The Devil Next Door escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 22
Capítulo 21 (Parte 1/2)




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          Kaoru suspirou pesadamente, apoiando o queixo na mão esquerda espalmada e olhando pela janela. Do lado de fora, na rua, uma senhora passeava calmamente com seu cachorro, duas meninas pareciam voltar da escola para suas casas e um casal de namorados andava devagar, conversando entre si. Observando toda aquela normalidade da sua cadeira no estúdio que havia finalmente montado dentro de casa, o publicitário se descobriu estranhamente... Deslocado. De alguma forma, aquela calma não era mais parte do mundo que ele conhecia como seu.
          Espreguiçando-se no seu assento e deixando rolar pela mesa um lápis que ele utilizara até então para traçar um desenho, o morador do 304 deu uma boa olhada no cômodo que ocupava: todas as caixas que haviam ficado esquecidas e empilhadas ali tinham desaparecido, seu conteúdo devidamente guardado nos armários pelo apartamento. Uma mesa ampla e espaçosa, parecida com a que muitos arquitetos utilizavam na hora de trabalhar, ocupava um dos cantos do quarto transformado, ficando próxima da janela e recebendo a luz da tarde.
          Além da confortável cadeira que ficava em frente à sua mesa de trabalho, Kaoru havia montado uma estante com os livros, revistas e publicações que ele havia acumulado durante os anos, todos referentes à sua área de atuação. Pela parede, posters de alguns filmes e gravuras interessantes que ele havia ganhado de presente de parentes ou amigos quebravam a monotonia do branco. Um cavalete de pintura, um tapete multi-colorido e um mini-sofá com almofadas macias e confortáveis completavam o conjunto de mobília do cômodo.
          O homem de cabelos roxos suspirou mais uma vez, colocando sua atenção nas três figuras que estavam sobre a mesa. Eram apenas esboços ainda, mas Kaoru nunca tinha se sentido tão confiante como naquele momento; de alguma forma, ele sabia que estava no caminho certo e que o trabalho para Hideto seria entregue a tempo, para felicidade de Yoshiki e permanência da sua integridade física, talvez. Apesar da trilogia do cineasta lidar inicialmente apenas com cores e sentimentos, Kaoru havia tomado a liberdade de associar esses dois temas a três cenários distintos, porém interligados, de forma a satisfazer a última demanda de Hideto.
          Ele quase se bateu por não ter pensado naquilo antes: para representar a tranqüilidade e manter os tons de azul que ele havia utilizado antes, ele escolheu o paraíso, personificado em uma garota relativamente jovem, com uma expressão de felicidade serena no rosto e sentada em um jardim florido; o publicitário ainda precisava terminar o fundo e caprichar mais nos animais e plantas que ele ainda estava por inserir na gravura, mas ele definitivamente havia gostado da garota, que passava a sensação de ser gentil e bondosa, além de alegre. A figura ficaria em tons de azul, verde, violeta e branco.
          Depois veio o desenho de um garotinho, mais ou menos de dez anos e vestindo um casaco com capuz cinza e uma calça jeans comum, desbotada. Tratava-se da indiferença, apatia e da indecisão, emoções que ele havia ligado a diferentes tipos de cinza e relacionado à dimensão terrena. O menino estava de costas para quem olhava o desenho e tinha uma mão coçando a cabeça em um característico gesto de dúvida, observando intensamente dois elevadores: um deles tinha o sinalizador para baixo, o outro, a setinha para cima. O homem de cabelos roxos sinceramente esperava que a sua representação do livre-arbítrio humano fosse convincente o bastante para Hideto e fizesse a ligação entre os cartazes.
          O último dos desenhos havia sido o poster sobre a malícia, a sensualidade e a raiva: em resumo, sobre o inferno. Nele, o fundo era composto pelo balcão de um bar circundado pelos altos bancos que normalmente faziam parte de qualquer ambiente como aquele. A iluminação era indireta e colocava a figura de um homem em destaque: quase de perfil, ele vestia um terno claro aberto, com os primeiros botões da camisa desfeitos mas sem revelar muita coisa. Um chapéu, que seria da mesma cor da roupa que o desenho trajava, cobria os olhos da figura e fazia com que as mechas lisas do seu cabelo ficassem ao lado do seu rosto, não cobrindo, no entanto, a leve curva dos lábios do homem que traduzia as promessas mais libidinosas em que qualquer um conseguisse pensar, futuramente sendo colorido com vermelho, laranja, preto e alguns tons de bege.
