My Last Breath escrita por Louis_McDowell


Capítulo 1
Cap I: Lírios mortos




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-ooo-

- Rukia, aceite esta aliança como prova de meu amor.

 

Palavras entrelaçadas ao vento, ditas com sentimentos e emoções. Os seus olhos fugiram para o foco principal da noite.

 

- Sim, eu aceito.

Respostas programadas numa perfeita simetria, em uma dança que sempre termina no mesmo passo, levada pelo mesmo compasso das regras indecifráveis do Casamento: Palavra escolhida para existir nas eternas páginas do Amor, pincelada com a frágil tinta da Confiança e apagada entre os borrões traiçoeiros e sutis do Adultério.

 

- Pode beijar a noiva.

 

As palmas logo se tornaram intensas. Inoue Orihime empurrou levemente sua cadeira para trás e se levantou, tendo o cuidado de ajeitar uma única mecha de seu cabelo, que teimava em cair-lhe para o rosto ainda sereno. Levantou-se sem pedir "Licença." para aqueles que sentavam nas cadeiras próximas a sua e, em seguida, deu quatro passos sobre o chão encerado, deixando para trás o rastro invisível de seus antigos sonhos, da alegria e da ingenuidade pouco contida nos lábios.

 

Os risos que a envolviam denunciavam a hiperbólica felicidade das pessoas que assistiam o casamento perto do lago, de belos tons esverdeados, que decorava o centro do jardim. A água límpida beijava os azulejos, que a circundava minuciosamente, de maneira passiva, suave, repetitiva, beirando a romântica.

 

Ela parou, levando de canto aquele par de topázios, tão valiosos quanto a própria pedra, a encararem os variados tons de verde que se desfragmentavam na água a cada movimento realizado de forma serena. Fixou a íris cor de mel no verde puro do líquido por segundos. Segundos que demoraram a findar. Com melancolia, amaldiçoou todos os tons distintos de verde que nela havia, cor que exaltava a Esperança. Esperança que havia lhe deixado sem despedidas, sem desculpas, sem compaixão.

 

Quem havia lhe furtado tal dádiva?

 

Houve um, entre os convidados, confiante o bastante para que erguesse sua Zanpakutou e congelasse aquelas águas passivas por completo. Formara-se, assim, uma pista de dança.

 

Aos céus, coube a Apolo¹ borrar qualquer traço do laranja, vermelho e amarelo que o Sol deixara para trás, dando um rastro de saudades de mais uma tarde tranquila. O manto azul-escuro forrou o dia. Estava estrelado e límpido naquela bela noite de setembro, e a Lua iluminava a pista de dança com seu feixe mítico.

 

E na pista, os primeiros a acompanhar a melodia: O bravo aspirante a herói Kurosaki Ichigo com sua, agora esposa, Kurosaki Rukia. Era o final esperado por todos. A banda começou a tocar uma bela melodia ao som de harpas e violinos num ritmo apaixonado. E o casal dançou como se fosse sua última noite.

 

Os convidados observavam os felizes recém-casados darem o ar de sua graça em passos de dança lentos e ritmados. Após o primeiro ato da música dar-se por encerrado, um encadeamento de pares surgiu ao redor do casal.

 

Urahara abraçou Yoruichi pela cintura com um sorriso esboçado nos lábios. A amante, disposta a bailar, respondeu ao mesmo nível. Hitsugaya já havia tomado as mãos quentes de Hinamori entre as suas, convidando-a para dividir, entre passos e compassos, o sabor daquele amor juvenil há tanto tempo contido no pensamento e no coração.

 

Orihime anulou seu último suspiro nos lábios entreabertos. Desde quando o seu coração deixara de bater?

 

A ela, Ichigo não fez falta e não seria agora que faria. Na verdade, o observava sem qualquer traço de tristeza, remorso ou decepção. Todo o amor que carregava por ele caiu para a ponta dos sapatos assim como seus sonhos na Medina. Quem levara sua felicidade?

 

A resposta era simples, maldita e intragável: Ulquiorra Schiffer.

 

Sem pensar duas vezes, arrastou seu corpo cansado para dentro de uma cúpula Santa vazia, pouco iluminada e aparentemente abandonada, que existia num dos devastos cantos onde se realizava a festa pós-cerimônia. Ninguém sentiria sua falta. Absolutamente ninguém.

 

Chamou-lhe atenção uma rosa murcha em cima de um maltratado piano de cauda. Sua mão ergueu-se para tocá-lo com a ponta fria dos dedos. Fechou os olhos numa tentativa inválida de desaparecer entre a escuridão do silêncio que gritava entre os magistrais pilares da cúpula.

 

O tatear suave de suas mãos sobre as pétalas enrugadas da flor lhe trouxeram recordações que há muito custo foram forçadas a se conterem numa gaveta qualquer de sua memória. Um arrepio percorreu seu pescoço. Vozes sussurradas aos ouvidos despoletaram a um conjunto sequencial de imagens.

 

As palmas ainda audíveis forçaram-na a encarar a bruta realidade. Encostou o corpo contra a parede fria, buscando capturar todas as lembranças e consequências que a fizeram ser o que era agora. Plenitude. Quando reabriu os olhos, buscou o instrumento.

 

O velho piano de cauda a convidava para delinear toda a sua angústia sobre as frágeis teclas desgastadas pelos maus tratos do tempo. Deu dois passos sobre chão e sentou-se na cadeirinha de madeira. À sua frente, apenas aquela antiguidade instrumental. Acariciou-o caprichosamente.

