Lina Inverse e a Pedra do Feiticeiro escrita por niele mzk


Capítulo 5
CapII, pI: O Beco Vertical




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/900/chapter/5

CAPITULO II
MUDANÇA

  Parte I – O Beco Vertical

  - Onde nós vamos? - Lina perguntou ao seu silencioso companheiro enquanto caminhavam rapidamente. Já estava ficando tarde e o comercio havia começado a fechar, diminuindo a freqüência de pessoas na rua. A garota não sabia o quanto haviam andado ou aonde queriam chegar, mas depois de pegar um ônibus, dois táxis e um passeio de trem ela concluiu que não deveria ser perto. Estavam agora em um dos bairros mais afastados da cidade, encostados à sombra de algumas montanhas cobertas de arvores. Lina imaginava qual seria o próximo evento fantástico a acontecer naquela noite. Depois de ver Margulus ser explodido por um fogo que não queima e ter que se segurar em Zelgadis quando ele realizou uma magia para voar (evitando assim o uso de barcos para sair daquele casebre miserável) Lina estava morrendo de curiosidade para ver mais magia e descobrir tudo aquilo que lhe foi ocultado durante tanto tempo.
  - Você olhou bem para a sua carta? - veio a resposta de Zelgadis, sem parar de andar.
  - Bem, sim, já li varias vezes, mas não entendo o que isso tem a ver com-
  - Se você olhar novamente e com mais atenção – Zelgadis interrompeu – verá que tem uma lista do material necessário para o primeiro ano junto da mensagem, num outro papel.
  Lina buscou no bolso da calça pelo envelope e tirou de dentro uma outra folha amarela, agora bem amassada. Ela passou os olhos pelo papel e falou a Zelgadis.
  - Tudo isso? É pra mim ou para a escola toda?
  Ela assistiu a gota inevitável descer pela cabeça de Zelgadis.
  - ...é o necessário – respondeu ele.
  - Mas onde vamos encontrar essas coisas? Ingredientes de poções, livros de feitiços, uniformes... Nunca vi artigos de magia em liquidação no shopping mais próximo.
  - É por isso que estamos indo a um lugar especial – Zelgadis fez uma curva numa rua mais deserta.
  - Especial? - Lina levantou a sobrancelha para o quimera, que não disse mais nada. Parecia estar procurando por alguma coisa. Foi quando Lina reparou que eles não estavam mais dentro da cidade. Não exatamente. Tão distraída com a conversa ela não viu quando Zelgadis tomou uma curva, seguindo uma estradinha de terra que levava para longe das casas. Eles estavam numa área quase rural na altura do campeonato. A garota reparou pela primeira vez que a iluminação não vinha de postes de luz, de tochas, lampiões, lanternas ou qualquer outra coisa que alguém considerasse natural.
  - Ah, aqui estamos – Zelgadis disse repentinamente, satisfeito.
  Lina imaginou onde “aqui” seria. Ela olhou ao redor mas pouco conseguia ver na escuridão fora do circulo de luz em volta dela e de Zelgadis. Aos poucos, forçando bastante a vista para enxergar no meio das arvores, Lina viu uma casinha encostada na base de uma montanha próxima. As colinas que circulavam a cidade pareciam bem maiores daquele ponto.
  - Ali? - Lina olhou incrédula para Zelgadis, que retomou o passo, desta vez em direção à casinha, sem falar nada – Mas que lugar de se fazer uma loja, não acha? Aqui no fim do mundo... não sei como conseguem permanecer abertos...
  - Mas aqui não é o fim do mundo! Pelo contrario, é um centro comercial muito importante.
  Lina ia perguntar como um único barracão conseguia ser um importante centro comercial, mas não teve tempo porque foi nessa hora que eles entraram, e Lina decidiu que qualquer pergunta ou comentário poderia esperar. O cheiro de comida quentinha invadiu as narinas da jovem feiticeira, quase a fazendo chorar de emoção. Era a primeira vez em dias que Lina sentia um cheiro como aquele e toda sua fome dos dias miseráveis anteriores voltou com potencia triplicada. Afinal, aquilo não era uma loja, mas sim um restaurante!
  - COMIDA!!! - o berro fez todos os clientes saltarem em suas cadeiras e olharem para Lina. Quer dizer, para a nuvem de poeira no formato de Lina deixada no local, pois no segundo anterior ela já havia se transportado em velocidade inimaginável para uma cadeira, e batia os talheres na mesa esperando pelo garçom para poder pedir tudo o que tinha no cardápio.
  - Lina... - um Zelgadis bastante embaraçado começou a dizer, assim que a alcançou – Acho que agora não é a melhor hora para isso, nem local...
  - COMIDA! - Lina gritou de novo, dessa vez num tom irritado que implicava que ela não sairia dali até que estufasse seu estomago com todo o estoque do lugar. Zelgadis suspirou e se sentou, para a surpresa da garota. Ela tinha esperado mais reclamações e insistência da parte dele mas não foi o que aconteceu. Para sorte dessa Lina, Zelgadis já tinha se acostumado com a Lina anterior, e por isso sabia que era inútil discutir numa situação como aquelas. Ele apenas esperou e preparou sua carteira para o golpe violento que viria a seguir.
  - Boa noite – a garçonete sorridente veio com uma bandeja - bem vindos ao... Zelgadis? Olá! Tudo bom? - o sorriso dela aumentou, mas logo estremeceu diante da visão de uma Lina faminta e desesperada – Quem é sua amiga?
  - Noite, Sil – Zelgadis respondeu e não teve tempo de dizer mais nada porque naquele instante, Lina quase subiu na mesa na urgência de fazer a garçonete escutar.
  - Oie tia!! Eu vou querer, hum, tudo daqui... – ela apontou para o menu, bem no topo - ...até aqui! - o dedo dela escorregou até o final do cardápio e sorriu, parecendo não notar a expressão abestalhada da garçonete – Em porções duplas, por favor!
  - T-Tudo bem – a mulher deu um passo para trás e se virou meio trêmula para Zelgadis – Também vai pedir algo?
  - Um café – ele disse e a mulher saiu, parecendo muito aliviada.