          De repente, o publicitário observou um pequeno detalhe na sua última gravura: aquele perfil não era de um rosto imaginado pela sua mente; ele pertencia a Ando Daisuke, o homem que havia literalmente desaparecido da sua vida nas últimas duas semanas, três dias e aproximadamente dezessete horas.
          Não que Kaoru estivesse contando, claro.

          Batendo o pé direito contra o chão e suspirando irritado, o publicitário ergueu o braço que não carregava os seus projetos para os cartazes dos filmes de Hideto e observou o seu relógio: seis horas e quarenta e dois minutos. Seu horário normal de serviço já havia acabado há mais de meia hora e ele ainda tinha muito a fazer para terminar seu trabalho especial para o cineasta.
          Kaoru poderia já estar retocando as imagens no computador se as duas funcionárias que estavam na sua frente fossem competentes. O homem de cabelos roxos estava na gráfica da agência de publicidade, esperando na fila para ser atendido e justamente atrás de duas mulheres que haviam chegado com um pedido imenso de cópias coloridas, encadernação e plotagem do que pelo visto era o trabalho de um mês inteiro que precisava ser entregue no dia seguinte.
          Sem máquinas disponíveis para atender Kaoru, só restava a espera interminável na companhia de todas as fofocas dos andares da empresa. O publicitário podia jurar que cada minuto estava demorando outros vinte para passar ou algo do tipo.
          - E então eu disse para a Hino-san não se declarar, sabe?
          - E ela seguiu seu conselho?
          - Ela disse que eu estava tentando impedi-la! - uma das garotas da frente, uma loira tingida, parecia ofendida e tinha a mão espalmada sobre seu terninho violeta - Imagine isso, Sayuri-chan! Eu tentando impendir alguém de se declarar para o Ando-san...
          Ando? As orelhas de Kaoru imediatamente sintonizaram a conversa.
           A outra funcionária, uma morena um pouco mais baixa que a colega e com um esmalte laranja tão vivo nas mãos que fazia os olhos do publicitário doerem, replicou:
          - Mako-chan, acho que todo mundo do departamento ainda lembra da sua surpresa frustrada para Ando-san e como ele...
          - Sayuri! De que lado você está?
          - Mako-chan. - a morena colocou as mãos na cintura - Você tentou sim se declarar para Ando-san na festa de aniversário dele ano passado e a Hino-san deve ter visto.
          - Não era uma declaração, era um presente de aniversário!
          - Seu presente tinha um cartão em forma de coração, Mako. Sem contar que eu sei que eram chocolates recheados com morango e chantilly, os preferidos do Ando-san.
          Chocolate, morango e chantilly? Isso soava terrivelmente familiar.
          - Sayuri-chan, era tão óbvio assim? - a loira estava visivelmente ruborizada, encarando o chão meio sujo da gráfica antes de fitar a colega de novo.
          - Era, Mako-chan. - a outra concordou lentamente com a cabeça, ajeitando a gola da cacharrel que usava e quase cegando Kaoru com seu esmalte neon no processo - Hino-san tem todo o direito de pensar isso, no final das contas.
          - Acho que não há argumento contra isso... Mas aposto que ela não vai conseguir nada! - o veneno na voz da primeira funcionária era palpável - Até porque todas nós sabemos que Ando-san anda ignorando qualquer tentativa das garotas do departamento há meses.
          Meses? Exatamente quantos meses?
          - Isso é verdade... - a morena respondeu pensativa - Bom, pelo menos ele é educado quando recusa os presentes. Aliás, o quê Hino-san vai dar para ele?
          - Hmmm. Eu acho que é a camisa de um time de basquete americano. Eu não sei se é verdade, mas me contaram que ele jogava muito bem quando estava na escola e parece que é a equipe favorita dele ou alguma coisa assim.
          Medalhas e troféus que ficavam na sala da mãe de Die confirmavam aquele rumor.
          - Deve ter custado caro, então!
