A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 4
Capítulo 3 - Encontro oportuno




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Fora um encontro repentino, puro, mas surpreendentemente complexo. Ele havia levado a tantas mudanças nos envolvidos, apesar de não se conhecerem, que era assustador o quanto eles se entenderam em tão estranha situação.


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A garota que vendia guarda-chuvas andava pela rua com uma leveza extraordinária, com uma lentidão graciosa, como se fosse um anjo a deslizar.

Sua figura emanava uma beleza etérea, quase irreal; seu longo cabelo castanho caindo sobre seus ombros, seus cativantes olhos verdes, sua silenciosa expressão, sua fina boca esboçando um pequeno e discreto sorriso, seu pequeno e perfeito nariz. Estava usando um galante, porém velho sobretudo preto, com várias camadas de roupa por baixo, porém estava com as mãos nuas, mãos de pianista, finas e com dedos longos, enfiadas no bolso do sobretudo. Era uma figura adorável, misteriosa, linda. Ela se dirigia a praça a qual frequentava e da qual era uma das únicas visitantes.

Era inverno, mas, como raramente acontecia, ainda não havia nevado naquele dia. Quando os primeiros flocos de neve caíram sobre a cidade um sorriso de genuína felicidade estampou o rosto de Hannah. Seus passos ganharam velocidade e força e em pouco tempo estava correndo, levando sua velha companhia muda pela mão direita, a carcaça de seu guarda-chuva. Queria chegar logo na desértica praça, para brincar na neve como de costume, do jeito que uma criança faria, o espírito de uma tola. Queria fazer anjos na neve e saborear os deliciosos flocos que caíssem em sua língua.

No banco da praça, uma surpresa: um menino, não mais que sua idade, chorando, fraco; ela o reconhecera, era o calado filho do coveiro, normalmente emitindo uma calma, porém um pouco austera aura.

O cabelo castanho desarrumado, os olhos azuis escuros, engolindo tudo para dentro de seu infinito oceano, resultavam numa silenciosa e sóbria figura.

Hannah andou silenciosamente até ele, seus pés afundando na neve dos últimos dias e sentou-se no banco, um pouco distante dele.

O banco rangeu levemente, de modo que Isaac percebeu a presença de alguém; uma figura fantasmagórica que visitava a praça para tentar repetida e inutilmente voltar ao passado, a doce inocência da infância, tão melhor que a amargura da velhice e das constantes dores, ele achou; o tipo de pessoa que merecia uma morte feliz, ao menos serena, alguém que não queria mais tortura para estender por um segundo seu mísero tempo de vida na Terra.

Ele espiou pelo canto do olho direito quem estava ao seu lado e tentou esconder a própria surpresa quando constatou que todas as suas suposições sobre o estranho estavam erradas ao ver uma pessoa da sua idade, uma garota, não, não uma garota, a garota, a bela garota, a garota que vendia guarda-chuvas.

Um profundo silêncio estabeleceu-se entre eles; ele ignorou a misteriosa presença dela, porém isso somente os aproximava, o inexorável silêncio engolindo tudo ao redor deles, destacando suas solitárias figuras, eventualmente também engolindo a curta, mas psicologicamente longa distância entre eles, eliminando a necessidade de palavras, e fazendo com que a falta delas se tornasse compreensão mútua; mesmo assim, ainda havia algo na postura de Isaac, algo perceptível somente para Isaac e Hannah, algo que era como uma barreira, uma tentativa de isolamento, algo que supostamente deveria repeli-la e impedi-la de se aproximar fisicamente dele, algo que Hannah há muito havia notado, mas que havia decidido ignorar.

Hannah ficou ao lado dele no banco, tomando cuidado para não retirar Isaac do estranho transe em que entrará ao deixar outra lágrima escapar de seu olho e rolar pela sua face até cair na neve e estragasse a brecha que havia conseguido em sua antes impenetrável barreira. Segurou sua mão direita e lentamente tirou a luva dela, para depois segura-lá com a sua em um inesperado gesto de carinho, de certa forma bem vindo para Isaac, apesar de sua resistência, a aveludada mão de Hannah aquecendo a de Isaac e aconchegando-a. Isaac segurou-a firmemente, destruindo totalmente o isolamento anterior.

Trocaram olhares; olhares de compreensão, reveladores, reconfortantes. Os intrigantes olhos verdes e os profundos olhos azuis se entenderam, mergulharam uns nos outros, em uma magnífica, mas curta dança, de sentimentos, palavras não ditas, ações não realizadas e pensamentos.

Era uma imagem pura para qualquer passante, as duas belas figuras, mudas, de mãos dadas, se olhando, se admirando, uma imagem parada, eterna, uma estátua tão realista quanto uma fotografia, que capturava todos os sentimentos do momento.