  O que se seguiu foi uma demonstração de selvageria humana. Zelgadis tomou seu café tentando distrair sua atenção de Lina, que devorava sua refeição como se nunca tivesse comido em toda sua vida e tentava compensar os dias perdidos numa única noite. Nesse ponto, todas as pessoas do local olhavam espantadas para Lina, que as ignorava. Ela não estava dando a mínima para etiqueta ou o que os outros poderiam pensar. A garota pensou por um momento como um lugarzinho no meio do nada como aquele poderia estar tão cheio à uma hora daquelas, mas esse pensamento durou apenas o tempo do intervalo entre uma colherada e outra, depois, Lina voltou a se concentrar em sua refeição.
  Logo, uma pilha mal equilibrada de pratos e travessas sujas se erguia na mesa enquanto Lina encostava-se na cadeira.
  - Ahh, eu precisava disso! - ela massageou sua barriga, sorrindo feliz – Nunca comi tão bem!
  - Fico feliz que tenha aproveitado – disse Zelgadis, sem parecer demonstrar felicidade alguma – Agora, se pudermos nos concentrar no que viemos fazer...
  - Zelgadis? - a garçonete tinha voltado, parecendo apreensiva. A atenção de Zelgadis foi desviada para a mulher. Ela trocava de pé nervosamente, as mãos nas costas, olhando para o quimera, porem Lina reparou que volta e meia à mulher lançava olhares de esguelha para a garota. Lina lembrou de ter visto (por alguns breves segundos) enquanto comia, aquela mesma garçonete conversar agitada em voz baixa com um outro homem, que parecia ser o proprietário. Ela conversara olhando disfarçadamente para Lina. Ao se lembrar disso, a feiticeira reparou que agora muitos do restaurante olhavam para ela e Zelgadis, ansiosos.
  - Diga – Zelgadis encorajou a mulher a falar. Ela falou, num tom muito baixo, que Lina se esforçou para ouvir.
  - Bem, será que... por acaso... quer dizer... essa menina que você está acompanhando...
  - É ela sim – Zelgadis disse em tom normal, parecendo ligeiramente irritado. Já tinha previsto que isso iria acontecer hora ou outra. O rosto da garçonete pareceu se iluminar, enquanto a dos cozinheiros que esperavam atrás dela se contorceram de desespero. Lina ergueu uma sobrancelha quando a mulher se dirigiu a ela.
  - Então, você que é... Lina Inverse!
  - ... sim, eu mesma – Lina respondeu sem saber exatamente o que fazer – Porque?
  - Ah, eu sabia! - a garçonete voltou a ficar sorridente e avançou para apertar a mão de Lina – Tinha que ser você, com um apetite desses! Eu sabia! Ah, muito bem-vinda Srta.Inverse, seja muito bem-vinda!
  - Ah... obrigada... - Lina tentou se livrar do aperto incrivelmente forte da mulher. Ela olhou para Zelgadis sem entender, mas o quimera voltou a se concentrar em sua caneca de café, sem se importar com o fato que não havia mais café dentro dela. No momento seguinte quase todas as pessoas do lugar (que estavam prestando muita atenção na conversa) foram até a mesa onde Lina e Zelgadis se sentavam para dar uma espiada na garota. Algumas delas pareciam emocionadas, ansiosas, enquanto outras tinham uma expressão amedrontada.
  - Não acredito que é Lina Inverse!
  - Olá, Srta. Inverse, é um prazer!
  - Lina Inverse está aqui!
  - Rápido, fechem a cozinha!
  - É verdade tudo o que falam sobre você?
  - É ela! Lina Inverse em pessoa!
  - Lina Inverse não tinha morrido?
  - Muito bem, já chega – Zelgadis foi ao socorro da garota e tratou de afastar as pessoas – Lina, acho que já está mais que na hora de irmos.
  - Certo – Lina tratou de se levantar rapidinho e começou a ir a direção a porta, mas Zelgadis a puxou para o lado oposto da entrada. Eles passaram por uma porta aos fundos que dava a uma sala escura. Antes do quimera fechar a porta, Lina pode ver as pessoas do restaurante cochichando agitadas umas com as outras.
  - O que foi isso? - Lina se dirigiu a Zelgadis na escuridão, sua voz ecoando estranhamente. Não havia janelas, lâmpadas ou qualquer outra fonte de iluminação ali.
  - Eu esperava ter explicado isso para você quando nos conhecemos – a voz de Zelgadis ecoou de algum lugar à direita de Lina – Mas agora não é hora de falar sobre isso. Explicarei numa ocasião melhor, num lugar melhor.
  - E que lugar é esse afinal? Não vejo nada!
  Como resposta à reclamação de Lina, uma luz antinatural se acendeu nas mãos de Zelgadis e depois flutuou, iluminando os arredores. A garota observou atônita enquanto a luz mágica revelava um grande e largo túnel à sua frente. Aparentemente, os fundos do restaurante dava para dentro da montanha a qual estava encostado. Zelgadis seguiu em frente, para dentro do túnel. Conforme Lina o seguia ela viu barris encostados às paredes como se aquilo fosse uma grande adega.
  O túnel era bem curto, sendo que a dupla chegou no final dele um minuto depois. No fundo, haviam apenas prateleiras contendo garrafas empoeiradas, alguns barris e um pouco de entulho. Zelgadis parou em frente à única parede vazia e começou a passar a mão pela superfície.
  - Por que é tão alto?
  - Uh?
  - Esse lugar – Lina olhava para cima, onde havia apenas trevas, já que não se podia ver o teto – Não parece um túnel natural. Se construíram isso aqui, porque um teto tão alto?
  - ... Acho que estavam tentando compensar alguma coisa – Zelgadis murmurou, pensando seriamente nisso pela primeira vez. Lina não entendeu mas não teve tempo de perguntar nada pois foi naquela hora que Zelgadis encontrou o que procurava – Aqui! Agora, Lina, fique para trás – ele encostou a mão num baixo relevo da superfície de pedra e começou a murmurar baixinho.
  - Porqu- AH!! - a frase de Lina foi cortada quando a parede começou a se mexer. Ela pulou para trás e observou a parede pesada e sólida de pedra se abrir para dentro no ponto onde Zelgadis a tocara, como se fosse uma porta, erguendo poeira fazendo um efeito dramático quando alguma luz mais forte escapou de dentro. Lina ergueu a mão na frente do rosto para proteger os olhos desacostumados com a claridade repentina. Aos poucos a poeira foi baixando, fazendo a luz mais forte e permitindo enxergar o que havia dentro da parede de pedra. Lina esticou o pescoço para espiar o que estaria oculto dentro da montanha e viu...