          - Meus chocolates custaram tão caro quanto! Espero que ele recuse o presente dela também. - a expressão da garota loira era um misto de inveja com frustração, desanuviando-se apenas quando o único empregado que se encontrava na gráfica àquela hora voltou com os pedidos das duas. Entregando todo o material por cima do balcão e parecendo prestes a deslizar para o chão e dormir de tanto cansaço, ele deliberadamente ignorou Kaoru na esperança de que o homem de cabelos roxos continuasse sem se mover e sem lhe passar serviço.
          Dois minutos depois, o publicitário finalmente saiu do seu transe, cobriu a distância que o separava do atendente que já ressonava e cutucou-o com cuidado, tentando acordar o garoto.
          - Nós já fechamos. - ele murmurou, erguendo a cabeça apenas para visualizar o intruso ofensivo que o havia despertado - Abrimos amanhã a partir das dez.
          - Acredite, eu já queria estar em casa também. - Kaoru acrescentou com um suspiro - Mas isto precisa passar pelo scanner para ser colorido, retocado e editado no computador, e as folhas são muito grandes para serem scanneadas lá em cima.
          - Abrimos amanhã às...
          - São do projeto de Matsumoto Hideto.
          O jovem pulou da cadeira, arregalando os olhos como pratos. Inclinando-se para a frente tentando ler o crachá do publicitário, ele se retirou do lugar que ocupava com passos rápidos para quem dormia há segundos atrás e foi conferir um comunicado que se encontrava preso à parede. Com um barulho de surpresa, ele voltou para o balcão e estendeu os braços, esperando que os cartazes lhe fossem transferidos.
          - Pelo menos vai ser rápido. Espere aqui.
          Assentindo com a cabeça, o homem de cabelos roxos se encostou numa parede ali perto, notando pela primeira vez a presença de um galão d'água com um suporte de copos logo ao lado. Aproveitando para se refrescar um pouco do calor que ele não havia sentido até aquele instante no ambiente fechado da gráfica, ele parou para pensar na conversa que tinha entreouvido meio sem querer entre as funcionárias. Fazia três semanas e quatro horas desde que ele havia visto o ruivo pela última vez e ele não pretendia vê-lo tão cedo novamente. Sendo assim, restavam apenas meios extra-oficiais de confirmar as informações obtidas naquela espera na gráfica.
          - Pronto, Niikura-san. Aqui estão seus projetos. Enviei as versões digitalizadas para o seu e-mail.
          - Ah, arigatou. Desculpe o horário.
          - Nah. - o outro abanou a mão - Eu não queria estar na sua pele, trabalhando diretamente para Hayashi-sama. Torça para ficar com a sua cabeça onde está.
          Erguendo uma sobrancelha e não se surpreendendo muito quando viu que o jovem havia apoiado a cabeça contra o móvel de um jeito que indicava que ele voltaria a dormir, Kaoru se dirigiu para os elevadores e de volta para a sua mesa, onde esperava progredir mais ainda nos cartazes. O andar estava lembrando o cenário de um filme de terror, tão deserto àquela hora que o publicitário olhou algumas vezes por cima dos ombros apenas para se certificar de que não havia ninguém caminhando silenciosamente nas suas sombras.
          Sentando-se na sua cadeira de uma forma não muito graciosa devido ao seu cansaço físico e mental, Kaoru teclava rapidamente a senha para destravar a sua área de trabalho quando um borrão azul surgiu do seu lado, apoiando-se no seu ombro esquerdo.
          O susto do homem de cabelos roxos praticamente mandou-o para o chão, quase despencando da sua cadeira de rodinhas. Piscando sem entender nada, Toshiya apenas observava o amigo com um olhar de profundo estranhamento.
          - Kao-kun, esse trabalho extra para o Matsumoto-san está te deixando esquisito.
          - Não é bem o trabalho... - ele replicou com dentes cerrados, não desgrudando os olhos do colega até ter certeza de que ele havia retornado para o seu lugar do outro lado da divisória. Respirando profundamente, Kaoru abriu seu editor de imagens no computador apenas para ouvir a voz do amigo de novo:
          - Vai fazer hora extra hoje?
          - As minhas horas extras começaram depois das seis, Totchi.
          - Ah, verdade.
          - E você? Vai ficar também? - o outro inquiriu enquanto salvava as imagens que haviam sido enviadas para o seu e-mail conforme combinado. A resolução estava boa, pelo menos.
          - Na verdade, estou esperando o Shin-chan. Ele e o Yoshiki estão numa reunião lá em cima... Quando o Shin-chan voltar, nós vamos ao cinema.
