A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 5
Capítulo 4 - Adeus


Notas iniciais do capítulo

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Foi, talvez, uma das palavras mais pesadas que já haviam lido, aquele bilhete enigmático e sucinto, porém surpreendentemente esclarecedor, derramado com hesitação em uma caligrafia inconfundivelmente firme, perceberiam, cada um de seu modo, o crepitar, o sabor do presente, delicioso, ardente, a fome do desastre, tão insaciável, indescritível, tudo que os cercava tão estranho, complexo, porém somente uma palavra ocupou suas mentes, aquela palavra, a única palavra do bilhete, todo o conteúdo havia vazado, jorrado, se espalhado, invisível, pelo chão.

“Adeus.”

Só. Somente e unicamente “Adeus.” Era a única palavra escrita naquele rasgado pedaço de papel, encontrado no quarto de Jacó, o coveiro insone, por Isaac e Hannah, após alguns minutos se abraçando sentados na neve, hesitando antes de entrarem no velho casebre onde moravam Isaac e seu agora falecido pai, em uma busca desesperada por uma mensagem, algo, algo que devia obviamente estar lá, afinal, Jacó sabia do aneurisma, com certeza devia ter escrito algo, não é? Algo passou pela sua cabeça rapidamente: “Ele teria escrito algo caso soubesse do aneurisma. E se Hannah tiver mentido para amenizar minha tristeza?” A conveniência que seria Jacó sair por aí, errante, ensaiando um discurso para sua esposa no lugar em que Hannah costumava ficar era extrema que abalava a credibilidade deste fato. Antes que pudesse sequer concluir seu pensamento, Hannah tocou seu braço gentilmente, fazendo Isaac virar-se para vê-la. Ela estava sorrindo marotamente, segurando uma das tábuas do assoalho, despregada de sua posição normal.

“Estava solta. Ainda acha que não tem mensagem nenhuma e que estou mentindo, Isaac?” ela disse, gentilmente, surpreendendo Isaac.

Ele andou até Hannah sem dizer uma palavra, encabulado pela súbita desconfiança nela. Hannah olhou-o nos olhos, perdoando-o pela reação mais do que esperada. Isaac olhou pelo buraco, cujo tamanho não era muito maior que 40 centímetros, e viu somente um bilhete, em branco, em cima da terra. Entendendo a mensagem do pai, Isaac virou-se para Hannah, cujo raciocínio fora surpreendentemente mais rápido que o dele, somente para vê-la, triunfante, perguntar-lhe:

“A pá?”

“Sim, por favor, Hannah.” ele murmurou, melancólico, mas surpreso pela sagacidade de Hannah, a frase dita por ela tão comum entre ele e seu pai.

Hannah foi até a sala, onde haviam largado todos os seus pertences desorganizadamente, o guarda-chuva e a pá misturados com sapatos. Quando voltou, viu Isaac ofegante, retirando outra tábua do assoalho, para que pudesse ter espaço para cavar. Sorrindo, entregou-lhe a pá, e ajudou-o a arrancar a tábua, com extrema facilidade.

Isaac então se pos a cavar, e mal passaram dois minutos, parou, atingindo algo duro. Ele inclinou-se e pegou um objeto quadrado que lhe parecia uma caixa e ergueu-a, sentindo seu peso, anormal para uma simples mensagem.  Hannah discretamente foi para seu lado e assistiu-o abrir a tal caixa, os olhos de ambos fixos na mesma. Na caixa, somente um bilhete:

“Adeus”

Era só uma palavra, mas fora surpreendentemente iluminadora, suprindo qualquer necessidade das outras palavras que obviamente Jacó queria ter escrito. Não havia mensagem secreta, independentemente do ângulo em que Isaac desesperadamente procurasse. Propositalmente ou não, aquela palavra delicadamente escrita no papel soara tão dramática, tão completa, que ela fora completamente despida de toda e quaisquer banalidade que pudesse carregar; consciente disso ou não, Jacó não só não conseguia mais escrever nada além daquela palavra em sua mensagem; já não existia mais necessidade para tal coisa, não existia necessidade nem para um mísero ponto final.

Irrelevante teria sido a falta de tal coisa para Isaac e Hannah caso a raiva, a ira incontrolável, não tivessem forçado a arma no pescoço daquela pessoa, cujos sucessivos pedidos foram absurdos, enervantes, cujas desculpas foram estúpidas, sem sentido.

Aquela falta de ponto final deixava tudo em aberto, a possibilidade de que mais palavras, talvez até um destinatário ao bilhete fossem adicionadas, caso Jacó finalmente descobrisse para quem deixava essa mensagem inicialmente aberta ao mundo, um discurso monossilábico de partida.

“Por que tanta dúvida a respeito do destinatário, afinal? Só pode ser Isaac, não é?” Jacó se perguntara uma vez e, sem ouvir resposta, perguntou de novo:

“Não é?” A pergunta ecoou no vazio e Jacó fora incapaz de se responder.

Mais importante ainda era o fato de que a falta de ponto final deixava algo incompleto, algo que jamais poderia ser tido como completo, concluído, algo que deixava uma coisa pendente para Jacó terminar, algo que de certa forma prolongava a vida de Jacó, dando vida a uma expectativa de que ele talvez voltasse para esclarecer o tal bilhete e mostrava que, apesar de saber da existência aneurisma, não morrera preparado.