  ... Outra porta.
  A feiticeira parou e olhou para o portão de madeira. Ao seu lado Zelgadis tossiu.
  - Não sei porque sempre tem que ter toda essa poeira! - ele abanou o ar a sua frente, ainda tossindo.
  - Um portão? - Lina olhou de soslaio para o quimera, que deu de ombros.
  - Medidas de segurança. Como se todas as medidas mágicas já não fossem o suficiente – ele soou irritado – Por isso que eu acho que Gnomos são paranóicos demais.
  - Como?? - o grito de Lina ecoou desconfortavelmente, fazendo Zelgadis levar as mãos às orelhas pontudas. Ela abaixou o tom – O que foi que você disse?
  - Disse que é medida de segurança – Zelgadis respondeu irritado.
  - Não, depois disso. Gnomos, você disse?
  - Ah, sim... Me esqueço que não sabe nada sobre nosso mundo – Zelgadis avançou e puxou uma corda que aparecia dependurada do lado do portão. Um gongo soou ao longe e as grandes portas de madeira começaram a se abrir lentamente – Os gnomos são uma raça que vive em paz com os humanos a muito tempo. Eles cederam sua morada para a construção deste lugar. Infelizmente, desde alguns... acidentes, ocorridos aqui, eles tem sido mais desconfiados que o normal.
  - ...gnomos existem...? - um tremor de pálpebra acompanhou a frase de Lina. Zelgadis não se deu o trabalho de responder, e ao invés disso falou:
 - Fique perto de mim agora. É fácil se perder nesse lugar – ele atravessou o portão. Lina o seguiu... e logo em seguida parou de andar.
 A vista era inacreditável. Era como se alguém tivesse escavado o miolo da montanha com uma colher gigante e deixando tudo oco por dentro, espaço suficiente para construir as milhares de casas subterrâneas que se estendiam à frente. Desde o nível do chão até o topo da montanha foram construídos diversos andares, que se erguiam em circular até parar num enorme buraco no topo da montanha, por onde se podia ver as estrelas. Eram lojas e mais lojas empilhadas umas sobre as outras. Como num gigantesco formigueiro, montes de pessoas circulavam de um lado ao outro, concentradas em seus próprios pensamentos.
 - ...Zalgedis... Que lugar é esse??? - uma Lina boquiaberta perguntou.
 - É Zelgadis. E esse é o Centro de Comercio, Interação e Integração Humana da Comunidade Mágica Contemporânea, ou, como os não-gnomos costumam chamar, Beco Vertical.
 - ...esse... isso... é DEMAIS! - Lina olhou maravilhada para tudo a sua volta. Seus pés formigavam na vontade de sair correndo no meio daquelas pessoas e ver tudo aquilo. Era uma loja mais exótica que a outra, vendendo coisas estranhas para pessoas mais estranhas ainda. Objetos e criaturas pertencentes apenas à imaginação ou historias infantis existiam ali, a apenas uma pequena distancia de sua mão. Aquilo ultrapassava seus sonhos mais alucinados. Era maravilhoso! Lina queria explorar aquele novo mundo de coisas extraordinárias. Bastava apenas...
 - Fique perto de mim – uma mão pesada e áspera segurou Lina pelo ombro. Inconscientemente, ela tinha avançado alguns passos na direção da loja mais próxima (“Empório de Runan: Cura Mágica e Poções Milagrosas para Todos os Gostos e Necessidades”) e deixado Zelgadis parado em frente aos portões.
 - Ah... hehe, desculpe – Lina sorriu constrangida – É que eu nunca vi nada como isso antes! Esse lugar é incrível! Onde nós vamos primeiro?
 - Veja na sua lista. Vamos passar em diversos lugares para conseguir comprar tudo – Zelgadis informou. A ultima fala de seu acompanhante fez uma antiga duvida voltar à cabeça de Lina.
 - Mas, Zel... - Lina decidiu encurtar. Ainda não estava acostumada com aquele nome estranhamente grande e incomum – Se eu gastar minhas economias com materiais eu não posso pagar a escola também. Nem o contrário. Como você espera pagar tudo?
 - Circunstâncias especiais – Zelgadis disse à ela, quando recomeçaram a andar – Sua situação tem sido acompanhada durante todo esse tempo pelo Prof. Philionel. A escola está disposta a aceita-la sem qualquer remuneração.
 - Sério? - o rosto de Lina se iluminou – Que legal! E você vai comprar todo o material para mim também?
 - Hum... sim.
 - Ótimo! Pode me conseguir umas roupas melhores então? Roupas de feiticeira? E um ipod? E quem sabe uma tv portátil, assim não perco meus programas favoritos quando Martina está em casa. E quem sabe também alguns-
 - Não vamos exagerar – Zelgadis interrompeu, ligeiramente irritado – Mas prometo que vamos comprar todo o necessário.
 - Tudo bem – Lina sorriu – Obrigada, Zelgadis.
 A expressão do quimera se abrandou e um traço de sorriso passou por seus lábios. Não esperava a garota ceder tão fácil, e o fato dela estar contente e grato por sua presença era confortável para Zelgadis. E ela até tinha pronunciado seu nome certo desta vez!
 A compra pelo Beco Vertical foi uma experiência única, tanto para Lina quanto para Zelgadis. Lina passou pouco tempo surpresa e parou de se espantar com tudo o que aparecia, mesmo quando o que aparecia era claramente motivo de espanto, até para a comunidade mágica. Ela era animada e ativa, fazendo perguntas sobre absolutamente tudo que era vendido, curiosa sobre qualquer coisa a sua volta. Logo ela caminhava pelas ruas do lugar como se estivesse passeando no shopping center de domingão à tarde, ao invés de dentro de uma construção subterrânea gnômica lotada de gente e objetos mágicos. As vezes, Lina era reconhecida por pessoas mais observadoras (e que se preocupavam em olhar para baixo), e cumprimentada. Mesmo que a garota não soubesse o porque (Zelgadis se recusara a contar, por mais que ela perguntasse) ela parou de se sentir desconfortável e substituiu o embaraço e timidez por algo semelhante ao orgulho, sentindo-se quase uma celebridade. De fato, a pequena feiticeira começou a se desapontar quando entrava em uma loja e não era reconhecida por seu vendedor.
