A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 3
Capítulo 2 - As lágrimas que não saem


Notas iniciais do capítulo

Qualquer feedback a ser dado é importante. Meu estilo de escrita nessa época era bem ruim, mas acaba melhorando em outros capítulos. Eu tô trabalhando agora em refazer a estrutura da história, pra depois começar a reescrevê-la, então, quanto mais ideias, melhor!



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Seu olhar petrificado, parado no tempo, a dúvida e a incerteza mais profunda do que palavras pudessem exprimir.

O pai estava morto; não havia respiração, não havia pulso, algo já óbvio pela cor pálida de seu corpo; não havia sorriso em sua face, nem mesmo uma expressão serena, o garoto percebeu, com uma punhalada de dor.

A culpa o inundou; ele conseguira não perceber seu pai, agora morto com uma expressão assustada e espantada na cara agonizar durante a noite, pedir socorro, com a vida a se esvair.

Conseguira, estando acordado, de certa forma irresponsavelmente matar o próprio pai, o único tênue, frágil e agora quebrado elo com uma razão, um sentido para sua errante vida.

Estava sozinho, perdido, com dois cadáveres a serem enterrados; era agora órfão de pai, era não mais o aprendiz de coveiro, era, depois de vários anos como tal, o coveiro oficial, era, antes de tudo, Isaac, o filho do coveiro.

Ele vestiu as luvas, o frio, o medo, a culpa, a insegurança e o pesar se misturando numa sensação enregelante, todo o calor fugindo de seu corpo com espantosa rapidez, arrepios percorrendo sua pele.

As lágrimas haviam secado, e não saiam de seus olhos, apesar da imensa tristeza e suas constantes tentativas de chorar e expulsá-la e expressar a lástima que sentia, enquanto se arrastava como uma alma penada para pegar a pá, a pá quer seria como uma extensão de sua própria alma nos dias que viriam, para depois se agasalhar excessivamente contra os calafrios, porém infrutiferamente.

Isaac saiu pela porta, o andar mais firme, a pá servindo discretamente como apoio para impedir que não se jogasse na neve repentinamente na neve devido à tristeza.

“Onde está o outro coveiro, o seu pai?” perguntou lhe a velha senhora, vestida de preto, as rugas cobrindo toda sua face, coberta por um véu negro bastante transparente.

“Não há outro, não mais. Ele está morto, acabei de ver.” ele respondeu, um leve tom de irritação transparecendo em sua voz, a irritação depois de um momento difícil, a irritação com os outros por não compreenderem totalmente o seu sofrimento e não poderem curá-lo.

“Ah...” ela respondeu, perplexa, a insegurança diante de o enterro ser realizado por um coveiro de 14 anos recentemente emocionalmente abalado; as palavras retrocederam garganta abaixo e ela engoliu em seco.

Tinha de confiar naquele garoto, filho e aprendiz de Jacó, o habilidoso coveiro daquela cidade. Era certamente inesperado para pai e filho que Isaac fosse substituir o pai tão cedo, mas experiência para um enterro o rapaz deveria ter, depois de alguns anos aprendendo, caso contrário sabia que Jacó não teria hesitado em se recusar a continuar a treinar o filho; ela o conhecia bem demais para que houvesse um fiapo de dúvida quanto a isso.

Isaac não percebeu o momento em que começara a trabalhar; sua mão realizava os movimentos necessários com uma precisão quase automática. Recusou-se a olhar mais do que o estritamente necessário para o cadáver, e não percebeu propositalmente a expressão em sua face sem vida.

Estava absorto em seus pensamentos, o barulho da terra servindo como música de fundo.

O caixão foi baixado para dentro da cova, palavras foram ditas, bênçãos, homenagens, grunhidos sem sentido para Isaac, que havia cavado a sepultura e baixado o caixão como fora cuidadosamente ensinado por Jacó. Não haveria lápide, o marido havia pedido a esposa, não queria ser reconhecido em meio aos outros mortos.