Isaac segurou o bilhete com as mãos trêmulas por vários minutos, catatônico, até que Hannah, que, após ler o bilhete, voltara a lentamente vasculhar o quarto de Jacó a procura de algo, algo mais, algo que nenhum deles sabia o que era, algo inominável, sem forma, uma solução, uma resposta, um complemento ao bilhete, um comando que lhes dissesse o que fazer agora, lhe mostrou um envelope médico, cuidadosamente selado novamente, do jeito que havia sido entregue a Jacó, sem dizer-lhe nenhuma palavra, em frente ao criado-mudo de Júlia.

Estava bastante claro para ambos o que havia dentro do envelope. Isaac olhou Hannah nos olhos e hesitantemente que não com a cabeça; não precisava de mais nada daquilo, já acreditava no aneurisma com todas as suas forças.

Hannah rapidamente entendeu que não havia mais nada a ser encontrado e que já estava na hora de enterrar Jacó, antes que ficasse tarde e, graciosamente, enrolou o cadáver de Jacó, estirado na cama, num lençol e pegou a caixa discretamente, certa de que de alguma forma lhe seria útil, reparando, diferentemente de Isaac, em seu estranho peso, incompatível com somente um bilhete, tomando uma nota mental de tal fato para que pudesse avaliá-lo mais de perto. Combinaram que Hannah iria à frente, com a pá de Isaac, para avaliar se havia alguém na rua, para evitar complicações para Isaac, que iria um pouco mais atrás, o pai morto em seus braços.

Lenta e tropegamente andaram para fora da casa até onde quer que fosse, o lugar que emanasse a certeza, que os chamasse, que se mostrasse o certo. Sem que percebesse, Hannah os levou para fora da cidade, o vazio se abrindo na frente dos dois.

Pararam ao chegar ao Deserto do Pinheiro, ambos percebendo que lá era indiscutivelmente o lugar certo. Isaac arregaçou as mangas, pegou a pá que Hannah gentilmente lhe entregou, deixou o corpo de Jacó no chão, ainda enrolado no lençol e pôs-se a cavar a cova de Jacó em frente ao velho pinheiro, firme, porém velho, açoitado pelo hostil ambiente a sua volta, assim como Jacó, a semelhança entre ambos sendo muita porém difícil de notar como o pinheiro poderia ser a metáfora natural para ele, a metáfora imortal.

Talvez se passassem dias, meses, quem sabe até anos, mas Hannah não iria se mexer dali enquanto Isaac não terminasse de cavar; ela o observava com total atenção e calma, porém também eram perceptíveis a admiração e compreensão para com o sofrimento de Isaac, uma compreensão muito mais profunda do que simples compreensão momentânea; Hannah entendeu-o, dissolveu-o em palavras para depois bebê-las, deliciando-se com sua essência, absorvendo-o, entendendo quem era o garoto melancólico chamado Isaac, aprendiz de coveiro, normalmente monossilábico, cada ato dele sendo perfeitamente compreensível para ela. Ela percebeu que, caso ela jamais tivesse se aproximado dele na praça, Isaac teria uma vida repetitiva, sem jamais hesitar em continuar no mesmo caminho, até seu derradeiro fim.

Isaac desenrolou o corpo de Jacó do lençol e pousou seu corpo na cova. Botando para descansar a última de suas preocupações com a morte de seu pai ao fechar seus olhos e sua boca e tentar faze-la sorrir pela última e eterna vez, indiretamente fechando inúmeros outros olhos. Ele fechou a cova, quase totalmente imperceptível em meio à neve.

Hannah foi para perto de Isaac, que imediatamente segurou sua mão com tanta força até os nós de seus dedos ficarem totalmente desprovidos de cor. Ela pigarreou, ignorando a dor em sua mão, perdoando o exagero de força de Isaac e começou um repentino porém típico discurso de funeral, como aqueles que Isaac já estava acostumado:

“Irmãos e irmãs, estamos aqui reunidos para-” ela começou a dizer, porém logo parou, rapidamente percebendo que Isaac não concordava com nenhuma daquelas formalidades.

Isaac discretamente tirou um canivete suíço do bolso e suavemente inscreveu o nome do pai no velho pinheiro, junto com uma simples mensagem monossilábica, jamais visível para alguém que olhasse a árvore de relance ou de longe:

“Adeus”

“Para que?” Hannah perguntou, relutante. “O sorriso” ela completou.

“Todos devem morrer felizes, eu acredito.” Isaac respondeu, firme, decidido.

“Entendo.” Disse Hannah, entrelaçando seu braço ao de Isaac.

“Adeus” Isaac murmurou, a palavra voando diretamente de seus lábios, voando livre, solta.

Hannah recostou sua cabeça no ombro de Isaac, que começara a chorar discretamente.

E morreram os dois, definharam, suas antigas figuras sendo abandonadas para sempre, embaixo da neve que recomeçara a cair, tornaram-se um em dois, sendo para sempre eles, mas também sempre um ao outro.

Morreram os dois, mais vivos do que nunca.


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