 Zelgadis, por sua vez, teve que lidar com os problemas de cuidar de uma garota mais nova, empolgada e ignorante a regras e ordens. A experiência se comparava a levar uma criança de seis anos ao parque de diversões: Não havia maneira de manter Lina perto, parada ou calada. Mesmo assim, o quimera se contentava com o fato de Lina chamar atenção no lugar dele, e a feiticeira também não era estúpida ou imatura (não tanto, pelo menos) o suficiente para causar problemas e estragos. A maior dificuldade era não perde-la de vista no meio de tanta gente mais alta.
 Lina descobria milhares de coisas novas a cada momento. Uma dessas coisas foram os gnomos. A feiticeira se viu de frente com um pela primeira vez quando a dupla entrou numa loja de utensílios não-mágicos.
 - Até que eu imaginei bem – foi o comentário de Lina, ao avistar o dono da loja, um gnomo.
 O gnomo tinha aproximadamente um metro e vinte de altura, pele morena, uma barba curta e cabelos negros presos em várias tranças pequenas, lembrando os dreads que alguns trouxas usavam. Suas roupas eram comuns (para as pessoas dali; para Lina elas eram, no mínimo, esquisitas), cor de terra, areia e tons pastéis. A criatura de rosto escuro e inteligente conversava com um cliente, aparentemente reclamando sobre o preço oferecido, mas falando rápido demais para se reconhecer qualquer palavra.
 - Eu só pensei que eles fossem um pouco mais... coloridos – Lina murmurou para Zelgadis.
 - Eu sei a idéia que os trouxas fazem dos gnomos. Contam como se fossem criaturas místicas e saltitantes, vivendo nas matas e florestas, dentro de cogumelos, protegendo a natureza – Zelgadis falou em baixo tom, com certo sarcasmo na voz – Mas na verdade os gnomos se adequam melhor às cidades. Embora sejam um povo mágico, eles se sentem muito atraídos pela ciência e artes mecânicas. Por causa disso é que eles vivem fazendo invenções para lidar com problemas. Nossa comunidade não dá atenção às engenhocas gnômicas, mas é bastante útil para quem não pode usar mágica. Algumas até foram parar nas mãos dos trouxas. Ainda considero o guarda-chuva sua idéia mais brilhante. Porem, esse modo de viver e pensar reflete na personalidade dos gnomos. Eles sempre são sérios, racionais, introspectivos, metódicos, bastante envolvidos com seu trabalho, mau humorados e demoram a se aproximar dos outros.
 - Ah. Que nem você?
 Zelgadis tropeçou. Lina colocou na cara sua expressão mais inocente enquanto um Zelgadis bastante embaraçado se levantava e ia em direção ao balcão sem continuar a conversa, com a desculpa de “não perder seu tempo com diálogo desnecessário”.
 Haviam muitos gnomos no Beco Vertical. Zelgadis tinha dito mais cedo que aquele lugar era a moradia deles, então, nada mais natural que os gnomos estarem por todo o canto. O Beco Vertical era um lugar impressionante e surpreendente. As construções eram feitas dos mais variados materiais, desde madeira e alvenaria, até escavadas diretamente nas paredes da montanha, como tocas. Haviam vinte e quatro andares no total, e nenhuma escada (se houvessem, seria um destino infeliz ter que subir até o ultimo andar e uma morte triste na hora de descer). Ao invés disso, eram usados elevadores abertos rudimentares, movidos à magia ou a cordas (puxadas por gnomos). Como a primeira opção estava sempre lotada demais, a dupla optou pelo segundo método, e se arrependeu amargamente em seguida. Foram necessários mais gnomos que o normal para levantar Zelgadis, e depois que eles quase os derrubaram três vezes, o quimera saiu resmungando coisas desagradáveis, puxando Lina consigo para a fila dos elevadores mágicos.
 Porem, mais impressionante que o lugar em si eram as lojas. Ou melhor, aquilo que era vendido nelas. Lina se divertiu xeretando pela loja de acessórios mágicos, descobrindo milhares de utilidades desconhecidas até para o objeto mais banal. Passaram pela loja de vestimentas para comprar o uniforme básico e Zelgadis teve quase que arrastar Lina para fora da loja para impedi-la de comprar roupas autolaváveis ou que mudam de cor (“Apenas o necessário, lembra? Quem está pagando sou eu!”).
 Eles porem tiveram minutos muito desconfortáveis na loja de artigos para poções, que continha alguns dos itens mais suspeitos, viscosos, nojentos e malcheirosos que Lina já tivera a infelicidade de conhecer. Ela chegou a comparar aquela loja à vez que Martina tentou fazer pirão de peixe. Ou quando um Margs de oito anos comeu doces e iogurte vencido da validade há dois anos e decidiu aliviar seu mal estar no mingau de Lina. também houveram dificuldades na loja de artigos para invocação, que estava extremamente lotada de crianças enlouquecidas por um jogo de invocação de monstros a partir de cartas (que fazia sucesso tremendo, pelo o que Lina ouviu do desesperado vendedor). Na loja dedicada a maldições, novamente, Zelgadis teve que arrastar Lina para longe antes que conseguisse colocar as mãos no “Guia de Pestes e Maldições Para os Vingativos” ou no “Kit Básico de Tortura”, perguntando à garota o que diabos ela estava pensando em fazer com aquilo.
 Lina não conseguiu que Zelgadis comprasse uma bomba de chocolate explosiva ou um cantil de água eterna tampouco, mas ela conseguiu convence-lo a dar uma passada pela loja de lembrancinhas e depois sentar para tomar um sorvete (“Vindo direto de Saillune! Eles têm os sabores mais gostosos do país!”), onde Zelgadis se contentou com outra xícara de café. A garota ficou feliz em ver novamente as feições de seu companheiro; ele andava com o rosto oculto todo o tempo.
 - Porque você usa isso? - Lina perguntou, indicando com a mão a mascara (que fora removida) e o capuz (ainda em seu lugar).
 Zelgadis tomou um gole de café antes de responder.
 - Não gosto de multidões – o quimera respondeu – também não gosto de chamar a atenção, e isso acontece sempre por causa de minha aparência. Essas vestes impedem que os outros fiquem olhando para mim.