Isaac foi embora do cemitério, deixando a velha senhora sozinha para chorar, chorar lágrimas que não saiam, pois ela já esperava sua morte, depois de anos problemáticos. Isaac havia feito seu primeiro enterro.

Seus passos lentos, errantes, foram acompanhados por uma torrente de pensamentos e idéias desesperadas, fragmentadas.

“Será que devo assumir oficialmente o cargo de coveiro?” ele se perguntou, mas logo deixou o problema de lado para se concentrar em algo muito mais urgente:

O que fazer com o cadáver do pai?

Decidiu silenciosa e inconscientemente o seu futuro ao levar a pá consigo; seria o coveiro, enterraria o pai ele mesmo. Viveria, dia por dia, fazendo a mesma coisa, até que algo diferente interrompesse sua rotina, nessa hora finalmente pararia e pensaria sobre o que fazer com o tempo que lhe restasse. Viveria para si, somente para si, sozinho, esconder-se-ia por trás da estranha monotonia que se abateria sobre ele com a vida de coveiro, enterraria os mortos, e, um dia, acordaria e veria que o tempo havia passado, não só para o resto do mundo, mas também para ele, impossibilitando-o de realizar seu difícil e menosprezado trabalho e ele passaria o resto de seus dias na velha cadeira de balanço, moribundo, lendo, até que fosse para junto dos outros que havia enterrado. Esse era o caminho que acabaria por seguir, caso nada houvesse mudado.

Nunca pensou sobre o seu futuro, mas era provavelmente assim que sua vida seguiria mesmo com a morte do pai ocorrendo anos mais tarde. Seria para sempre o medíocre Isaac, o coveiro.

Isaac não tinha sua raison d’être, seus objetivo ou sonho. Estava implícito, intrínseco nele a profissão de coveiro e a vida um pouco melancólica, assim como havia sido com seu pai. O que haveria de ser se não isso? O que haveria de procurar, se sua vida já estava completa e totalmente planejada? Se era feliz assim, porque largaria tudo?

Isaac, porém, não era um robô; existia algo em sua mente que, com o devido estímulo, talvez o levasse para longe da vida que teria: sua preocupação anormal com a expressão póstuma nos cadáveres que via. Se, de alguma forma, houvesse uma tênue possibilidade dele fazer as pessoas morrerem com um sorriso em suas faces, a alegria de morrer, pelo menos mentalmente felizes com a libertação das dores terrenas, com certeza ele se agarraria a ela com toda força, isso era óbvio, estava em seu subconsciente, ele podia até hesitar, mas sua escolha seria inevitável.

Havia também sido assim com seu pai; ele queria casar, de qualquer jeito, sem sacrificar sua profissão de coveiro. Ele conseguira realizar seu sonho, casando-se com Júlia, a ruiva otimista.

Seu casamento não dera certo, mas era um sonho realizado, algo diferente na vida melancólica praticamente igual à de seu pai, o avô que Isaac nunca chegou a conhecer, do qual não nunca se interessou um bocado pelo passado, nem mesmo via a pouca informação que tinha da infância do pai, pouca informação que não lhe foi dada por má vontade do pai e sim por falta de interesse de Isaac.

Cada passo incerto de Isaac na rua era como um barulho estrondoso em meio ao comum silêncio invernal; uma onda em um lago parado. Eles o levariam de volta para casa, naturalmente, onde sua vida rapidamente reentraria nos predestinados trilhos melancólicos. Seu subconsciente evidentemente o arrastaria para casa, cedo ou tarde, porém, sem que percebesse, Isaac chegou à solitária, etérea praça, que consistia em neve e raramente grama na época primaveril, com alguns balanços e uma gangorra.

Não era muito cuidada ou visitada, mas emanava uma estranha aura de beleza singular, irreal, hipnótica.


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