          - Mas amanhã é quinta-feira e tem trabalho normalmente, Totchi.
          - Eu sei, mas todo dia é dia de ver Jackie Chan!
          O mais velho dos dois ergueu uma sobrancelha:
          - Você e o Shin-chan gostam dele?
          - O Shin-chan gosta de todo mundo. - o outro respondeu com a maior naturalidade, se debruçando na divisória de novo; ele provavelmente não tinha nenhuma tarefa pendente e conversar com seu colega parecia o modo ideal de passar o tempo - E eu adoro o Jackie Chan! Você não acha os filmes dele fantásticos?
          - Eu... Acho que falta alguma coisa neles, Totchi. - o outro replicou, começando a colorir digitalmente o cartaz que trazia o desenho de Die. Instintivamente, o publicitário havia começado pelo vermelho indefectível do ex-vizinho.
          - Alguma coisa? Tipo... Dublês? Porque você sabe, o Jackie Chan faz todas as cenas dele!
          - Eu me referia a coisas como enredo e atuação do...
          - Kao-kun! Você desenhou o Die-kun?
          Todo o sangue que corria no corpo do mais velho dos dois homens ali presentes parou de circular naquele instante.
          - Ahh, deixa eu ver! - a criatura de cabelos azuis deu a volta correndo na mesa, parando do lado do amigo como havia feito momentos antes - Wah, Kao-kun! Está bonito... Eu não sabia que você desenhava tão bem.
          Kaoru umedeceu os lábios secos, repentinamente sem palavras. Na tela do seu computador, a versão desenhada de Ando Daisuke sorria com uma malícia inegável, apesar de manter os olhos cobertos pelo seu chapéu elegante. Toshiya, por sua vez, comentava todos os detalhes que ele havia notado na figura, sem perceber que o seu colega parecia perdido na imagem que enfeitava seu monitor.
          -...sorriso. Definitivamente o sorriso.
          - Me desculpe, Totchi. O quê tem o sorriso?
          - O sorriso está perfeito. Digo, o seu desenho está fantástico, mas é particularmente difícil de captar esse modo como o Die-kun sorri, sabe? Na verdade, eu acho que eu nunca vi nenhuma foto dele assim, porque ele normalmente posa para elas e muda o rosto...
          O pequeno monólogo do mais novo dos dois únicos ocupantes daquele piso do prédio foi interrompido pelo seu telefone tocando. Correndo com passos lépidos e cantarolando animadamente até pegar o aparelho que vibrava na sua mesa, ele atendeu o mesmo prontamente:
          - Totchi desu. Aa, Hino-chan!
          Kaoru involuntariamente parou de colorir para prestar atenção na conversa do outro homem, não ignorando o fato de que Toshiya não atendia as ligações do trabalho falando apenas seu sobrenome, como era de praxe; provavelmente ninguém no prédio deveria saber quem era "Hara Toshimasa".
          - Hmmm, entendo. Boa sorte, ne! Me conte depois como foi, tudo bem? Ja ne!
          Desligando o telefone e voltando à música que estivera cantando antes, ele se contentou em assobiar a melodia enquanto retornava para o lado da divisória que pertencia a Kaoru. Puxando a cadeira desocupada de outro funcionário, ele se sentou próximo do colega e passou a analisar os cartazes, desenrolando os mesmos da forma cilíndrica em que eles haviam sido guardados.
          - Totchi.
          - Hmmm?
          - Essa Hino-san que ligou para você...
          - Hai? - o outro inclinou a cabeça e pousou os posters, parecendo não entender onde o amigo queria chegar.
          - Por algum acaso ela vai... Se declarar para alguém hoje?
          Um sorriso brilhante se abriu no rosto de Toshiya, que bateu palmas animadamente antes de procurar alguma coisa em seus bolsos. Tirando um bloquinho de notas meio amassado e que com certeza já havia visto dias melhores, ele virou páginas e páginas do que pareciam nomes riscados até chegar numa folha que tinha marcado o nome da garota e o presente que ela estava prestes a entregar segundo a conversa de Mako-chan e Sayuri-chan mais cedo.
          - Aqui! Quer participar do bolão, Kao-kun?
          - Que bolão?