 A jovem feiticeira apenas observou Zelgadis por um momento, enquanto ele bebia. Lina era uma garota perspicaz e, mesmo com tanta gente estranha que vagava pelo Beco Vertical, ela não tinha visto ninguém com a aparência de Zelgadis.
 - Quimeras não são muito comuns, não é? - Lina falou.
 Zelgadis levantou os olhos para observa-la por um momento, depois respondeu, desviando o olhar novamente.
 - Não, não são.
 - O que é uma quimera, afinal? - Lina incentivou a continuar com a conversa – você não me explicou isso ainda.
 - É um ser inteligente feito com magia e partes de outras criaturas – veio a resposta de Zelgadis – Os magos costumavam cria-las para diversão própria ou para experimentos, até que começaram a acontecer acidentes. Eu porem não fui criado, e sim transformado em quimera.
 Lina absorvia a informação como uma esponja, ao mesmo tempo tentando desvendar mais alguma coisa na voz de seu companheiro, alem da disfarçada nota de descontentamento.
 - E como isso aconteceu? - ela perguntou.
 Zelgadis colocou uma máscara de absolutamente nenhuma expressão.
 - Hoje em dia, criar quimeras é proibido por lei – ele continuou, ignorando a pergunta – Mesmo que a Quimera Verdadeira e a Manticora se procriem em florestas e bosques como uma criatura natural, sua domesticação é severamente punida pelos agentes do Ministério da Magia.
 - Existe um Ministério da Magia?? - Lina perguntou, surpresa, esquecendo as quimeras por enquanto.
 - Sim. Mas não se anime muito. Os políticos da comunidade mágica não são tão diferentes dos políticos trouxas.
 - Oh... Que pena.
 - ... – Zelgadis terminou o seu café e se levantou da mesa – Venha. Vamos terminar essas compras ainda hoje. Estou começando a concordar com você: essa lista parece que é para a escola inteira – ele resmungou, arrancando um breve riso de Lina, que se pôs a andar ao seu lado.
 - O que mais falta? - Zelgadis perguntou depois de uma pausa, enquanto colocava sua máscara.
 - Humm... - Lina removeu a lista (bastante amassada) do bolso e a examinou – Livros “Vinhas da Natureza: Shamanismo Para Iniciantes” e “A Magia Negra, Nível Básico”. Eram aqueles que acabaram na outra livraria – ela se apressou em acrescentar, depois de ver os olhos do quimera se arregalarem.
 - ....Certo. Tem outra livraria no vigésimo terceiro andar – Zelgadis suspirou - Vamos pegar os elevadores de novo...
 Depois de uma corrida desesperada para conseguir pegar os elevadores (mágicos, sem cordas desta vez) e de uma breve discussão do porque não se podia subir usando magias de vôo (“fala sério, esses gnomos tem regras demais”), a dupla chegou no penúltimo andar, apenas para encontra a loja de livros lotada. Mesmo assim, com certa luta e muita procura, onde vários levaram algumas cotoveladas de Lina, a feiticeira e o quimera saíram de lá com os últimos itens de sua lista adquiridos.
 - Magia negra? Isso se aprende em Hazeyard? - Lina perguntou, examinando o livro de capa negra que tinham acabado de comprar.
 - Não é o que você está pensando – a resposta de Zelgadis veio de trás, enquanto ele fazia o possível para carregar todos os pacotes da maneira mais segura – Magia negra são as magias ofensivas. São ensinadas em Hazeyard como forma de defesa, e as mais destrutivas também são estudadas em teoria, e na pratica nos cursos avançados.
 - Uau! - Lina exclamou, e abriu o livro que segurava numa página qualquer e começou a ler - “De todos os feitiços da magia negra, um dos mais respeitados é a Garra das Trevas, cujo poder de desintegrar matéria é temido por qualquer adversário. As esferas de energia disparadas por esse feitiço, alem de destruírem facilmente qualquer criatura ou objeto das redondezas, também podem ser úteis para outras tarefas, ditas a seguir...”
 Mas para mais o quê a Garra das Trevas poderia ser útil ela nunca chegou a saber, porque no momento seguinte Lina sentiu seu corpo bater contra um outro alguém que vinha na direção oposta.
 A pequena feiticeira caiu sentada no chão, o livro voando de suas mãos, enquanto o desconhecido com que se chocara cambaleou um pouco mas conseguiu se manter de pé. Lina fumegou e ergueu a cabeça para o pobre infeliz, que quase caiu de vez com o grito que a garota soltou.
 - BAKA!!! Onde já se viu trombar nas pessoas assim? Porque não olha por onde anda!! - uma Lina furiosa berrou na voz mais alta que conseguiu.
 - Perdoe-me. Juro que o faria, se pudesse – respondeu o outro, com uma voz suave.
 A resposta afiada de Lina morreu em sua garganta quando ela parou para olhar o sujeito direito pela primeira vez. O homem tinha os dois olhos fechados, carregava um comprido bastão e seus movimentos eram vagos. A garota sentiu seu rosto arder quente de vergonha. O homem era cego.
 - Prof. Rezo?
 Zelgadis (que ainda se atrapalhava com os pacotes) tinha alcançado Lina a alguns segundos atrás e sua voz soou surpresa quando ele falou. O cego virou vagamente a cabeça na direção da voz do quimera.
 - Zelgadis Greywords? Mas que inesperado encontra-lo em um lugar como este – o homem falou, e Zelgadis fechou a cara. Lina olhou de um para outro e se levantou, observando o homem. Era alto, pálido, com cabelos escuros e vestia um longo robe vermelho.
 - Lina, esse é o Prof. Rezo – Zelgadis se apressou em fazer as apresentações – Ele será seu professor em Hazeyard.
 - Lina? Seria Lina Inverse?
 - Sim – Lina confirmou, a voz um tanto baixa, ainda envergonhada.
 - Então, finalmente nos conhecemos, senhorita Inverse – o cego, Rezo, estendeu a sua mão – É uma honra.
 Lina hesitou, mas em seguida apertou a mão do professor.
 - Prazer – ela disse – Hum... desculpe-me, eu não queria...
 - Ora, não se preocupe com isso – Rezo sorriu – Todos nós cometemos erros. E, diferente de Hazeyard, aqui você pode comete-los sem perder pontos na matéria. Melhor aproveitar.