 

Quando voltou seus olhos para vidro arranhado da janela, avistou diversos pares dançando apaixonadamente em torno do lago agora congelado, sobre o qual Ichigo e Rukia despejavam passos, carícias e beijos sem conseguirem parar de sorrir.

 

Desviou o olhar. Não iria chorar. Promessa que havia feito a si mesma, obrigando-se a cumpri-la de qualquer maneira. Uma vez mais, fixou o olhar em seu companheiro silencioso, um objeto que poderia diluir a tristeza se seu coração estivesse disposto a isso.

 

Experimentou tocar a primeira tecla em que pensou. Dó. Aquele toque parecia lhe fazer algum tipo de provocação, nada que pudesse atingi-la. Experimentou mais uma, e duas, e três vezes. Por fim, quando deu por si, encontrava-se já a tocar a única música que podia pensar no momento. E viu naquilo uma maneira de desafogar segredos que nunca poderia dizer a alguém. De seguida, sua voz mesclou-se ao vazio como eco:

Hold on to me, love

Segure-se em mim, amor

You know I can't stay long

Você sabe que não posso ficar muito tempo

 

All I wanted to say was I love you and I'm not afraid

Tudo o que eu queria dizer é que eu te amo e que não estou com medo

 

Deixou que as emoções fluíssem por todo seu ser, onde suas mãos lhe serviam para expressar desafetos, seus olhos para guiar a massa cerebral a murmurar a próxima tecla a ser tocada, e seu coração, músculo oco dividido em quatro partes, de átrios para ventrículos, fazendo-a sobreviver por um triz. Tudo inibia ódio e paixão. Ainda se lembrava de como e quando tudo começara. Mas recordar seu passado era como enfiar uma lâmina no peito. Perfurar aquele músculo essencial à sobrevivência que a deixava morrer aos poucos, sendo a fonte da sua grande tristeza naqueles últimos tempos que pareciam anos a fio.

 

Tudo iniciara numa noite sem luar de dezessete de julho. Ela, como sempre, tão afoita e boba com sua estúpida ideologia de se tornar prestativa para Ichigo, mas com comportamentos tão infantis, irresponsáveis e inferiores.

Não era fácil encarar uma guerra espiritual com ainda toda a sua inocência de menina. Custava-lhe encarar as lutas como algo comum no seu dia a dia, assim como a morte.

-ooo-

- Está assustada?

  

Os olhos esverdeados pareciam ser o único sinal de vida no homem que a cada palavra cuspida rispidamente dos lábios, dava um passo para frente até que pudesse encará-la com aptidão.

  

O rosto branco, fino e inexpressivo, as roupas brancas e largas e sua fisionomia delgada desprovida de qualquer saliência muscular, davam-lhe a frágil ilusão de ser fraco. Contudo, ela sabia que era mentira. O olhava com segurança, firmeza e com suas sobrancelhas levemente franzidas. Chegara a hora da verdade!

  

- Você é inútil ao Aizen-sama agora. Não há ninguém para protegê-la. – Sibilou ele num tom tranquilo, como se cada palavra dita fosse um palmo a mais abaixo do chão para Inoue.

  

Ele esperou um pequeno recuo vindo por parte dela, uma nítida reação que o fizesse entender seu temor ou algumas poucas palavras ditas com desgosto e desespero. Mas, definitivamente, nada. Os lábios de Inoue continuavam fechados. As palavras simplesmente não se proliferavam e tomavam o ambiente, ela continuava lá, rebatendo todas as suas palavras provocativas com os olhos umedecidos de candura. Sem remorsos, sem receios.

  

Não havia vestígio algum de ódio.

  

E diante de tal fato, ele perguntou-se inúmeras vezes se aquelas sobrancelhas franzidas eram nítidos sinais de compaixão, e não de temor.

  

Compaixão de quem?

  

Abandonou a teoria e continuou a cuspir todas as palavras necessárias para fazê-la sofrer, vê-la chorar ou desmoronar o maravilhoso mundinho de fantasia que ela guardava consigo. Sua esperança iria diluir-se ali, diante dos seus olhos! Nas mesmas íris esverdeadas que também faziam extinguir o sentido da Esperança.

  

- Acabou. Você irá morrer sozinha aqui, onde ninguém tocará em ti.

  

Silencio. Tensão. O moreno, não tendo resposta, aproximou-se um pouco mais, parou a uma distância perigosa e estreitou os olhos tentando intimidar.

  

- Eu perguntei se está com medo.

 

-Não. Não estou com medo. – A voz fina saiu quase inaudível, mas enfática o suficiente para que o surpreendesse como tão raras vezes acontecera. – Todos vieram me salvar. Então meu coração está... – A face triangular de Ichigo lhe viera em mente. - Com eles.

 

-Tolice. – E ele retrucou desdenhoso. Absolutamente nada naquele comentário o fazia crer no que ouviu. Ela não podia estar falando sério, podia? Ficar presa a uma convicção sem lógica, sem nexo. Bobagem de humanos!

 

Inoue voltou a defender seu ponto de vista naquele debate sem sentido. Talvez ela continuasse com a expectativa de fazê-lo entender ou só quisesse desabafar alguns de seus, há tanto tempo esquecidos, pensamentos. Mas para ele, aquelas palavras não passavam de uma indagação vã, um projeto inacabado de retardamento psicológico. Por instantes, apeteceu-lhe erguer suas mãos para apertar aquele pescoço fino e frágil entre os dedos esguios e vê-la cair morta aos seus pés.

 

-... Isso seria a mesma coisa que fazer os corações se tornarem um.