          - Como assim você não sabe do bolão? - o homem de cabelos azuis fez um som de reprovação com a boca enquanto se esticava sobre a mesa do colega, agarrando uma caneta particularmente cara que Kaoru havia ganhado de sua mãe há anos. Ignorando o olhar homicida de Kaoru, Toshiya empinou o objeto na sua mão como uma das antigas varetas que os professores usavam em sala de aula, assumindo uma postura imponente:
          - Die-kun sempre recebeu presentes das garotas do escritório, todos os anos e todos os dias. Ou quase isso. - ele acrescentou depois de pensar um pouco - De qualquer forma, depois do aniversário dele no ano passado, ele parou. Agora ele recusa toda e qualquer lembrancinha, presente, cartão, chocolate...
          - O... Aniversário dele?
          Kaoru não sabia que seu corpo podia assumir uma rigidez tão potente quanto o rigor mortis.
          - Hai! - o outro assentiu com a cabeça - Na primeira vez que ele não aceitou uma caixa de bombons da Chiharu-chan, ele disse que havia iniciado um novo ciclo na vida dele... Alguma coisa sobre não querer enganar nenhuma delas. Disse que os presentes deveriam ser entregues para quem gostasse delas de verdade e tudo mais.
          Engolir era uma atividade que repentinamente requeria muito, muito esforço por parte do publicitário.
          - Daí... As meninas não se conformaram. Elas continuam tentando, claro, e como ele sempre recusa no final, as meninas que já foram rejeitadas e eu criamos um bolão. Quem acertar quanto tempo Die-kun vai demorar para oficialmente recusar o presente ganha o presente abandonado!
          O sorriso empolgado que o outro homem tinha no rosto era ligeiramente perturbador, mas não mais do que o caderninho que ele mantinha com o quê Kaoru agora sabia serem os nomes e presentes anteriormente ofertados a Die. Vendo que o amigo mantinha o foco nas suas anotações, Toshiya continuou a explicação:
          - É o controle oficial das apostas. Como sou eu que normalmente dou os conselhos para os presentes e depois consolo as meninas, eu fui eleito com noventa e sete por cento dos votos e virei o presidente da comissão do bolão. O que está aqui... - o bonito publicitário bateu com a mão no bloquinho - ...É sagrado! E aí, Kaoru? Qual a sua aposta? Eu coloquei um dia porque hoje é quarta e seria chato o Die-kun recusar logo na sexta-feira, mas as meninas estão apostando no almoço de sexta, no jantar de sexta e na segunda. Só a Sayuri-chan que colocou hoje à noite. - ele pareceu estranhar a opção da funcionária, mas não comentou nada.
          O telefone de Toshiya tocou de novo e o homem de cabelos azuis novamente fez o percurso até a sua mesa, atendendo a ligação e parecendo muito animado com a notícia do outro lado: era Shinya, que acabara de sair da reunião. Os dois combinaram de se encontrarem na garagem direto e o mais novo dos dois publicitários começou a fechar sua pasta.
          - Ne, Kao-kun, o Shin-chan está pronto então eu já vou indo. Se você pensar em algum horário para a sua aposta, me fale! Mas pode ser que tenha de dividir o prêmio com alguém se outra pessoa acertar com você no mesmo horário... - ele acrescentou, pegando o casaco que havia ficado em um suporte próprio para ternos a poucos passos da sua escrivaninha - Se bem que dessa vez é uma camisa de basquete, então não sei se vai dar para dividir. Em último caso a gente pode vender e distribuir o dinheiro ou cortar e fazer pano de chão. Me ligue então, Kao-kun! Bom trabalho!
          E praticamente saltitando, Toshiya se foi na direção dos elevadores, cantando o que a mente de Kaoru registrou vagamente como sendo a música tema de A Noviça Rebelde.

          Três semanas, cinco dias e dezenove horas separavam Kaoru da última vez que ele vira o ruivo. Os dados, obviamente, eram fruto de uma estimativa puramente informal.
          O publicitário havia acabado de entregar as versões finais dos seus posters para os filmes de Hideto, sentindo um alívio equivalente ao que Atlas poderia ter experienciado se tivessem retirado o mundo das suas costas em algum momento. O homem de cabelos roxos teve melhor sorte que a figura mitológica no final, mas a título de garantia o autor dos cartazes havia feito uma rápida visita ao templo mais próximo da sua casa, pedindo para manter sua cabeça ligada ao pescoço, seu emprego no mesmo lugar e a manutenção da desnecessidade de elaborar um testamento antes dos cinqüenta anos, no mínimo.
