ele é um amigo da família, eu o conheço. Ele é só dois anos mais velho do que eu e sempre nos demos muito bem. Ele vem de uma família com melhores condições sociais, eu vou ficar bem. – Uma pausa para respiração. Fico esperando o que ela dirá a seguir, mas nada mais sobre o seu casamento.

– Agora você tem que ir, Annie. Quero que o meu vestido seja a sua prioridade. Quero ele aqui amanhã. Só lhe pagarei quando o vestido estiver aqui na minha porta. Não mais. – Então ela fecha a porta sem me dizer adeus.

Continuo parada em frente a porta esperando que ela volte para que eu possa pedir desculpas. Sei que passei dos meus limites, mas foi algo que não pude evitar. Até cogito bater na porta e pedir desculpas a ela, mas sei que a deixaria mais irritada do que já estava, apesar de não ter dito. Ela é educada demais para isso. Então, apenas fechou a porta na minha cara. Então, agora é a minha hora. Tenho que costurar um vestido para um casamento.

Como a vida é injusta! Penso em Bruna, uma garota gentil e doce que estudava na mesma escola que eu, cercada de amigas e que tinha um namorado legal e que realmente a amava. Mas a guerra tomou o emprego de seu pai e ela se viu obrigada a casar com um cara que mora a quilômetros de distância, apenas para que a família tenha condições de se sustentar. Ela está sacrificando sua própria felicidade para ter o que comer, para que todos os que ama tenham o que comer. Imediatamente, penso que estou vivendo a mesma situação. A guerra levou embora o emprego do meu pai e agora estamos sem rumo. Meu pai vai se alistar como soldado e lutar para que nós sejamos alimentadas. Ele está abrindo mão de sua felicidade ao nosso lado, até mesmo de sua vida para que nós vivamos. E tudo o que eu tenho feito é pensar em mim mesma, em como eu ficaria sem ele, em como eu me sentiria se eu não o tivesse por perto, quando deveria pensar no que ele está fazendo: um sacrifício. Por todas nós. Minha mãe, minha irmã e eu. Ele está abrindo mão de tudo o que ele tem para que tenhamos o melhor, para que vivamos, para que sejamos felizes. E eu esqueci de agradecê-lo por isso. Ultimamente, eu só tenho praguejado contra o meu governo, tenho sentido ódio porque vão tirá-lo de mim. Não posso me culpar por isso, é verdade. Mas ao invés de me focar somente no ódio que sinto, deveria também ajudar meu pai. Não deve estar sendo fácil para ele. Pelo menos uma vez tenho de focar realmente nele. Pelo menos uma vez tenho de focar na minha família. De verdade. Pelo menos uma vez tenho de agradecê-lo pelo que está fazendo por nós. Tenho de parar de ser tão egoísta e parar de pensar em meus sentimentos, de praguejar contra o mundo. Tenho de pensar nos sentimentos dele, no que ele precisa, o que precisamos.

Bruna é um exemplo disso. Será que alguém já parou para agradecê-la? Será que esse esforço está sendo reconhecido? Como será que ela se sente? Passo e repasso a cena em que ela acaba tudo com o seu antigo namorado, em que ela conta que foi prometida a outro rapaz. Que não poderia haver mais nada entre eles. Imagino as várias reações dele: ele surpreso, não aceitando aquilo, gritando com ela. Imagino-o chorando, implorando para que ela não faça isso com ele. Imagino-o aceitando a situação e dando-lhe um último beijo de despedida, lhe desejando toda a felicidade do mundo.

Então me acomete um pensamento: será que ela realmente foi prometida? Ou que ela pediu ajuda? Será que pediram a sua mão? Será que o noivo conhece os motivos dela? Será que ele a ama? Como será que ele a trata? Ele vai cuidar bem dela? Ele reconhece o seu esforço? Paro no mesmo instante. Pare de pensar nela! Você não pode fazer nada! Nada a respeito! Pare de invadir a vida da garota, Annie, repreendo-me mentalmente. Eu não tenho esse direito de pensar a respeito dela. Não é justo que eu fique fantasiando a respeito de uma vida que não me pertence. Não posso me dar a esse luxo. Esse é exclusivamente dela.

Mas e se ninguém reconhece o que ela está fazendo? E se o próprio noivo não reconhece isso? Paro de andar. Tive uma ideia! Corro até em casa e grito por meu pai. Pergunto-lhe se ele está disposto a um desafio.

– Que desafio, querida? – pergunta.

– Um vestido de casamento em um dia – respondo.

– Impossível – Diz ele. Ergo o vestido e o apresento a ele. Ele toma o vestido em suas mãos e começa a olhar, analisando-o. Então ele entende. – Não se você já tiver um modelo pronto.

– E com um ajudante a mais – digo.

– E nós também! – Mamãe aparece na sala junto com Larissa, ambas pulando de alegria. Ele parece pensar.

– Muito bem, muito bem. Um vestido de casamento em um dia com quatro pessoas trabalhando e um protótipo em mãos. Mamão com açúcar. – Ele pisca para mim e começamos a trazer todos os materiais do porão e a levá-los para a sala, que é o lugar mais espaçoso da casa, depois do porão mal iluminado. Imediatamente começamos a trabalhar no vestido. Dou a papai todas as informações que tenho sobre a garota. Tímida, doce, gentil, educada, 1.60m, os tipos de roupa que eu a via usar depois que ela saía da escola. Meu pai decide alongar o vestido, então ele começa a fazer um esboço. Em poucas horas, o vestido estava pronto. As mangas iam até poucos centímetros abaixo dos ombros, o vestido descia reto todo em renda de maneira sutil e delicada, sendo revestido com cetim branco. Delicado e simples, é o máximo que podemos fazer.

– Eu disse que ia ser fácil. – Papai diz ao finalizarmos o último ponto da renda. Mas mal ele diz algo e a televisão liga sozinha. Geralmente quando isso acontece é apenas para transmissões de programas do governo, então nenhum de nós se assusta quando isso ocorre. Nem mesmo quando as imagens revelam uma guerra nas ruas: civis e rebeldes. E assim, as imagens voltam a minha cabeça. Nicolas! Será que está bem? Será que voltou para casa? Ou ainda está na rua, no meio do caos? Ou está lutando com os rebeldes? Talvez aquela arma fosse uma desculpa para que eu não o denunciasse a uma autoridade.

– ...Recomendamos a todos os cidadãos que permaneçam em suas casas até segunda ordem. – A repórter diz, chamando a atenção de papai e de todos nós.

– Bem, parece que estamos presos em casa até aviso prévio – diz ele com um quê de chateação na voz.

Bem, pai, hoje ainda não é o seu dia, é tudo o que consigo pensar a respeito antes que meus pensamentos sejam direcionados a outra pessoa. Bruna. Penso no seu vestido. Seu casamento. Sua promessa. Seu noivo. Em como ela vai ficar. Não mais é só uma questão financeira, mas uma questão de honra entregar este vestido. Nem que eu tivesse que pular as janelas e ser salva por Nicolas mais uma vez. Sendo ele rebelde ou não. Era a minha chance de provar. De provar o que eu sentia. De provar que ela não estava sozinha.

De provar que eu reconhecia.

Que eu reconhecia todo o seu esforço. E estava disposta a ajudá-la da maneira mais simplória possível.

Eu estou do seu lado. Eu reconheço.

Você não está sozinha. Eu reconheço.

Eu reconheço.

E tudo em que consigo pensar agora é numa forma de sair daqui e cumprir meu prazo.


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