 

- "Coração", hã? – Contestou num meio tom sarcástico. – Vocês humanos estão sempre falando de coração como se o carregassem nas palmas das mãos. Mas estes meus olhos vêem tudo. E se eles não puderem ver algo, é porque este algo não existe. – Deu um passo a frente. – E sempre lutei tendo isso em mente. – Completou.

 

A inesperada contestação de Ulquiorra apanhou-a de súbita surpresa. O olhar esmeraldino a fitava impondo toda sua convicção e firmeza naquele ideal.

 

- O que é este "coração" do qual tanto fala? – Persistia em continuar encruzilhando-a em perguntas que não havia sentido algum de respondê-las. Platão dava saudosas gargalhadas ao exuberante desastre psicológico pelo qual Ulquiorra encurralava-a, como se a quem declinasse os socráticos por abismo adentro. E ela, por vez, mesmo inconsciente de seus atos, começava a denunciar seu nervosismo crescente perante tais perguntas. Eram perguntas para as quais não havia respostas sólidas. Eram daquelas que tinham como característica não serem domadas por nenhum traço, ponto ou vírgula, de não serem comprovadas por experimentos ou provas. Mas sim, sentidas. E sentir algo ou alguma coisa era caso extremamente negável a ele, um ateu. Um niilista inflexível aos padrões plausíveis da perspectiva humana.

 

E como se ainda não bastasse, o Arrancar levantou seu braço direito, contraiu os dedos em exceção ao indicador e direcionou-o ao peito de Inoue, apontando sem tocar, o coração, órgão que bombeava o sangue e o impulsionava a correr entre as artérias, veias e capilares de seu organismo. Prosseguiu.

 

- Se eu abrir seu peito o encontrarei? – Dessa vez, direcionou os dedos numa questão de milímetros sobre a testa da garota enquanto mantinha os olhos focados nos dela, que, por vez, estavam nitidamente mergulhados num temor que furtavam de si qualquer palavra reformista. – Ou será que deveria abrir seu crânio para encontrá-lo? – Dessa vez, a fez engolir em seco.

 

O quebrar violento da parede despertou-os para uma nova realidade dando fim àquela conversa. Ulquiorra já não poderia saber o que mais lhe apetecia a descobrir: A Verdade.

 

Virou agilmente seu rosto para encontrar o vulto de um homem avassalador entre as inúmeras partículas de poeira e fumaça resultante da explosão. Era ele. Aquele maldito shinigami, Kurosaki Ichigo!

 

Tensão. Fuzilaram-se numa batalha silenciosa de olhares onde cada um esperava que o outro vacilasse perante o confronto. Em vão. Ambos mantinham-se firmes. O silencio só fora cortado quando a voz gentil de Inoue soltou um "Kurosaki-kun" hesitante. Ele desviou o olhar para dar maior atenção ao chamado podendo constar que, fisicamente, ela se encontrava bem.

 

- Afaste-se da Inoue agora. – Dirigiu suas palavras imperativas ao Arrancar.

 

- Digo o mesmo. – Retrucou o 'Cuarto'. – Enquanto Aizen-sama não retornar, meu dever é guardar o Hueco Mundo. Mas, pelo que me consta, ele não deu ordens para matar essa mulher e, enquanto ele não me der tal ordem, eu a manterei viva. – Completou enquanto sacava a espada.

 

Ulquiorra o odiava. Ichigo era aquele típico humano aspirante a herói desagradável e teimoso, similar a uma mula que não sabia quando recuar ao encontrar um inimigo de força superior. E se suas palavras não o faziam recuar, ele o faria temer ao vislumbre catastrófico de sua lâmina!

 

- Contudo... – Deu conformidade ao tom sereno de sua voz. - Eliminá-lo é o mesmo que guardar o Hueco Mundo. Não tenha dúvidas, irei matá-lo.

 

Diferentemente do que alguns de seus companheiros achavam, ele não o odiava por causa de Inoue, claro que não! Acreditar nessa bobagem era o mesmo que acreditar em contos de fadas. O desdenhava apenas porque por culpa dele e somente dele, Kurosaki Ichigo, ela mantinha a maldita esperança, que tanto desprezava, viva, junto a si, impossibilitando de que suas palavras causassem impacto negativo a ela.

 

Inoue se distanciou, envolvendo-se em seu próprio escudo. Tinha ânsia de viver para que aquele momento não fosse o último a ver a imagem de Kurosaki refletir em seus olhos. A partir dali, testemunharia nada mais nada menos que sangue, suor e dor, estava ciente. Mas não acreditaria se lhe contassem que tal sangue derramado seria o motivo de suas futuras lágrimas, decepções e revoltas.

-ooo-

 

Can you hear me? Can you feel me in your arms?

Você pode me ouvir? Você pode me sentir em seus braços?


 

Mais uma vez sentia que iria fraquejar diante daquela música. Seus olhos brutalmente umedecidos preparavam-se para despejar as lágrimas nas cansadas teclas do instrumento, para extrair toda a tristeza que não se permitiu expressar durante aquela luta brutal. Não, ela não iria chorar! Não por ele! ...Nunca mais! Inspirou de novo, engoliu saliva para acalmar a garganta ardente e fechou os olhos para que não despejasse nenhuma gotícula de lágrima sequer.

 

Quando os abriu de novo, seus dedos percorreram novamente as teclas do piano numa melodia que se enrolava a si como ameaça de que ainda a faria chorar.

 

Holding my last breath

Segurando meu último suspiro

Safe inside myself

A salvo dentro de mim

Are all my thoughts of you

Estão todos os meus pensamentos sobre você

Sweet raptured light, it ends here tonight

Doce luz extasiada, que acaba aqui esta noite.