          Kaoru voltava distraído pela calçada quando ouviu seu nome sendo chamado de um pequeno e charmoso café na esquina. Dando meia-volta no próprio eixo, ele encontrou o rosto sorridente de Ayame que acenava para ele, convidando-o para chegar mais perto.
          - Ayame-san, konnichiwa.
          - Konnichiwa, Kaoru-san! Gostaria de se sentar um pouco, se não estiver ocupado?
          Balançando a cabeça afirmativamente, o publicitário arrastou a cadeira de vime que estava do lado oposto ocupado pela garota na mesa, sentando-se confortavelmente. Colocando as mãos sobre o colo, ele sorriu:
          - Acabei de entregar meu trabalho das últimas semanas... Estava voltando do templo, na verdade.
          - Ah, verdade? Eu estive lá no começo da semana, para rezar pela minha família e amigos. Quer tomar alguma coisa, Kaoru-san?
          O publicitário pediu permissão para pegar o cardápio, abrindo o mesmo e procurando por alguma coisa que lhe despertasse interesse no menu. Encontrando um café feito com raspas de chocolate, chantilly e canela, ele optou por pedir um desses e fazer companhia por mais tempo à Ayame, que chegava agora na metade de um muffin recheado com blueberry.
          - Faz bastante tempo que não a vejo, Ayame-san.
          - É a faculdade. - ela deixou um suspiro cansado escapar dos seus lábios, uma das duas tranças em que seu cabelo se encontrava preso caindo para a frente do seu ombro conforme ela mudou de posição - Estou adorando o curso, mas os professores são bem exigentes.
          - Está fazendo o quê?
          - Jornalismo!
          - Uma bela carreira. - o publicitário concordou com a cabeça, observando seu café chegar numa bandeja equilibrada com destreza por uma garçonete. A garota depositou a xícara fumegante com cuidado e saiu logo em seguida, deixando os amigos à sós - Muito trabalho de campo, porém.
          - Exatamente. - ela deu uma mordida a mais no muffin, engolindo antes de reatar a conversa - Nunca pensei que fosse carregar tanto equipamento de filmagem.
           - Haverá alguém para carregar tudo para você no futuro, pelo menos.
          - Ah, é esse pensamento que me dá forças!
          Os dois riram por alguns segundos antes da garota aparentemente se lembrar de alguma coisa. Sinalizando com a mão esquerda para que o seu convidado pela tarde esperasse um momento, Ayame pegou a bolsa e abriu o zíper, procurando alguma coisa no interior da mesma quando finalmente retirou a carteira e, de um bolso da mesma, um papel dobrado.
          - Eu sei que isso não é da minha conta, Kaoru-san. Mas eu... Prometi que entregaria quando tivesse a oportunidade. Pode jogar fora, queimar, deixar aqui na mesa... Mas, onegai, aceite pelo momento.
          Curioso, o homem de cabelos roxos pegou o bilhete, desdobrando-o duas vezes para descobrir que se tratava do atual endereço do ruivo. O publicitário notou que era em um flat, não muito distante do local onde ambos trabalhavam, porém na direção oposta em que o prédio onde haviam sido vizinhos ficava. Dessa forma, Die provavelmente vinha conseguindo evitar aparecer no caminho do outro homem.
          Por mais que Kaoru conscientemente não quisesse prestar atenção nesse detalhe, uma parte da sua mente aplaudiu a iniciativa decente do ruivo e incentivou um pedaço do seu coração a amolecer.
          Da sua posição, ele percebeu que Ayame estudava o recheio do seu muffin com uma concentração particular, preocupada em deixá-lo à vontade enquanto lia o bilhete e absorvia as informações que tinha em mãos. Com um sorriso genuíno, ele guardou o bilhete na própria carteira e desejou silenciosamente que Toshiya tivesse metade do discernimento e sensibilidade da integrante mais nova da família dos Ando.
          - Arigatou, Ayame-san.
          - Ah, dou itashi mashite! - ela murmurou com um sorriso tímido que acabou ficando mais brilhante quando notou que o bilhete havia sido muito provavelmente guardado - Havia... Um outro bilhete que foi deixado com Koetsu-san para que ele lhe entregasse, mas eu acho que isso... Não aconteceu.