 Lina deu um sorrisinho, se sentindo menos desconfortável.
 - O que o senhor ensina, prof. Rezo?
 - Atualmente, Magia Negra – Rezo respondeu.
 - Ah, deve ser legal!
 - Bem, não é exatamente a minha área favorita. Sou proficiente com magia branca, e a prefiro dentro de certas medidas. Mas não deixo de considerar as artes ofensivas um campo de estudos interessante – Rezo disse, com simpatia – Estarei esperando um bom desempenho seu em minhas aulas, Lina Inverse. Mas acho que não me desapontarei. É de família, produzir bons feiticeiros adaptados com magia destrutiva.
 - também conheceu meus pais? - Lina sorria agora.
 - Sim, sim. Ótimas pessoas, ótimas... - disse Rezo, mas em seguida seu sorriso desapareceu - ...pena que tenham recebido tal destino trágico. É... Não tem como evitar o que está destinado a nós no futuro. Triste...
 Lina não disse nada. Um silêncio desconfortável se seguiu, sendo interrompido por Zelgadis alguns segundos depois, felizmente.
 - Lamento professor, mas Lina Inverse e eu temos que ir – o quimera falou, apanhando o livro que Lina deixara cair e adicionando-o aos outros pacotes.
 - Hum? Sim, claro – Rezo pareceu acordar de um devaneio – Foi um prazer conhece-la, Lina Inverse. Nos encontraremos em breve. Boa noite.
 Zelgadis conduziu Lina em frente enquanto Rezo continuava seu caminho da direção oposta, testando o chão com seu cajado. Quando Lina olhou por cima do ombro porem, o professor já havia sumido no meio da multidão. Lina franziu a sobrancelha, se perguntando como conseguira perder de vista alguém com uma roupa chamativa daquela.
 - Ele não tem cara de quem ensina magia ofensiva – a garota comentou pouco depois – Deixam ele lecionar, mesmo cego? Imagino que use algum tipo de mágica para ver...
 Zelgadis lançou a ela olhares de soslaio.
 - Sim e não – o quimera falou, e Lina conseguiu perceber um pouco da amargura em sua voz – A magia ajuda, mas não cura. Existem coisas que nem a magia pode curar.
 A dupla permaneceu andando em silêncio. Lina se sentia desconfortável, contrastando com suas emoções alegres de alguns minutos atrás. Ela ainda pensava no que Rezo dissera e, de uma vez por todas, resolveu esclarecer tudo.
 - Ei, Zel...
 O quimera olhou para Lina. Ela continuou quando percebeu que recebia toda a atenção dele.
 - O que afinal aconteceu com meus pais? você ainda não me explicou isso, o que eu mais quero saber – ela disse com voz firme – Que “destino trágico” era aquele que Rezo falava? E porque afinal todos me conhecem?
 - ...Não sou a pessoa ideal para lhe contar isso-
 - Mas eu tenho o direito de saber! - Lina interrompeu e entrou na frente dele, forçando Zelgadis a parar de andar – você tem evitado as explicações por tempo demais, agora chega. E você sabe que se não me contar eu vou sair por aí para descobrir sozinha. Não acha mais fácil falar tudo de uma vez?
 Os olhos escuros de Zelgadis se fixaram em Lina enquanto ele pensava, seu rosto sem expressão. Porem, um minuto depois sua máscara impassível caiu, revelando um rosto cansado. Com um suspiro, ele cedeu.
 - Vamos sair daqui primeiro – o quimera declarou – Esse não é o tipo de conversa para ouvidos alheios.

 A noite já se aproximava daquela hora cinzenta antes do amanhecer quando Lina e Zelgadis deixaram o Beco Vertical. Depois da jornada de volta até o centro da civilização trouxa, a dupla parou em um restaurante recém-aberto (que servia café da manhã, de preferência) onde se sentaram na mesa mais isolada, para que Zelgadis contasse sua história sem serem incomodados.
 - Por onde devo começar... - Zelgadis perguntou para si mesmo enquanto Lina escutava com atenção, apesar de devorar seu café da manhã enquanto isso - ... Acho que tudo começa com um homem, a certo tempo atrás. ninguém sabe exatamente quem ele era ou de onde veio, mas logo ficou muito conhecido pela comunidade mágica. Conhecido por atos que qualquer outra pessoa ficaria envergonhada de cometer. Ele foi responsável pelos crimes mais horrendos e as atrocidades mais abomináveis durante o tempo que ficou ativo. Reuniu uma grande quantidade de seguidores aos seus propósitos malignos e criou o caos. Foram anos de terror. ninguém confiava em ninguém, inocentes eram executados enquanto os verdadeiros criminosos vagavam incógnitos, mortes eram anunciadas todos os dias, as pessoas tinham medo de saírem de suas casas. E ninguém conseguia deter esse homem. Ele tinha um grande poder, mas um poder grande até demais para ser considerado normal. Tanto que, até hoje, as pessoas duvidam se ele ainda seria... humano.
 - ... Quem era esse homem? - Lina perguntou silenciosamente.
 Zelgadis fez uma careta.
 - As pessoas não gostam de dizer o seu nome. É um mau agouro – depois de uma pausa, o quimera continuou – Seu nome real é desconhecido pela maioria. Mas ele se auto denominava o Lorde das Trevas, Shabranigdo.
 Um trovão ecoou ao longe, provocando um efeito dramático à fala de Zelgadis. Lina parou de comer e olhou fixo para seu companheiro.
 - Shabra-
 - Não diga – Zelgadis cortou – A única coisa que dá mais medo à comunidade mágica que ouvir esse nome, é se o próprio Lorde das Trevas aparecesse em pessoa.
 Lina se calou e esperou por Zelgadis continuar sua história. E foi o que ele fez, depois de uma pausa.
 - Qualquer um que se opusesse a ele era morto. Seu poder era inumano, perigoso demais. Não tinha como se manter neutro. Ou se uniam às suas legiões, ou eram inimigos delas, e aqueles considerados inimigos nunca permaneciam vivos por muito tempo - sua voz era triste quando ele prosseguiu – Seus pais foram dois desses inimigos. Mesmo que pouca gente saiba, eles fizeram grandes esforços para deter os seguidores de você. Sua mãe especialmente era muito conhecida por suas artes mágicas destrutivas.
