A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 2
Capítulo 1 - Sorrisos eternos


Notas iniciais do capítulo

Períodos longos, eram minha trademark.



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Pás, o repetido ritmo de seu coração ao ver os cadáveres, parados no tempo, com uma expressão permanente em seu rosto: espanto, serenidade, e, raramente, sorrisos. Eram somente os sorrisos que o acalmavam. Sabia que os que morriam com uma expressão serena morreram dormindo, não estavam acordados para sentir o último suspiro de vida sair de seus corpos e a escuridão dominar sua visão, com o incerto a se aproximar e tudo acabar de repente. Ele se admirava como, no meio de tanta confusão, no fim de tudo, alguns podiam sorrir. Seria uma libertação de todas as dores que sentiam quando vivos, ou a simples expectativa de finalmente ir pro Céu? Não, com tanta incerteza a pairar, eles não poderiam ter a mínima expectativa de ir para lugar algum; só podia ser a mais extrema felicidade de se libertar das eternas dores da velhice ou de alguma doença. Era o mais genuíno sorriso de alguém que esperava a morte vir bater em sua porta há tempos, só não tinha coragem de trazê-la.

Eram poucos os sorrisos, pois quase todos acabavam morrendo no hospital, depois de horas de inúteis ressuscitações, lutas por mais um segundinho de vida, um segundo de tortura, preso entre a vida e a morte, sabendo o que lhe aguarda e com a macabra certeza de que morreria a qualquer momento, como um encontro sem hora marcada, na qual se espera ver a outra pessoa chegando a cada momento. E então, quando a maldita hora chegava, se assustavam, e morriam com aquela terrível expressão para sempre estampada nas suas faces, uma expressão que era pra ser seguida de outras, uma continuação e não uma ação interrompida, como o primeiro quadro de uma história.

A falta de mortes realmente felizes era uma preocupação que morava num canto da sua mente, um problema que, cedo ou tarde, deveria ser resolvido.

Ele era simplesmente um aprendiz de coveiro, o filho do coveiro local, alguém que vivia em meio a pás e seus repetidos barulhos, trabalhando todos os dias, convivendo com o pútrido cheiro dos mortos, que, independentemente de quem a pessoa havia sido, era sempre insuportável. Era alguém que, apesar da familiarização com os mortos, ainda sentia seus batimentos cardíacos acelerarem na hora de ajudar seu pai a enterrar alguém.

Algumas vezes, depois de certos enterros, ele passava uma noite acordado, assombrado pela cara do morto ao ser enterrado e de alguma forma culpado pela falta de um sorriso na face do cadáver. Eram terríveis noites sem sono, nas quais ele constantemente rolava na cama até desistir de dormir e se levantava de sua rústica cama. Ele andava até o espelho, um pequeno pedaço de vidro já enferrujando preso a parede e se olhava, seus olhos encarando os de seu reflexo, respirava fundo e imaginava como ele morreria, como seria fácil para ele sorrir nesta hora, para que pudesse se aliviar da estranha culpa que pairava sobre ele, tentando suprir a falta de um sorriso no morto com o seu próprio, imaginando que o morto não quis sorrir, não lhe faltaram oportunidades para isso. Ele tentava amainar uma culpa que não era verdadeiramente sua, mas sim de outra pessoa, outro alguém desconhecido, inominável, alguém que não existia, pois não havia culpa a ser repartida ou recebida. Ele não conseguia idealizar essa falta de culpa, achava que alguém havia feito, havia um responsável, alguém manipulando diretamente o que quer que fosse, não Deus, mas um ser humano.

Se ninguém se apresentava, só podia ser ele, o filho do coveiro, o culpado; afinal, não era ele que passava noites insones por causa disso? A culpa era dele, só podia ser. Era uma paranóia crescente com a falta de sorrisos e as noites insones eram cada vez mais frequentes, tão frequentes que ele desenvolvera um gosto pela leitura noturna, e, após a costumeira e sem sucesso olhada no espelho ele saia pela porta de madeira de seu quarto e ia andando silenciosamente até a porta da frente, pela qual saia de sua pequena casa tentando não acordar seu pai, coincidentemente também ocasionalmente insone, a cochilar levemente no quarto onde antes também dormia sua mãe.