 

Sob a luminosidade da Lua, ela afogava-se em lembranças e arrependimentos que nunca deveriam ter sido cometidos. Deveria ter sorrido menos e se esforçado mais. Deveria ter amado menos e lutado mais por aqueles que amava. Deveria... Ter hesitado menos.

 

Era assim que deveria ter começado. Ela sempre foi um nada tentando ser alguma coisa que valesse a pena. Que triste. Nunca possuiu qualquer vontade de prosseguir em frente se não tivesse a companhia dos amigos. Cedia a qualquer conflito, amargurava-se por qualquer coisa e desejava cair no seu leito de morte e ali permanecer eternamente, enquanto deixava o mundo desmoronar aos seus pés. Sua tristeza percorria todas as células do seu organismo, cada poro de sua epiderme alva, conectando-a ao mundo, advertindo-a que na vida existia mais que a sua singular pessoa.

-ooo-

 

O pulso elevante que rasgava o caos era sentenciado por duas forças com objetivos diferentes: Uma lutava pelos amigos, por si mesmo e por aquilo que acreditava ser inigualavelmente correto: Salvar uma companheira. A cada golpe, a escuridão lhe roubava um traço de sua personalidade e, no lugar, dava-lhe não apenas a mentalidade como também a fisionomia de um monstro. Uma espécie de evolução grotesca de Hollow sedento por sangue.

 

No outro lado estava o ateu, aquele que só acreditava no que via e que se embebedava com doses requintadas de niilismo². Dois seres indiscutivelmente fortes batalhando num confronto final.

 

E de repente... Um clarão.

 

As madeixas alaranjadas caíram-lhe para o rosto, cobrindo-o com totalidade em consequência ao colapso de duas espadas que se extinguiam na explosão.

 

Instintivamente, fechou os olhos para que a luz e o vento bruto não agredissem a já deficiente umidade da visão. Levou os braços ao rosto ferido para se assegurar de que assim estaria protegida, mesmo ciente que não era verdade. Deixou a pressão atmosférica lhe empurrar ao solo de finas areias brancas, machucando sua pele, agredindo seus frágeis braços. Apenas se movimentou ao sentir o serenar da areia beijar o solo branco e seco de cores abstratas.

 

Abriu os olhos com dificuldade e, lentamente, o embaçado da visão deu espaço para uma imagem de feições corporais masculinas ferida e debilitada cair por terra como defunto. Era Kurosaki Ichigo.

 

Gritou. Gritou como nunca fizera antes enquanto corria em direção ao seu salvador.

 

Em momento algum se lembrou de Ulquiorra, o inimigo que a observava a menos de cinco metros de distância. E este, por sua vez, revezava os olhares ora para Ichigo, ora para ela, que gritava ofegantemente sufocada por sua depressão crescente.

 

O incomodava aquele jeito frágil e passivo que a impedia de agir ou pensar. Mas, mesmo assim, mesmo com todos aqueles defeitos, Schiffer ainda podia enxergá-la como algo a ser estimado. Era verdade, Inoue lhe era importante. E fora quase impossível não se perguntar se que aquelas lágrimas poderiam ter sido suas, caso estivesse ali, caído no chão no lugar dele. Com prudência, observou a si mesmo. Metade de seu corpo já não seria recuperado com perfeição.

 

-"Meu braço e minha perna estão se regenerando, mas só por fora. As entranhas que ele destruiu não irão voltar." – Abaixou a cabeça. Estava cansado, sabia que iria ceder à exaustão muito em breve.

 

Ao sentir uma leve alteração de reiatsu surgir, seus orbes elevaram-se do solo para que mais uma vez fixassem-se no inimigo caído ao chão. Impossível! Ao redor do Shinigami uma camada sofisticada de reiatsu o circundava como neblina e rapidamente o curava. Regeneração de alta velocidade, uhn? Ele não era um Shinigami qualquer, tampouco um hollow comum. Era um monstro tal como ele!

 

Em sua mente, os dois lados do cérebro travavam uma dura batalha para tentar vencer ao outro: Ichigo merecia a morte ou um reverenciamento? Deveria mostrar-se surpreso por testemunhar tal façanha ou mostrar-se indiferente como o habitual? Tudo começava a ficar interessante, afinal de contas, quem poderia jurar que Ichigo não era lixo? Ele era um objeto de valor não estimado muito raro.

 

Um pouco mais a frente, agarrada ao Substituto de Shinigami, estava Inoue, tão confusa como nunca. Os olhos brilhantes, devido às lágrimas pouco contidas na face, observavam com pavor os ferimentos do rapaz cicatrizarem de forma sobrenatural, inclusive o abismo sangrento na parte central do peitoral. Quis tocá-lo para confirmar de que não mergulhara numa nova ilusão e cautelosamente sussurrou vacilante o sobrenome do garoto.

 

- Kurosaki?

 

- Eu? – A resposta foi imediata. Uma voz que não hesitava em advertir dúvida perante o ocorrido fenomenal. Tentou firmar uma de suas pernas no chão, sentia a mente bagunçada. Parecia algo irreal, estava mesmo vivo? Resgatou das lembranças a sequência de imagens da luta, juntando-as rapidamente como em um quebra cabeça, formando um encadeamento pressuposto. Levou a mão esquerda ao peito a procura do buraco que Ulquiorra havia feito outrora sentenciando sua morte. Havia sumido! Não havia mais nenhum sinal de dor, de raiva ou de adrenalina alimentando seus músculos preparando-a para o clímax do confronto. Pelo contrário, estava tão em paz consigo mesmo que chegou a duvidar que estivesse vivo.