 “Ele tentou convence-la a se aliar, é claro. Tinha habilidades cobiçadas demais. Mas Lina Inverse, sua mãe, jamais faria isso. Eu a conheci durante tempo suficiente para saber que jamais deixaria alguém como você lhe dar ordens. Imagino que tenha sido por isso que ele foi à casa dos Inverse, dez anos atrás. Mas seus pais nunca se aliariam a ele, então...”
 - ...então?? - Lina nem respirava, se pendurando em cada palavra de Zelgadis.
 - Não se sabe ao certo o que aconteceu. Mas, momentos depois, todo o quarteirão havia sido destruído. Seus pais jaziam mortos, no meio dos escombros. E única coisa inteira naquele lugar era você, um bebê de um ano de idade. Esse é o grande mistério. Aparentemente, ele tentou mata-la também, mas não funcionou como o esperado. você sobreviveu, mesmo quando o ser mais terrível e poderoso da história tentou destruí-la.
 Lina engoliu em seco. Ela tinha até mesmo esquecido de sua comida, pela primeira vez na encarnação.
 - E o que aconteceu com Shabrani-
 - Não diga – Zelgadis interrompeu de novo, cerrando os dentes.
 - Certo, o que aconteceu com... você?
 - ...Eu não sei. ninguém sabe. Ele nunca mais foi visto depois desse dia. Suas atividades cessaram e o exército que ia formando se dispersou. Por isso, cada pessoa da comunidade mágica do mundo todo conhece o seu nome. Ele desapareceu depois de falhar ao tentar seu assassinato.
 “Os boatos são muitos. Dizem que morreu, que fugiu, que foi banido para outras dimensões, histórias absurdas é o que não falta. Mas duvido que alguém com tanto poder seria morto dessa maneira. Mas, se não perdeu a vida, parece que perdeu os poderes, já que seu domínio pelo medo parou de existir. E tudo isso aconteceu por sua causa - Zelgadis fixou os olhos brandos em Lina – Você foi considerada a maior heroína da história da magia por causa disso. Por fazer, ainda bebê, aquilo que metade dos feiticeiros mais competentes do mundo morreram tentando.”
 Lina sentiu o rosto corar e ela voltou a comer seus pães de queijo, agora frios. O olhar que recebia de Zelgadis naquele momento era o mais próximo que conseguira chegar de um olhar caloroso. Retomando a velha Habilidade de Comer e Falar Sem Enojar Seus Companheiros ou Cuspir Neles (tm), a garota continuou a conversa para evitar o silêncio constrangedor.
 - Então... Eu sou a pessoa mais especial que esse mundo conheceu por  ter feito alguma coisa que eu nem me lembro, certo? E que ninguém mais conseguiu fazer, certo?
 - Sim.
 Lina não pôde segurar seu sorriso.
 - Ha! Mas é claro – ela subiu a voz e segurou o garfo de forma imponente, como se fosse uma espada (mesmo que espadas não tenham pedaços meio comidos de waffle pingando mel na ponta) – É preciso mais que um bruxo cruel com poderes alem de imaginação para destruir Lina Inverse! Sabia que não tinha conseguido sobreviver todos esses anos à toa. Espera só até Martina-SAMA saber disso! - ela enfiou feliz o pedaço de waffle na boca e retomou o ritmo Inverse de comer (entenda-se: muito rápido). Zelgadis ficou em silêncio enquanto a gota de suor descia pela parte de trás de sua cabeça, depois deu de ombros e colocou um pouco de café para si mesmo (Lina imaginou como ele conseguia consumir tanto café sem sofrer os efeitos colaterais de uma grande quantidade de energia entrando no corpo através da bebida. Talvez quimeras tivessem algum tipo de resistência especial? É algo que ela tinha que lembrar de perguntar mais tarde).
 - Agora que eu já disse o que você queria saber... - Zelgadis começou a falar novamente, em tom mais alto, tentando se impor no barulho que era Lina comendo - ...é sua vez de me explicar algo.
 A garota olhou para ele, resmungando algo como “hunm?” através da boca cheia.
 - Aquilo que você fez na casa dos Navratilova... foi uma exibição pouco poderosa do poder destrutivo de um Dragon Slave, não foi? Como conseguiu conjurar aquela magia sem qualquer treinamento ou conhecimento prévio?
 Lina pensou por um momento, tentando se lembrar com exatidão do que tinha acontecido naquele dia, depois engoliu aquilo que tinha na boca e começou a falar.
 - Ah, aquilo. Bem, lembra quando eu falei que tinha encontrado um pacote que Martina escondeu? Então, dentro dele tinham alguns objetos que tinham sido da minha mãe. No começo pensei que fossem meus, já que tinha o mesmo nome gravado. Eram coisas bobas, como brinquedinhos infantis, moedas estrangeiras, diários antigos... Mas no meio desses diários tinham alguns papéis onde estavam anotadas palavras estranhas. Pareciam poesias ou coisa parecida para mim, quando encontrei. A que mais prendia a minha atenção era aquela que começava “Mais escuro que a madrugada, mais vermelho que o sangue” e etc, etc. Então, quando não tinha o que fazer no meu armário, eu ficava decorando essas palavras – Lina tomou um gole de suco e engoliu mais alguns bolinhos antes de continuar – Não sei porque me lembrei delas antes de explodir longe a sala dos Navratilova. Acho que foi instinto, sei lá. Mas o efeito foi bem legal. O que era aquilo afinal? Um feitiço, não é?
 Zelgadis sorriu com ironia e cruzou os braços. Já deveria ter previsto isso.
 - O efeito foi bem menor do que é na realidade – ele falou – O poder do Dragon Slave pode transformar toda uma cidade em uma cratera fumegante em questão de segundos. Se trata da mais poderosa das magias negras.
 Clang! Foi o barulho do garfo de Lina caindo no chão.
 - ....eh? - disse ela, com uma expressão abobalhada.
 - Essa magia foi inventada por sua mãe – o quimera prosseguiu, ignorando a reação da garota – Por essa magia que Lina Inverse foi famosa. É necessário muito poder mágico para executar o Dragon Slave com perfeição e me impressiono que já tenha conseguido explodir uma sala apenas decorando as palavras de poder. Deve ter muito potencial. Imagino o que será capaz de fazer depois de receber treinamento em Hazeyard.
