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Lucas Morgan
ID: 548871
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  • 20/12/2014


  • Meu ideal seria escrever uma história tão
    engraçada que aquela moça que está doente
    naquela casa cinzenta quando lesse minha
    história no jornal risse, risse tanto que
    chegasse a chorar e dissesse “Ai meu Deus,
    que história mais engraçada!”. E então a
    contasse para a cozinheira e telefonasse para
    duas ou três amigas para contar a história; e
    todos a quem ela contasse rissem muito e
    ficassem alegremente espantados de vê-la tão
    alegre. Ah, que minha história fosse como um
    raio de sol, irresistivelmente louro, quente,
    vivo em sua vida de moça reclusa, enlutada,
    doente. Que ela mesma ficasse admirada
    ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para
    si própria “Mas essa história é mesmo muito
    engraçada!”. Que um casal que estivesse em
    casa mal-humorado, o marido bastante
    aborrecido com a mulher, a mulher bastante
    irritada com o marido, que esse casal também
    fosse atingido pela minha história. O marido a
    leria e começaria a rir, o que aumentaria a
    irritação da mulher. Mas depois que esta,
    apesar de sua má vontade, tomasse
    conhecimento da história, ela também risse
    muito, e ficassem os dois rindo sem poder
    olhar um para o outro sem rir mais; e que um,
    ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do
    alegre tempo de namoro, e reencontrassem os
    dois a alegria perdida de estarem juntos. Que
    nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas
    de espera a minha história chegasse e de tão
    fascinante de graça, tão irresistível, tão
    colorida e tão pura que todos limpassem seu
    coração com lágrimas de alegria; que o
    comissário do distrito, depois de ler minha
    história, mandasse soltar aqueles bêbados e
    também aqueles pobres mulheres colhidas na
    calçada e lhes dissesse “por favor, se
    comportem, que diabo! Eu não gosto de
    prender ninguém!”. E que assim todos
    tratassem melhor seus empregados, seus
    dependentes e seus semelhantes em alegre e
    espontânea homenagem à minha história. E
    que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo
    e fosse contada de mil maneiras, e fosse
    atribuída a um persa, na Nigéria, a um
    australiano, em Dublin, a um japonês, em
    Chicago - mas que em todas as línguas ela
    guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu
    encanto surpreendente; e que no fundo de
    uma aldeia da China, um chinês muito pobre,
    muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca
    ouvi uma história assim tão engraçada e tão
    boa em toda a minha vida; valeu a pena ter
    vivido até hoje para ouvi-la; essa história não
    pode ter sido inventada por nenhum homem,
    foi com certeza algum anjo tagarela que a
    contou aos ouvidos de um santo que dormia,
    e que ele pensou que já estivesse morto; sim,
    deve ser uma história do céu que se filtrou por
    acaso até nosso conhecimento; é divina”. E
    quando todos me perguntassem “Mas de onde
    é que você tirou essa história?” eu
    responderia que ela não é minha, que eu a
    ouvi por acaso na rua, de um desconhecido
    que a contava a outro desconhecido, e que
    por sinal começara a contar assim: “Ontem
    ouvi um sujeito contar uma história…”. E eu
    esconderia completamente a humilde verdade:
    que eu inventei toda a minha história em um
    só segundo, quando pensei na tristeza
    daquela moça que está doente, que sempre
    está doente e sempre está de luto e sozinha
    naquela pequena casa cinzenta de meu
    bairro. (Rubem Braga)