 

- Não tinha um buraco no meu peito?- Tentava assimilar a ideia.

 

- Kurosaki...

 

- Inoue, você esta bem? – Por um breve momento, foi jogado para fora de seus pensamentos por aquela voz carinhosa. A fitou buscando qualquer ferimento que pudesse ter, mas para seu breve período de tranquilidade, Orihime ainda estava bem fisicamente. Não poderia medir os estragos mentais que Ulquiorra lhe proporcionara, ele bem o sabia.

 

Contudo, não havia somente ela para proteger. Rodou seus olhos em 60º graus em busca de Ishida e toda tranquilidade adquirida a pouco se dissipou ao vê-lo encostado em uma pedra, contraindo-se de dor, devido a espada cravada em seu peito. Ichigo suou frio. Aquela era sua espada!

 

- Finalmente você voltou. – A voz do Quincy saiu num meio tom irregular.

 

- Esse ferimento... – Comentou engolindo em seco. –... Eu que fiz isso?- Perguntando incrédulo.

 

Ishida, por conseguinte, não ousou em respondê-lo. Sabia que seu amigo estava inconsciente quando o feriu, entretanto, todo aquele silêncio trouxe a Ichigo uma sensação mais amarga e frustrante do que ouvir um 'sim' ríspido do outro.

 

- Você é mesmo irritante. – A voz fria e desdenhosa de Ulquiorra o forçou a sair daquela outra dura realidade. O garoto girou seu corpo numa rotação de 180º para encará-lo, ainda com os olhos incrivelmente arregalados: Ulquiorra, seu inimigo, estava tão ferido quanto seu amigo Ishida, mas ele não se lembrava de ter feito aquilo!

 

- Ulquiorra...

 

Antes que o rapaz pudesse completar a frase, o moreno de olhos verdes tirou brutalmente a espada de lâmina negra fincada no peito do outro, jogando-a em direção ao seu rival, e com naturalidade, acrescentou:

 

- Pegue- o. Vamos terminar logo com isso.

 

- Fui eu quem atacou o Ishida? – Ele buscava a confirmação ignorando a espada a sua frente.

 

- Não pergunte para mim. – Retrucou Ulquiorra como se aquilo fosse muito óbvio, enquanto tentava a todo custo solidificar um raio de reiatsu em suas mãos, ainda que o mesmo saísse escasso.

 

- Fui eu quem cortou seu braço e perna fora? – As palavras saíram roçadas entre os dentes trincados, mas dessa vez os olhos esmeraldinos esbarraram-se de canto nos escuros dele. Então era isso. Aquele que o cortou não era Ichigo, era algo ou alguma coisa dentro dele. Paralelamente a si, como empatia, Ichigo chegou ao mesmo raciocínio.

 

- Aquele que lutou contigo não era eu. Aquela era minha forma Hollow e não tenho controle sobre ela. – Esclarecia. – Se você quer resolver isso não será justo a não ser que estejamos nas mesmas condições. – O orgulho ocultava o pouco raciocínio de que era provido.

 

- Então corte meu braço e minha perna fora também! – As palavras pouco pensadas pelo aspirante a herói pegaram todos de surpresa. Ichigo parecia ter um talento sobrenatural para surpreender as pessoas, mas, no fundo, tudo o que queria era equilibrar a luta da maneira tão justa quanto ele desejava. Achava que havia blefado, sentia-se sujo.

 

Inoue, por outro lado, observava a situação silenciosa, sabendo do possível desenrolar da trama e, pela primeira vez, não se sentiu abalada pelo seu comentário. Não porque achava que Ichigo não merecesse ser ouvido, mas porque, que raio, até lhe achara alguma graça! Sim, era isso: graça – apetecia-lhe rir perante o seu discurso improvisado.

 

- Se é isso que você quer. – Aceitou.

 

- Kurosaki, você percebe o que esta falando?- O Quincy entoava toda sua repreensão na voz, tentando mostrar o verdadeiro peso daquela atitude insana. A verdade era que desejava que sua pergunta não fosse vã aos ouvidos de Ichigo que, por vez, mantinha o olhar compenetrado aos do rival, deixando o suor frio percorrer sua testa a espera de uma ação vinda por parte oposta.

 

Ulquiorra aguçou os sentidos, firmou as pernas e lançou seu olhar confiante ao oponente. Todo o orgulho que lhe restava incorporava-se da bainha à ponta de sua espada. Silêncio ensurdecedor. Suspense esmagador. Um golpe certeiro lhe agraciaria com a vitória. Suas asas esticaram-se para pegar impulso. Ichigo, por outro lado, já empunhava sua espada antecipando o movimento. Foi quando...

 

...O primeiro sinal de que Ulquiorra desapareceria ocorreu. O desgaste físico e a perda absurda de reiatsu fizeram com que um simples bater de asas se entrelaçasse com a atmosfera, dividindo-se em milhares de partículas que desvaneciam com a fina brisa que passava de forma suave entre seus cabelos.

 

Os olhos de Ichigo arregalaram-se, não acreditando no que testemunhava. Seus lábios tentaram gesticular uma fala, algo que lhe saciaria a ânsia adquirida, mas as palavras perdiam-se na garganta e não achavam a saída.

 

- Acabou para mim. – O moreno resumiu serenamente seguido de um suspiro cansado. Sentia seu corpo reduzir-se a partículas finas e homogenias, que se elevavam na atmosfera, entrelaçando-se ao ar que preenchia seus pulmões. – Me mate. Rápido. Se não me matar agora, essa luta nunca terminará. – Completou.

 

- Não farei isso. – A resposta saiu com dificuldades. Recusava a fazer sua língua desenhar tal frase com louvor. Fechou a mão, formando um punho trêmulo.