 Lina coçou a parte de trás da cabeça.
 - Ora essa, não foi nada de mais – ela sorriu, constrangida – Se eu soubesse que podia fazer isso, teria usado em Martina há muito mais tempo!
 Zelgadis preferiu não comentar. Ao invés disso, ele tirou um complicado relógio de um dos bolsos de sua calça e examinou.
 - O trem para Hazeyard deve sair por volta das dez. Ainda está cedo, mas eu tenho que ir antes disso para ajudar nos preparativos para o inicio do ano letivo.
 - O que exatamente você faz em Hazeyard? - Lina falou, curiosa.
 - Hum... Sou o principal ajudante do diretor. Faço serviços especiais em nome do Prof.Philionel – ele disse, mas pareceu embaraçado quando continuou – Porem, quando estes serviços não existem, me mandam fazer absolutamente tudo que qualquer outra pessoa não faria.
 - Hum, não é exatamente o serviço nobre que o título faz lembrar – Lina comentou, a tão bem conhecida gota descendo aos poucos.
 - É, seu sei... - Zelgadis murmurou tristemente, depois assumiu sua postura normal ao se levantar – Agora que você já terminou seu café, eu devo te dar as ultimas instruções antes de nos despedirmos.
 - Mas eu ia pedir uma segunda leva! - Lina choramingou, ainda sentada. Zelgadis: Gotas e mais gotas.
 - ...deixa isso pra lá. você pode comer no trem.
 Lina engoliu o que sobrava de suco de má vontade e também se levantou. De repente, ela se sentiu extremamente cansada, depois de ter ficado acordada a noite toda, mas era um bom cansaço. Estava satisfeita, bem alimentada e feliz por aquele que tinha sido o melhor dia... er, noite de sua vida. Ela só não queria que isso atrapalhasse o seu primeiro dia na escola.
 Zelgadis pareceu ter entendido como Lina se sentia (talvez por causa do enorme bocejo que ela soltou) e parou a garota antes de deixarem o local.
 - Está com sono?
 - Não, não... - ela respondeu. Zelgadis ergueu uma sobrancelha de pedra. Lina mordeu o lábio – Tá bom, talvez um pouco, mas não se preocupe comigo.
 - Não estou preocupado – o quimera agora remexia nas vestes. Ele tirou de algum bolso um pequeno frasquinho que continha um liquido incolor e o entregou a Lina – Isso é uma poção revigorante. Eu mesmo preparei, pensando que as coisas poderiam acabar como agora. Se você tomar vai se sentir desperta o suficiente até a próxima noite.
 - Obrigada, Zel! - ela tomou o conteúdo do frasco... e imediatamente saiu correndo para pegar o primeiro recipiente de líquido que conseguiu encontrar, que acabou sendo o suco de laranja do único outro cliente do lugar.
 - Agora sei como você acorda pessoas com isso. É ruim pra diabo! - Lina reclamou depois de esvaziar o copo e ignorar as exclamações descontentes do dono do suco. Zelgadis abaixou a cabeça, linhas de depressão se formando quando o garçom chegou para ver o que acontecia.
 - você quer me ver na miséria, não quer? - o quimera murmurou.

 A dupla saiu do restaurante (após Zelgadis reembolsar o outro cliente, que saiu indignado) deixando o lugar vazio  e o cozinheiro com muito trabalho logo pela manhã. Apesar do gosto detestável da poção, ela serviu a seu propósito, e a feiticeira se sentia como se tivesse acabado de acordar depois de uma boa noite de sono tranqüilo. Zelgadis levou Lina até a estação de trem, onde eles pararam na entrada.
 - Aqui está sua passagem – o quimera deu para a garota o pequeno ticket de embarque – você deve descer na estação a duas paradas daqui, que é de onde parte o trem para Hazeyard. E esta... - ele entregou a Lina outro ticket - ...é sua passagem para Hazeyard. O embarque é na plataforma nove e meia, às dez horas.
 - Entendido! - Lina sorriu, guardando as passagens no bolso. Zelgadis entregou para Lina sua mala com todo o novo material (ela sabia que tinha sido uma boa idéia lembrar de comprar o malão, ainda lá no Beco Vertical) e se endireitou para se despedir. A máscara e o capuz escondiam muito bem o rosto de Zelgadis dos trouxas, mas ainda assim chamava muita atenção, e ele não gostaria que um passante mais observador reparasse no detalhe de seus olhos.
 - Nos veremos ainda hoje – Zelgadis falou – Lá em Hazeyard. Não penso que terá muitos problemas com o trem. Até mais, Lina.
 - Espera! - Lina gritou, antes que o quimera virasse as costas para partir – Antes de ir, me responda só mais uma coisa.
 - Sim?
 - Porque os mágicos chamam os sem magia de trouxas?
 A pergunta pegou Zelgadis de surpresa. Ele esfregou a mão no queixo, pensando seriamente nisso pela primeira vez. Pouco depois, ele respondeu de forma incerta.
 - Não sei – o quimera deu de ombros - Talvez porque sejam muito estúpidos de não reparar em todos os eventos incomuns obviamente mágicos em volta deles.
 Houveram alguns segundo de silêncio. Segundos depois, Lina começou a rir, silenciosamente primeiro, logo evoluindo para uma gargalhada. Contagiado pelo riso de Lina, percebendo o que tinha acabado de falar, Zelgadis também riu por um momento.
 - Eeei! - Lina enxugou as lágrimas depois que o riso passou – Sabia que ainda ia conseguir tirar um sorriso de você!
 O quimera apenas balançou a cabeça mas, embora Lina não pudesse ver por debaixo de sua máscara, ele estava sorrindo.
 - Então, tá legal. Não quero te atrasar. Nos vemos em Hazeyard! – Lina se virou para entrar na estação, acenando para Zelgadis antes de ir – Até mais Zel!
 - Até – ele acenou com a cabeça em resposta e se virou para partir. Quando Lina olhou por cima do ombro pela ultima vez, como acontecera com Rezo, Zelgadis também havia desaparecido. Piscando uma ou duas vezes, a pequena feiticeira deu de ombros e entrou na estação, rumo ao seu novo destino.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Lina Inverse e a Pedra do Feiticeiro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.