A Utopia do Perigo. escrita por Raissa Muniz


Capítulo 15
A visita da autoridade




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Aos poucos fui sentindo que minha vida estava voltando a ser como antes: lenta, inconstante, sem boas surpresas. As únicas saídas que eu ainda fazia eram para o consultório médico. A polícia da cidade realmente respeitou o pedido da assistência social e me deixou em paz enquanto os procedimentos clínicos continuassem.

Leka continuava fazendo o papel de boa amiga, me fazendo companhia sempre que possível. Era ela também que me contava como estavam as coisas na escola.

Segundo ela, os comentários sobre a “nerd pirada” eram os piores possíveis. Nem a doença pareceu acalmar as línguas fofoqueiras. Senti certo desconforto ao receber essa notícia — não que esperasse que a doença me trouxesse toda a calma que sempre almejei. Na verdade aquela complicação só me trouxe a certeza de que as coisas, algum dia, de alguma forma, deveriam acontecer. E deveriam acontecer com alguém. Nesse caso, era comigo.

A assistência social também deixou que eu fizesse as provas em casa, para não perder o ano letivo. Leka me ajudava a estudar os conteúdos e vez ou outra tia Ellana recebia um telefonema da direção da escola. Poderia parecer preocupação ou solidariedade, mas não era. Eles tinham um nome à zelar.

O tempo naquela pequena cidade ficava cada vez mais nublado. O vento movimentava a copa das árvores no meu quintal. Meus olhos acompanhavam aquele espetáculo natural com melancolia. “Se ao menos me movimentasse também...”, eu pensava quase que diariamente.

Confesso que nunca me imaginei da maneira que estava naquele período. Algo precisava mudar. E rapidamente.

— Ennie, querida, venha aqui na sala. — Chamou tia Ellana da cozinha. Provavelmente alguma visita queria prestar toda sua solidariedade.

— Não posso ir sozinha. — Lembrei à tia Ellana. Frequentemente ela usava palavras como “andar” e “correr” comigo, sem perceber que eu não podia fazer nenhuma dessas coisas. Mas quando ela percebia, ficava com a respiração arfante, como uma culpada. Era como chamar um cego pra ver. Foi assim que ela ficou naquele momento.

— Ah... É verdade, querida... Eu ia esquecendo, deve ser a velhice... — Desculpou-se, atrapalhada. — Ou a insensibilidade dos anos, quem sabe... — Continuou, inquieta.

— Tia Ellana, você não precisa fazer isso. — Falei contrariada.

— Certo... — Respondeu ela com um fio de voz, perdendo-se em seus próprios pensamentos.

Fomos até a sala com dificuldade. Ela não tinha mais a força e a vitalidade de uma jovem, o que dificultava essas pequenas tarefas que tanto me ajudavam. Quando Leka estava ali, era ela que cuidava dessas situações que envolviam força ou peso. Mas Leka também tinha que cuidar dos próprios problemas.

— Boa tarde. — Falei ao chegar na sala. Ainda nem tinha percebido quem era a visita, e de certa forma fiquei muito surpreendida por cumprimentar alguém sem ser solicitada.

— Boa tarde. — Falou um homem conhecido.

Estreitei os olhos, assustada. Mesmo sem uniforme, não pude deixar de reconhecê-lo. Era o delegado da cidade.

Fiquei em silêncio, esperando que ele se manifestasse. Não esperava aquela visita — estava sentindo a falsa segurança de ser protegida pelo juizado de menores.

— Não precisa se preocupar, não vim por motivos de trabalho. — “Por motivos de trabalho” eu traduzi como “por motivos de falta do que fazer e vontade de encher o saco quando não é convidado”. Dei um risinho imperceptível. Ele baixou os olhos, continuando. — Tudo bem com você?

Confesso que primeiramente me assustei com tal pergunta. O que ele queria ali, me conquistar com belas palavras e depois me levar presa pra outro interrogatório?

— Tudo ok. — Respondi indiferente. Ele teria que manifestar o motivo da visita logo.

Ele balançou o corpo sob os pés, visivelmente sem assunto para continuar aquela conversa.

— É... Estive preocupado com a sua saúde. A polícia local gostaria de prestar sua solidariedade.

Encarei o homem com a sobrancelha arqueada. Que bela piada pra um dia tão melancólico como aquele.

— Acho que agora que a vi já posso me retirar. — Continuou.

“Claro que pode” respondi mentalmente. Mas não tive coragem de responder isso verbalmente também. Eu tentaria ser legal.

— Tudo bem, obrigada pela visita. — Foi o que respondi. Imediatamente me perguntei com quem estava aprendendo aquelas frases de boa anfitriã. Certamente aquela doença estava me transformando em algo que eu nunca imaginara ser antes.

— Então ok. — Falou ele. — A gente se vê.

“A gente se vê?” Que tipo de servidor público visita uma adolescente “transtornada” que outrora havia sido interrogada, fica com aquela expressão de não saber o que fazer e depois solta um “A gente se vê?”. Era isso que dava viver naquela cidade. Aos poucos você ficava biruta que nem os próprios adultos.


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