 

- O quê?

 

- Eu disse que não...! Não era assim que eu queria ganhar! – Vociferou a voz, deixando um Ulquiorra estático e perplexo a sua frente. Este, por vez, abaixou a cabeça concordando com aquele ponto de vista: Estava esgotado demais para lutar.

 

- Mesmo no fim, você nunca faz o que quero...

 

Os olhos ameaçadores deram lugar aos verdes tranquilos que habitavam sua personalidade. As garras negras e afiadas cediam às mãos humanóides. Sua fisionomia normal retrocedia de maneira vagarosa, mas bastante efetiva para que se fosse notada.

 

Lançou seu último olhar para a pessoa que lhe roubou atenção por tanto, tanto tempo: Inoue Orihime.

 

As palavras abraçaram-se para formar a despedida e a mão direita levantou-se buscando as da garota, forçando-o a lembrar de todos os momentos convividos com ela: A troca de olhares pela primeira vez, a indagação ameaçadora expandidas por seus lábios, o toque de suas mãos a lhe entregarem uma pulseira, a bofetada sutil em seu rosto pálido, a curta conversa filosófica de perspectivas e o agora:

 

- Você tem medo de mim, mulher?

 

Espontaneamente, Inoue recordou-se da última vez em que haviam conversado. Foi impossível negar o quão semelhante aquela pergunta lhe parecia ser, assim como foi indecifrável a mistura de diversos sentimentos que estimulavam seu sangue a correr mais ligeiramente dentro de suas veias. O par de olhos encontrou-se com os dele e seus lábios entreabriram-se lentamente.

 

- Não tenho medo. - Respondendo, por fim.

 

O Espada calou-se por um momento. No mesmo instante em que as mãos dela tentaram alcançar as suas. Mas algo em sua cabeça processava: Assim como a pergunta, a resposta também soara repetitiva. Então era assim. Era assim que ela continuaria a prosseguir sua vida. Riu para si diante do comportamento gentil de Inoue.

 

- Entendo...

 

Que irônico, como poderia ele fugir de tamanha piedade, daquela que também lhe servia como exemplo? Um enigma a morrer consigo. Mas nada era tão notável e puro em suas memórias quanto aquelas tais sobrancelhas franzidas, as mesmas que estampavam a face de Inoue agora, ao esticar seus finos dedos para ele. Então, era mesmo um nítido sinal de Compaixão.

 

Ichigo estava certo. Não era o Shinigami quem estava se tornando mais Hollow.

 

Era o Hollow quem estava se tornando mais humano.

 

-ooo-

 

I'll miss the winter

Eu sentirei falta do inverno,

A world of fragile things

Um mundo de coisas frágeis.

Look for me in the white forest hiding in a hollow tree (come find me)

Escondida em uma árvore oca (venha me encontrar)

I know you hear me

Eu sei que você me ouve

I can taste it in your tears

Posso provar isto em suas lágrimas.

 

Por momentos, jurou ouvi-lo ao pé dos ouvidos. Apurou a audição: Recordava-se daquela parte, sim. A melodia parecia despertar as lembranças mortas. Era em cada palavra da melodia que lhe enxugavam as lágrimas invisíveis da alma. Era no piano que aliviava a sua dor. A música a libertava de todos os erros injustificáveis. Lágrimas...! Um segredo que levaria para o túmulo.

 

Ninguém compreenderia o porquê. Ninguém pararia para pensar naquele ocorrido com carinho. Exceto ela.

 

Inclinou a cabeça para espreitar o que ocorria no lado de fora, ao voltar de sua subconsciência metódica: Sorrisos sinceros eram trocados a cada abraço banhado de votos de prosperidade para os recém casados. Um ramo de rosas brancas era pendido por uma figura jovial, trajada em um vestido de mesma cor, com um belo sorriso que desenhava em seu rosto levemente maquiado ao passar entre as mesas dos convidados.

 

Retirou bruscamente o olhar enquanto os dedos buscavam tatear as teclas do piano sem mais simetria entre os sons aleatórios que propagavam na cúpula. E pensar que poderia estar lá os felicitando como qualquer outro. Mas não estava. Não queria.

 

Os cabelos lhe vieram à face como cortina enquanto suas mãos batiam contra o velho instrumento, numa tentativa de violentar sua depressão crescente. De olhos fechados, murmurava para si mesma, frases de um passado próximo. A simples lembrança daquela voz fazia os pêlos dos braços eriçarem, cravando-lhe um calafrio indomável na espinha. Como poderia Inoue escapar de tamanho fantasma?

 

Holding my last breath

Safe inside myself

Are all my thoughts of you

 

Sweet raptured light

-ooo-

 

Aquela batalha parecia não ter vencedor.

 

Porém, o que havia de mais estranho não era isso. O fato de que toda a Humanidade estava à mercê da vitória de um dos lados, sem qualquer consentimento, lhe causava pânico. Fazia-lhe suar frio, enlaçar os dedos maltratados um aos outros e abrir os lábios ressecados para pronunciar orações por aqueles que ainda podiam interferir naquele destino maldito.

 

Eram vidas postas em jogo, milhares de almas acorrentadas a um só destino sem que nada pudessem decidir ou fazer. Fantoches, brinquedos descartáveis.

 

Se perdessem, não só suas vidas, mas milhares dessas almas vitimadas entrariam em colapso e mais da metade se tornaria Hollow, enquanto que a outra serviria para saciar a gula de tais monstros espirituais.