Ele levava um livro qualquer e sentava na cadeira de balanço já velha de seu pai, na varanda de um casebre não feito para aquecer durante o inverno daquela cidade, acendia o lampião para que pudesse ler melhor e lia, mergulhando nas palavras, vivenciando a história do ponto de vista de um narrador imparcial, ocasionalmente saindo deste transe para admirar a Lua estampada no céu estrelado. Ele ficava lendo até o sol nascer, e uma vez foi surpreendido por seu pai, que havia visto uma luz vir de sua varanda.

"Você também?" ele perguntara com sua voz grossa, encarando o filho de cabelo castanho rebelde, um sorriso constrangido, nariz fino e olhos azuis.

"É um mal de família, eu acho.”, ele continuou. "Se você acha que vai melhorar, desista filho. Só piora com a idade." ele disse, olhando para o vazio.

"Foi assim na sua infância também?" o garoto perguntou, curioso.

"Foi assim desde que eu me conheço por ser humano, pelas mais diversas razões, raramente falta de sono. Não tem cura, não tem tratamento, nada. É bom se acostumar com isso,você não vai dormir nessas noites." seu pai respondeu, as olheiras acentuadas, as pálpebras pesadas, o rosto de um homem torturado por um mal noturno incurável.

"Vemos-nos de manhã, pai." o garoto respondeu, com leveza na mente, sem deixar transparecer o entendimento da verdadeira preocupação de seu pai naquela noite.

Seu pai concordou com a cabeça e reentrou na casa silenciosamente.

Estava claro para o garoto a causa da insônia de seu pai naquela noite: sua mãe, que há muito os havia deixado, dela somente restando uma constante saudade, memórias cada vez mais distantes para o garoto e noites insones para o pai.

Já fazia algum tempo que a essência de sua ruiva presença se desprendera do assoalho, das paredes e do teto e o vazio deixado por ela já fora remendado e virara algo usual.

Nunca ficou claro o real motivo de ela tê-los abandonado tão subitamente, afinal a convivência conjugal foi harmoniosa e feliz no início, até um dia que alguma mágica acabou e ela passou a ver a profissão do marido como macabra e desprezível e o filho como um seguidor do pai, destinado a ser como ele. Ela começou a ver infelicidade em cada movimento do marido, como uma terrível maldição; um círculo vicioso se iniciou, com o marido ficando cada vez mais infeliz com a inexistente infelicidade que a mulher via nele.

E ela foi embora, sumiu, como esperado; de início não houve surpresa, e a vida prosseguiu como se sua presença houvesse sido um prolongado sonho do qual eles haviam acordado. O garoto não precisou de aviso nenhum sobre o que havia acontecido; ficara suficientemente claro pelos movimentos de todos ao seu redor.

Foi assim por alguns dias até que inexplicavelmente a saudade os atingiu com força, a cada dia pior e assim foi, por dias, meses, anos, o garoto já havia perdido a conta de dias, dias de sofrimento, dias de calma, só sabia que haviam se passado oito invernos desde que sua mãe os deixara.

Do garoto de seis anos silencioso só restava a mesma recorrente saudade da mãe e um estranho ódio naquele adolescente de 14 anos.

Eles aprenderam a viver sem ela, mas não sem os seus restos emocionais, não sem a saudade incurável e o misterioso ódio que circundava as lembranças relacionadas a ela.

Eles não a queriam de volta, o garoto achava; ela só servia como culpada para seus problemas atuais, como figura mítica, que jamais haveria de voltar a entrar em suas vidas.

Uma noite insone depois do enterro de um cadáver sorridente o deixou intrigado.

Ao raiar do sol bateram na porta; um enterro matutino. Foi chamar seu pai para realizarem os serviços; seu coração paralisou no momento que ele o viu; e eram dois os cadáveres.


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