Quebrando a paralisia momentânea antes que ela se tornasse excessiva e recriasse a barreira entre eles, Hannah passou a mão direita suavemente pela face de Isaac, secando o resto das salinas lágrimas, um gesto sincero e comovente. Ela sorriu, um sorriso de compaixão e soltou a mão, calmamente a alisando para que não quebrasse o recém-formado elo entre eles. Ela passou o braço esquerdo por cima dos ombros de Isaac e abraçou-o, o veludo de seu sobretudo esquentando-o, confortando-o. Ele involuntariamente retribuiu o gesto e também a abraçou, um discreto e aliviado sorriso na face. Hannah apoiou a cabeça no ombro de Isaac, chegando o mais perto possível dele e lenta e graciosamente beijou sua bochecha. Ele enrubesceu, o beijo despertando nele um sentimento antes incólume, escondido e selando o misterioso laço entre eles que se manteria para sempre.

Isaac puxou-a para perto de si e pousou sua cabeça em seu ombro novamente e delicadamente passou a mão pelos sedosos e volumosos cabelos de Hannah; ele admirou-se com os recentes e estranhos acontecimentos e com o seu próprio inesperado movimento de aproximação. Decidiu-se deixar levar pelos cuidadosamente planejados movimentos de Hannah.

A neve ficou mais forte, os flocos caindo incessantemente em cima dos dois.

“Ele morreu, não é?” Hannah perguntou, sua voz doce, cativante, as primeiras palavras ditas durante todo aquele tempo fluindo naturalmente, surpreendentemente não destruindo nada da muda união entre eles.

Isaac engoliu a verdade e preparou a palavra, encarando a vida daquele dia em diante: “Sim.”.

“Você vai...?” ela perguntou, esperando que Isaac a completasse a frase sozinho.

“Não no cemitério. Ele merece mais do que isso.” ele respondeu impulsivamente, uma idéia recém-formada lhe escapando, lendo a mente de Hannah.

“Faça-o agora, você não vai gostar de dormir na mesma casa que um cadáver.” a voz de Hannah suavemente entrando pelo ouvido de Isaac, fazendo o enrubescer ainda mais.

Isaac se levantou, calma, porém subitamente, para surpresa de Hannah, que imediatamente segurou a mão dele quando ele a estendeu em sua direção, mordendo o lábio, em uma sincera expressão.

As mãos se reconfortando, a luva retirada da mão de Isaac no bolso de Hannah, eles caminharam, passos firmes, Hannah sendo levada até a casa de Isaac, até o cadáver de Jacó, a pá e o guarda-chuva nas mãos livres dos respectivos donos.

“Ele não morreu feliz; agonizou a noite toda e eu não tive a capacidade de sequer ouvir seu clamor por viver. Matei-o.” Isaac confessou à Hannah no meio do caminho, as palavras pesarosas saindo de sua boca, sendo engolidas pela terra; já não podia esconder nada dela.

“Aneurisma.” ela disse, simplesmente, aproveitando os fatos que Isaac desconhecia.

Era verdade; Jacó tinha aquela maldita sentença de morte em sua cabeça, insolúvel, uma bomba-relógio.

Hannah havia entreouvido Jacó, ainda junto com Júlia naquele tempo, errante na época primaveril, ensaiando o que diria a ela.

“Eu vou morrer. Talvez não tão cedo, mas eu vou morrer. E o culpado mora no meu cérebro.” ele dizia lentamente, seus pés na grama, perto do velho pinheiro, cuja sombra era onde Hannah estava sentada, para logo depois desistir e desabar, a máscara de segurança ruindo.

Ficara bastante claro para ela que Jacó não havia conseguido revelar a tenebrosa verdade a Júlia e certamente também não a Isaac.

“Ele não disse a ninguém.” ela respondeu a pergunta de Isaac antes que ele pudesse perguntá-la.

“Não queria que você tratasse ele como se cada dia pudesse ser o último, eu acho. Ele próprio queria se esquecer daquilo.” Ela completou, com medo da reação de Isaac, tão fragilizado.

Isaac apertou a mão de Hannah e a pá com a outra mão. Necessitaria das duas com nunca precisou de nada antes daquele fatídico dia. Uma desconhecida que vendia guarda-chuvas e uma pá. Uma desconhecida e uma pá seriam a extensão de seu ser, um pedaço dele próprio.

“Obrigado,...” ele agradeceu em frente a sua casa.

“Eu sou Hannah. De nada,...” ela respondeu, sorrindo do doce jeito que somente ela conseguia fazer.

“Isaac. Eu sou Isaac.”

Sentando-se na neve e recomeçando a chorar, Isaac sinalizou a Hannah com um olhar: “Ainda não”.

Hannah sentou-se ao lado dele. Abraçaram-se.



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