Tic-tac escrita por Acácia
Notas iniciais do capítulo
Boa leitura
Maitê,
Mudei de colégio.
Agora mesmo no meio do ano. Minha mãe descobriu que eu não ia há meses para as aulas. Ela gritou e eu chorei, não aguento gritos, não os compreendo, tremo-tremo. Ela gritou e foi embora, fiquei chorando.
Não pude me explicar, gritar também. Dizer que ninguém me ama, que não tenho amigos, que eu estou só e ninguém se importa. Que estou sozinha, perdida no mundo e dentro de mim. Me deixaram muda, jogada no canto e decidiram.
Decidiram que eu ia mudar de colégio, que ia estudar onde tivesse um programa de inclusão para mudos-não-surdos.
O novo colégio é longe do lago.
É horrível, os professores são bonecos sorridentes e os alunos me olham sem parar. Mas tem uma garota, Maitê.
Ela disse que eu era mais-que-bonita-linda-linda-de-morrer , e acariciou os meus cabelos. Às vezes fico junto dela e ela discursa o seu monólogo. O seu nome é Rô. Pode ser Rosana, Roberta,..., mas só a chamam de Rô. Rô é do terceiro ano e quer fazer filosofia e se mudar pra Amsterdam. Eu sou do 1º, e fico sozinha na minha sala.
Rô também é linda, é decidida e tem os dentes amarelados mais instigantes do mundo todo. Rô tem um cabelo bagunçado que eu quero arrumar-lavar-pentear-alisar-tocar-cheirar pelo resto da minha vida. Rô é alta, magra, com cintura e seios. As pernas dela são terríveis, me enlouquecem e ela percebe. Ela sabe e usa saia, Rô é provocante. Adoro o jeito que a saia fica nela, nas pernas dela. As pernas são longas, mastigadas, finas, tão brancas, tão tão. Rô é intensa até nas pernas, Maitê. Ela vicia, as pernas. São redondas e os joelhos são lindos. As pernas de Rô causaria inveja na Vênus de Milo. As pernas, Maitê.
No recreio é bom, ela me protege e diz que eu sou linda. Ninguém nunca me disse isso.
Hoje nos abraçamos. Quero abraçá-la mais vezes. Acho que somos amigas, Maitê.
Tenho duas amigas agora. Não estou tão só.
Fiz um desenho um desenho seu. E você é louca nele, também. Você está rezando e lendo Marx. Na minha fantasia você lê o tempo todo. Maitê, na vida real, você lê?
Sonhei com você e com a Rô. Vocês se beijavam. Fiquei com raiva. De você e da Rô. Fiquei com ciúmes. Maitê.
Aqui também tem um relógio, talvez porque o tempo está em todo lugar. Me sinto perseguida, Tê, o relógio fica na minha casa, é de pêndulo e me deixa esquizofrênica: escuto o relógio mesmo sem estar perto dele, tic-tac-tic-tac-tic-tac. Se pudesse, gritaria. Gritaria para fazer parar o barulho. Tic-tac-tic-tac. Me sinto sufocada, também. Como se houvesse um sussurro da morte: tic-tac-tic-tac, chérie. A morte sempre fala francês. À noite, acordo, e tento gritar a cada hora. Ele tiquetaqueia mais forte, ele é de pêndulo e marca a hora assim. Tento gritar e não sai nada, enquanto a morte, o relógio, sussurram: eles explodem o meu silêncio, Maitê.
Não vou te incomodar com isso, não vou te perturbar, não vou te lembrar do tic-tac. Então, sobre todo esse carinho, que quase choro ao receber, respondo, desabrochando uma ternura que desconhecia:
Estou gostando de estar te conhecendo. E eu amo o fato de você ser um redemoinho assim, amo porque você é louca e estou tentando sugar um pouco da sua loucura. Quero ser intensa, maluca, rodopiante. E amo que você me diga palavras bonitas. Você foi a primeira a me dizer coisas bonitas. Quero um dia começar a amar você. E que você me dê esse seu carinho, que sinto de longe e que está aquecendo a minha alma.
E ah, Maitê, quando eu começar a te amar, pode ter certeza, eu vou te amar pra sempre, tão loucamente que vai chegar a doer em mim e em você.
A sua garota tola,
Acácia.
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Obrigada por ler