Tic-tac escrita por Acácia


Capítulo 5
Tic


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura



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Acácia,

Mudei de escola só uma vez, entre a primeira e a segunda série. Eu tinha medo da professora e chorava antes de ir pra escola todos-todos-todos-os-dias.

Minha mãe me mudou de escola e conheci uma professora legal, mas minha mãe foi chamada porque eu dormia durante as aulas, o que me faz pensar que talvez a professora não fosse tão legal, porque se fosse eu ficaria acordada. Eu lembro de gostar dela e de coisa alguma além.

Eu fico feliz que tenha mudado de escola e que possa ter conhecido um pouco do que o amor é, sua amiga parece incrível. Então já pode parar de se considerar sozinha e perdida no mundo, porque alguém gosta de você e te acha linda.

Eu não tenho ninguém pra descrever, bem, eu tenho um boneco, não que ele seja meu amigo. Ele chegou anonimamente, pelo correio, para a minha colega de cela e ela me deu. Sem mais explicações. Eu nunca pensei nisso, mas talvez ela também seja muda, talvez só seja antissocial demais, espero que essa comparação não te ofenda. Mas ela só não fala mesmo.

Todos tem medo dela. Eu não tenho, tenho medo de aranhas.

Ontem o médico veio aqui logo depois da carta, e eu falei da minha colega, mas ele disse que eu deveria ser atendida por um psiquiatra e agora eu tomo uns remédios pra ansiedade, eu penso se, talvez, eu guardá-los e comer tudo de uma vez, eu morro. Será que morro?

Mas o boneco, ele é lindo, ele dorme comigo, ele tem a roupa rosa e roxa, isso me dá incertezas sobre ser um boneco ou boneca, mas em seu sapatinho, bem embaixo, está escrito Pierrot, ele é um palhaço triste e eu acho que combina comigo, porque faço os outros rirem e sou triste em dobro. Tem as lágrimas desenhadas nele. Eu não conheço sua história, você conhece a história do Pierrot? Pode me contar?

Sabe, talvez eu seja louca como no seu desenho, mas a culpa não é minha, a culpa é do mundo, é a falta de expectativas, de grandes mudanças, é essa coisa de saber que amanhã estarei no mesmo lugar com as mesmas roupas e as mesmas pessoas. É o cinza nas paredes e o tic-tac do relógio.

Quem não enlouqueceria?

Mas eu não costumo rezar, talvez fosse algo a fazer, ter fé e levar a vida por mais miserável que seja, acreditar que o sofrimento é um presente e que devo agradecer só por estar viva, essas coisas. Será que é tão bom estar viva?

Mas não quero plantar essas perguntas em você.

Eu leio sim, ou lia, não tenho certeza de há quanto tempo li meu ultimo livro, mas não lia Marx, é intelectual demais pra mim. Eu li, e gostei, e recomendo, O mundo de Tinta, é uma trilogia (Coração de tinta, Sangue de tinta, Morto de tinta). Eu li tantos, tantos livros, até escrevia, se quiser acreditar, mas nunca mostrei nada a ninguém. Eu adorava ler quase tanto quanto adorava viver. Eu gostava de sair com um livro na bolsa e ler a cada paradinha, ponto de ônibus, fila do mercado, fila do banco, etc. E você Acácia? Lê?

Não deveria Acácia, sentir ciúmes. Acho que ninguém me beijaria porque a cadeia não faz bem pra pele ou pro cabelo. Eu provavelmente só estava ensinando a Rô como acho que ela deveria lhe beijar, lenta e delicadamente. Porque você é uma flor, eu sinto, fura-neve. Fura-neve porque está em um ambiente totalmente gelado e ainda consegue ser uma flor.

Espero que a Rô te aqueça.

Nunca vi um relógio de pêndulo, exceto uma vez no shopping. Eu os achava tão bonitos, sim, acho que o problema não é o relógio, é o tempo, em todos os lugares, ininterrupto-assustador-devorador-de-vidas. Acho que a cada tic e a cada tac eu fico mais ciente de onde estou, não porque o tempo diz algo, mas porque se eu ouvir um milhão de vezes o ponteiro mudando, sei que estarei aqui no próximo milhão. Não tenho medo da morte Acácia, eu até gosto dela, procuro pelos corredores e chamo baixinho, porque se eu a quero, quero de uma forma suave e não agressiva. Eu não gostei dela quando fui eu, quando eu fui a morte, porque era meu irmão na ponta daquela faca, e porque ela entrou nele mais de uma vez, e tudo foi muito feio.

Acho que não queria falar sobre isso, mas agora sabe que tipo de loucura está em mim.

Eu deveria ter cuidado dele, ele sumiu por uns dois dias e voltou muito drogado, ele sempre se drogava, mas nunca foi tanto, nunca com feridas e olhos vermelhos na minha frente, ele era respeitoso o suficiente pra esconder o que fazia.

E sabe o que ele queria? Meu relógio.

Meu relógio de pulso que ganhei na formatura, ganhei da minha avó.

Infelizmente a faca estava por perto e ele tentou bater em mim, se fosse só uma facada seria legítima defesa, mas acho que fiquei meio maluca sim, eu não estava matando meu irmão, estava matando um drogado, sabe? Ele não era meu irmão quando estava naquele estado, como minha mãe não era minha mãe quando estava bêbada. É como as coisas evoluem.

Acho que estou fazendo um drama, as coisas perdem o peso em cinco anos e os jornais não dizem mais nada sobre minha crueldade. As pessoas nem lembram, exceto minha família que continua me ignorando.

Mas agora você apareceu, ou eu te encontrei, seja como for, eu também estou gostando disso, gostando de me esvaziar de mim, me preencher de você, eu gostaria de estar fora, faríamos algumas coisas loucas, pra rir e se arrepender, rir de novo e se arrepender de tão ter feito pior.

Acácia, eu realmente gosto do seu contato, de você e da sua paciência, de ter uma amiga imóvel e sem grana, deve ser complicado. Fico muito agradecida e mais que isso, me sinto abençoada por ter te conhecido.

E será a dor mais bonita do mundo.

Maitê


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler