A primeira coisa que Yoh fez ao chegar na pousada em que sua família estava hospedada, numa cidade próxima à aldeia patche, foi se trancar num quarto vazio, sem trocar uma sequer palavra com seus amigos e sua família. A atitude do garoto fez com que sua família, que o aguardava, e seus amigos, que o acompanhavam, ficassem com o coração na mão. Uma pessoa, em especial, sentiu as dores pela atitude do menino.

Yoh fechou todas as janelas do quarto, não deixando sequer um feixe de luz adentrá-lo. Sentou encostado numa parede e se encolheu. Precisava se recompor daquele choque que teimava em transtornar a sua mente. Tudo estava escuro, seu coração estava mergulhado nas trevas e o garoto tinha criado uma barreira em volta de si para não permitir a entrada da luz. Não queria luz, tudo que ele queria naquele momento era adentrar cada vez mais na escuridão, de maneira a desaparecer, de maneira a morrer...

Morrer... Não podia morrer. Não antes de destruir o homem que lhe roubara a sua felicidade. Não antes de destruir a mulher que lhe abandonara como se ele não lhe valesse nada, como se seus sentimentos não lhe importassem o mínimo. Anna tinha destruído seus sonhos. Seu maior sonho era ter uma vida tranqüila, uma vida tranqüila onde todas as pessoas pudessem ter paz e felicidade; e a sua felicidade era viver ao lado de Anna, para sempre. Agora isso já não importava, nada mais importava para ele. Sua ex-noiva não tinha destruído apenas seus sonhos, ela tinha destruído todo o seu ser. Yoh não se reconhecia mais. Ele não vivia mais, tudo que tinha lhe restado era uma sombra do que fora um dia. Seu coração, mergulhado nas trevas, morria lentamente, lentamente, lentamente...

Não entendia como Anna fora capaz de deixá-lo por causa de seu irmão. Ele confiava plenamente na itako, e essa traição era a única coisa que ele não esperava dela. Yoh pensava que conhecia bem sua prometida, pensava que entendia os seus sentimentos. Mas, estava enganado. Não conhecia a Anna. Não entendia os seus sentimentos, se é que houvesse algum que não fosse ambição no coração da garota. Agora, ele achava que o título de Rainha de Gelo caía bem à itako. Ela possuía camadas de gelo, tanto por dentro quanto por fora, que não se derreteriam por nada nem por ninguém. A Rainha de Gelo reinaria ao lado do Lorde da Destruição. "Sim, eles se merecem...", concluiu o shaman.

Yoh começou a recordar todos os momentos que tinha passado com Anna. Lembrou-se de como se conheceram. Lembrou-se de que sempre achara a Anna a garota mais linda e misteriosa que já conhecera. Sempre achara que ela fosse que nem a Lua – bela, fria, misteriosa, inatingível – mas, agora o garoto associava a Anna com a Lua Negra – misteriosa e cruel. Lembrou-se dos treinamentos diabólicos da garota. Embora ele odiasse a rigidez de seus treinamentos, ele sabia que se não fosse por ela não teria conseguido avançar muito no Shaman Fight. Ela era a sua força. Agora teria que aprender a viver sem a presença angelical da itako.

Um momento em especial lhe fez derramar algumas lágrimas...

Após uma luta difícil com Tao Ren, Yoh tinha conseguido passar para a 2ª fase do Shaman Fight. O torneio teria continuação na América do Norte. A partir dali a vida do shaman iria mudar radicalmente. Ele teria que deixar pra trás muitas coisas das quais já estava acostumado. Ficaria um bom tempo sem ver algumas pessoas que lhe eram importantes. Ficar longe de Anna lhe pesava o coração. O shaman já tinha se acostumado a viver com a itako. Ele se sentia feliz ao lado dela. O dia da despedida era a lembrança que fez Yoh chorar.

***** Flashback *****

Faltava apenas um dia para a partida rumo a América do Norte. Yoh aproveitara o dia para ficar junto de seu amigo Manta Oyamada, já que depois daquele dia não o veria mais tão cedo. Aproveitou também para se despedir das coisas do dia-a-dia. Chegou na pousada tarde da noite e foi direto para seu quarto dormir. Tamao já estava dormindo, e ele sabia que Anna o esperava, mas não teve coragem de ir ao encontro dela. Não sabia o que lhe falar, nem como agir diante dessa despedida, então resolveu ir dormir sem vê-la.

Yoh já estava deitado em seu quarto, de olhos fechados, mas não dormia. Estava pensando. Foi quando Anna apareceu na porta de seu quarto carregando dois pacotes. Ela entrou e ficou por alguns instantes apenas observando-o, calada. Ele sabia que a itako estava um tanto quanto aborrecida com ele e decidiu não proferir nenhuma palavra e continuar de olhos fechados.

- ... Que audácia. Disse Anna. – Ficou o dia todo fora e, quando finalmente volta, dorme sem nem me dizer um "oi"?!

Yoh continuava quieto, sem mover um músculo, apenas ouvindo as palavras de Anna.

- ... Você age exatamente como sempre. Mas amanhã começam as provas oficiais. Toma! O seu avô mandou algo para você. E eu consertei a sua roupa de combate. Disse a itako jogando dois pacotes em cima de Yoh. – Não se esqueça de levá-los amanhã. Boa noite!

Anna saiu do quarto de Yoh. Ia para seu quarto dormir, mas algo fez com que ela parasse na porta do quarto de Yoh, do lado de fora.

- ... Yoh... Você está muito mais forte que antes. Não quis confessar para a Tamao à tarde, mas agora você tem uma força interior que não se abala por qualquer coisa. Na verdade... E hesitou um pouco antes de continuar... – Quem está sentimental sou eu. Amanhã você não estará mais aqui no "En".

Anna olhou para dentro do quarto de Yoh, e ficou observando aquele garoto que tanto amava por alguns segundos, antes de lhe fazer uma pergunta:

- Esta noite... Posso dormir com você?

Yoh abriu os olhos, surpreso. Não esperava aquela reação da menina. Na verdade, aquela reação fez com que os batimentos cardíacos de seu coração acelerassem. A idéia de dormir junto com a itako fez com que o shaman sorrisse por dentro. Ele estava tomado de uma súbita felicidade, por isso demorou um pouco para responder.

- Claro. Foi a sua resposta. Simples e objetiva.

Anna deitou-se lentamente do lado de Yoh. Virou-se de lado, de modo a poder observá-lo. E os dois ficaram por um tempo apenas se olhando, olhos nos olhos, sem trocar uma palavra. Mas, as palavras eram desnecessárias naquele momento. Era um momento mágico, um momento único, o qual os dois guardariam para sempre em seus corações.

Yoh nunca tinha ficado tão próximo da sua noiva que nem naquele dia. Estava feliz, feliz por tê-la tão próxima a ele. Era uma felicidade que preenchia todo o seu coração, toda a sua alma, todo o seu ser. E Yoh não entendia o porquê daquele sentimento. Não precisava entender. Sentia-se bem ao lado dela, e isso bastava para ele. Yoh queria aproveitar cada segundo daquele momento. Não queria dormir, pois, se dormisse, não teria aproveitado ao máximo aquela proximidade que tanto lhe fazia bem. Queria ficar assim para sempre, perdido no encontro daquele olhar...

***** Fim do Flashback *****

Lágrimas rolavam por seu rosto. As lágrimas mais tristes e profundas que ele já chorara. Estava tomado por uma profunda tristeza que nunca pensou que pudesse sentir. Aquele sentimento que nutria por Anna há tanto tempo era amor. Um amor puro. Um amor inocente. Um amor verdadeiro. Um amor de conto de fadas. Um amor que nunca mais poderia ser amado.

"De que adiantou perceber o que sinto por você se agora esse sentimento só me machuca?" Perguntava o shaman para si mesmo, em pensamento.

Yoh enxugou as suas lágrimas e se levantou. Tinha tomado uma decisão. Iria até o fim. Nada iria impedi-lo. Ninguém iria fazer com que ele mudasse de idéia. Saiu do quarto com o olhar mais decidido que já tivera em sua vida. Por trás desse olhar, escondia uma imensa tristeza...

- Yoh!!! Disse Manta aliviado ao ver o amigo.

- Eu vou treinar. Foi a única resposta de Yoh. Fria, direta e seca. E era essa a decisão do menino. Ele faria de tudo para derrotar Hao. Iria impedir a cerimônia do Rei Shaman de ser realizada.

E a única coisa que a família de Yoh e seus amigos puderam fazer, foi observar o garoto sair da pousada em busca de treinamento. Eles não reconheciam aquele Yoh. Ele estava mudado. Tudo que viam nos olhos de Yoh era um imenso vazio. Ele estava envolto por uma profunda escuridão. Todos temiam que ele ficasse perdido para sempre nas trevas daquele olhar.