 

O plano terrestre deixaria de ser chamado de Terra, assim como o espiritual de Sociedade das Almas. Potências mundiais seriam reduzidas a pó assim como o sangue derramado dos shinigamis declinados aos pés de Aizen. Dois mundos na palma das mãos de um só homem.

 

Aizen seria um deus. Não, na realidade, se tornaria Deus.

 

Mas até quando duraria? Até quando se manteria estável um ciclo forçado, uma variante desequilibrada consequente por uma obsessão crescente ao poderio?

 

Era uma ideologia insana a ser reduzida a cinzas. E justamente por isso que Ichigo lutava. Era um justiceiro,um homem que não distinguia a quem salvar, mas que socorria por seu senso de magistratura.

Um estado de consciência inflexível e imparcial que o levava a travar lutas contra seres com maior força e habilidade.

 

Sua luta contra Ulquiorra fora assim, tal como contra Grimmjow e tantos outros rivais julgados como barreiras inatingíveis, mas que agora caqueticamente desmoronavam sob o silencioso cântico das areias brancas que esbarravam em seus frios corpos e lhes roubavam a identidade.

 

Tudo lhe soava tão irônico: Fora ao Hueco Mundo no intuito de salvar a vida de Ichigo, mas no instante em que as mãos de Ulquiorra dispersaram-se entre seus dedos, o amor se extinguiu entre os tenuíssimos glóbulos que se elevavam e desapareciam na atmosfera seca e fria.

 

Depois de ser salva por Ichigo, havia sido deixada para trás. Novamente. Ele havia dado as costas com tanta simplicidade que só então, naquele instante, percebera o quanto era fútil. Talvez aquele "Hime" desdenhado tantas e tantas vezes por si ao final do seu nome lhe incorporasse a personalidade: Ela era, justamente, isso. Uma garota tão bela e inocente quanto a realeza juvenil dos contos infantis. Só esqueceram de lhe avisar de que seu cavalo havia morrido na estrada da vida junto ao final feliz de suas fantasias.

 

Porque a ele, Ichigo Kurosaki, não interessava a quem salvar, se fosse um dos seus daria sua vida sem pensar duas vezes. Porque assim era ele. Inoue Orihime não era especial e nem se poderia dizer companheira de guerra, já que na maioria das vezes virava enfeite descartável nas cenas de batalha. Vergonhosa verdade e uma enorme tristeza para que ainda fosse capaz de esconder no canto de cada sorriso forçado ou de cada olhar transparecido pela mágoa contínua.

 

E não havia nada mais angustiante do que ser inoperante a uma realidade que poderia ter revertido: Se não houvesse temido batalhas, se aprofundado intensamente a desvendar seus poderes e se de seus lábios um simplório "Eu rejeito" fosse murmurado para as presilhas que lhe sustentavam as madeixas frontais, estaria Ulquiorra ainda vivo. Sim, estaria.

 

Quando voltou a Karakura, encontrou-a despedaçada. Edifícios desmoronados, árvores congeladas, objetos queimados e meia dúzia de corpos inoperantes entre a fumaça e a poeira que grudavam nos pulmões ao buscar oxigênio. Mas, ali, abraçados embaixo dos escombros, duas pessoas chamavam-lhe atenção. Aproximou-se devagar, bastante receosa. E quanto mais diminuía a distância, menor ficava a temperatura, podia sentir ao julgar pelos pés frios. Os poros de seus braços contraíam-se, deixando-a com os pêlos eriçados. As pontas dos dedos retiraram algumas pedras que atrapalhavam sua visão a captar a imagem. A musculatura de seu rosto contraiu assim como seus olhos a estreitar diante da cena:

 

Um rapaz de cabelos brancos mantinha seus olhos fixados em uma jovem que sangrava em seu colo. Em seus dedos, cacos de gelo diluíam o sangue que propendia de seus braços, despojando o branco puro de seu traje que lhe concebia o posto de capitão. Encarou-o tentando decifrá-lo. E pôde constar que aqueles olhos abertos, de coloração tão exótica e brilho ofusco, eram apenas um reflexo do subconsciente numa tentativa frustrante de proteger aquela menina. Ele, na verdade, estava deploravelmente desmaiado, sobrevivendo por um fio apenas porque aquela morena lhe era importante.

 

- Hitsugaya-taichou! Hinamori-fukutaichou...!- A voz de Rukia transparecia transtorno. Um encontro entre a desordem e o descontrole que a fazia sibilar suspiros atípicos e pungia sua garganta arranhada.

 

Inoue Orihime pestanejou. Seriam eles mais umas das vítimas de Aizen? Poderia aquele Shinigami ter o poder de não apenas iludir, mas de também formar desencontros, mágoa e dor? A resposta era óbvia.

 

Ponderou por instantes, cada curva que moldava um corpo ao outro, ambas as expressões de angústia já endurecidas na musculatura facial, os fios castanhos a sair do coque frouxo para encontrar as madeixas brancas do outro e as mãos que sustentavam todo aquele corpo frágil e debilitado num abraço que declinava mundo abaixo e os deixava ali, sozinhos, reconstruindo um sentimento há muito tempo perdido.

 

Ajoelhou-se tentando separá-los. Por um momento, viu que era inútil. Não havia força capaz de enfraquecer as mãos de Hitsugaya do abraço que protegia Hinamori. Mesmo assim, tentou outra vez, outra, outra e mais outra. Bufou cansada. Pôs-se a afundar sua vontade vã de separá-los, porque, definitivamente, nada os separaria.

 

Um murmúrio fraco, irregular e maltratado se fez audível no ambiente caótico. Circundou-os através de seu escudo. Os curaria do jeito em que estavam posicionados. Acomodou-se no solo pedregoso, não deixando de manter o olhar a observá-los. Era bonito ver duas pessoas tão unidas emocionalmente daquela maneira. Num lapso de consciência, duas distinções lhe roubaram atenção: A de herói pessoal e a de herói justiceiro. Talvez fosse essa a linha tênue que distinguia Kurosaki Ichigo e Hitsugaya Toushirou.

 

A diferença entre Ichigo para aquele pequeno capitão era que para o Substituto de Shinigami não havia sentimentos em jogo. Havia vidas. Havia rivais a se derrotar. Apenas isso. Este era o típico herói justiceiro.

 

Para Hitsugaya, havia amor. Sim, amor. O sentimento fora notável apenas vendo o abraço que circundava e aproximava o corpo de Hinamori ao seu. Sem este sentimento, protege por ordens superiores. E mesmo assim, a proteção não é tão eficaz quando comparado a proteção oferecida à pessoa amada. Um verdadeiro herói pessoal. Um herói que empunha em sua espada sentimentos, ainda que a camufle com a justificativa de 'senso de responsabilidade'.

 

Naquele instante, não deixou de se perguntar se aquele escudo que incorporava forma espiral, solidificação impenetrável e luminosidade amarelo-ouro também podia curar feridas do coração.

 

Por detrás de Orihime, os olhos da Kuchiki fixaram-se nela, com a certeza de ter conseguido compenetrar em seus pensamentos:

 

- Eles ficarão bem, são pessoas muito fortes. – Disparou firmemente pondo a mão direita no ombro da amiga. - Conhecendo eles, logo ouviremos um "Shirou-chan" sair dos lábios de Hinamori-fukutaichou para cutucar a timidez e o âmago do Hitsugaya-taichou, que esbravejará compulsivamente! – Dessa vez, Rukia riu para si. Um sorriso discreto, morrendo milésimos de segundo após sua nascença.

 

- E quanto a mim...? – As mãos tremeram-lhe enquanto erguidas para a contínua energia espiritual fluir de suas mãos e fortificar a camada temporal que rodeava os corpos juvenis. Mexeu os ombros para fugir do toque daquela mão gentil. – Será que sou tão insignificante assim? Um peso, um fardo a ser constantemente iludido por todos e descartado perante as adversidades?

 

- Do que esta falando?

 

- De sentimentos, Rukia. Sentimentos. – Sublinhou. – Acaso já pensou no que eu senti ao tentar tocar naquelas mãos com a ponta dos dedos, apavorada, temerosa por ver a morte circundá-lo? Você não compreenderia. Não compreenderia um terço do que senti.

 

O olhar azulado caiu para o chão. A boca entreaberta, o coração disparado e o sangue a correr dentro das veias arroxeadas já a beira de uma ebulição, tentavam negar o que havia escutado. Aquelas não eram palavras de Inoue. ...Ou não deveriam ser.

 

- Você deve estar traumatizada com tudo o que houve. Eu sinto muito... – Dulcificou a voz, relaxou os ombros tensos e prosseguiu calmamente. - Se soubéssemos dos planos de Aizen, jamais teríamos deixado você passar pela Senkaimon³ com apenas meia dúzia de guardas.

 

"Com apenas meia dúzia de guardas?"- Foi o que a dona dos Shun-Shun-Rikka quis constatar, mas manteve-se calada. Uma insinuação cautelosa que lhe serviu para confirmar o quanto era julgada fraca. Engoliu algumas palavras dispostas a saltitarem de sua garganta para massacrar a mulher que lhe observava ao lado. O seu coração já não bateria da mesma maneira, assim como suas atitudes.

 

- Você não compreenderia. – Improvisou num tom inaudível.

 

A troca de olhares ocorrera de forma impensada. Mantiveram-se assim, como se a quem quisesse expandir território, furtar pensamentos e gastar saliva para umedecer a língua que pedia passagem para formar frases. A pergunta engasgada por parte de Rukia, feita sob medida para atravessar os ouvidos da outra, tentava a todo custo afagar a sobriedade de sua dona, entorpecendo por instantes a consciência, aguçando a curiosidade maldosa:

 

- Desde quando?

 

- Desde quando o que?

 

- Desde quando o seu coração nos deixou?

 

-Continua-

 


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Notas finais do capítulo

Olá pessoal!

Trago-lhes mais uma de minhas Ulqui x Hime, mas esta, diferentemente das duas anteriores, foi planejada desde abril do ano passado, com o intuito de mostrar minhas teorias sobre o que poderia ocorrer com o destino dessa tão delicada personagem, Inoue Orihime.

Esperei a atualização do mangá semana pós outra até alcançar uma idéia sólida, fixa. Analisei cena por cena, fala por fala. Sim, trabalhão! Mas talvez, ideia "sólida" não seja a palavra mais justa para isso, pois o mangá nem terminou, então as teorias vem e vão num sopro, são inconstantes. Enfim, planejei tudo no ano passado conforme o 'andar da carruagem' de Bleach e só este ano, de março à junho, escrevi a fic. O resultado esta aí, no texto enorme que você, leitor, teve coragem de ler.

A princípio era para ser uma One-shot, mas a fic está ocupando trinta páginas do Office e ela tende a aumentar. Pedi opinião da experiente Kira 'Larry' e, por fim, seguindo o conselho, resolvi dividir esta fic em duas ou três partes. Com exata uma semana para que eu entre de férias, com certeza a completarei até o dia dezessete de julho.

Por favor, reviews. Assim como uma lâmina sem ódio é uma águia sem asas, um escritor sem ânimo é um artista sem tela.



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