          A expressão ligeiramente consternada e o silêncio da sua atual vizinha motivaram Kaoru a responder prontamente:
          - Koetsu-san é bastante esquecido, Ayame-san. Mesmo antes do acidente. - ele acrescentou, entendendo que a garota se culpava pelo episódio de alguma forma. Aliás, ele nunca soube o quê o pobre zelador tinha vindo avisar no dia em que sofreu o ataque da campainha - E depois, ele nunca sabe quem é Niikura e quem é Kaoru; deve ter ficado com medo de entregar o bilhete para o homem errado.
          A garota riu com gosto agora, parcialmente por causa da cara que o amigo fez e em parte porque a possibilidade do zelador agir daquela forma era totalmente possível. Terminando seu café e vendo que Ayame engolia o último pedaço do muffin, Kaoru cedeu à ansiedade que sentia dentro de si há alguns dias:
          - Ayame-san.
          - Hai?
          - Eu estava conversando com Toshiya-san outro dia e... Ele me disse que seu irmão mudou.
          - Onii-chan? Mudado? - ela inclinou a cabeça enquanto pensava, limpando as mãos do doce com um guardanapo de papel - Ah, sim. Eu acho que sei do que Toshiya-san está falando.
          O coração do publicitário bateu mais forte sem que o dono do mesmo tivesse qualquer controle.
          - Não se importa que eu fale do onii-chan, Kaoru-san?
          O olhar suave e gentil de Ayame dizia tudo que ela não havia ousado colocar em palavras; ela provavelmente sabia de mais coisas do que os outros supunham e deveria ter idéia de quão machucado o seu vizinho estava no momento. As feridas, no entanto, não ficariam abertas para sempre e talvez... Ela pudesse ajudar com a cicatrização.
          Engolindo em seco e sacudindo a cabeça negativamente, o publicitário ganhou o mais leve dos sorrisos da garota, que prosseguiu:
          - Onii-chan sempre colocou metas para si mesmo, Kaoru-san. Desde pequeno, sabe? Eu lembro de quando ele decidiu comprar uma guitarra, e para isso ele trabalhou em cada minuto livre que ele tinha da escola. Depois ele se interessou por basquete, treinando todo dia depois da aula para conseguir entrar no time e ser campeão pelo colégio. E, de alguma forma, onii-chan sempre se esforçou muito para atingir esses objetivos.
          O homem de cabelos roxos concordou com a cabeça quando houve uma pausa. Ouvir relatos desse passado do ruivo fazia com que ele se parecesse... Humano. Era como se Die deixasse de ser a criatura intocável que a maioria das pessoas enxergava, incluindo Kaoru na maioria das vezes.
          - Claro que nem sempre essas coisas deram certo de início. Em especial uma vez em que ele inventou de ganhar o prêmio da feira de ciências da escola. Onii-chan nunca foi muito bom com ciências, de forma que ele só conseguiu ter seu projeto escolhido como o melhor da feira quando estava no terceiro colegial e quase metade da sua sala já não tinha mais física ou química no currículo por opção.
          Os dois trocaram sorrisos cúmplices. Era refrescante saber que a perfeição não era uma constante na vida do ruivo, de forma que mais uma parte do gelo que endurecia o coração de Kaoru acabou derretendo.
          - As metas do onii-chan só foram mudando e ficando maiores com o tempo, ne. Ele superou todas os objetivos que ele se propôs a buscar, algo que eu admiro muito nele... Sem esquecer que ele me incentivou a buscar meus próprios sonhos também. - ela pontuou esse trecho com um sorriso - Mas aconteceu uma coisa com ele uma vez que deu origem a uma meta particular.
          Um avião passou sobre o café, estremecendo dos vidros do estabelecimento à calçada, mas a atenção do publicitário não foi desviada nem por um segundo.
          - Foi na sétima série do onii-chan. Ele gostava muito de uma garota... E ele era incrivelmente tímido quando era mais novo, só melhorou quando era mais velho e já estava no colegial. Bom... De qualquer forma, ele eventualmente conseguiu conversar com essa menina e os dois começaram a namorar. Acho que poucos meses depois, a garota largou o onii-chan pelo melhor amigo dele na época.
          A expressão de descrédito no rosto de Kaoru fez Ayame sorrir.
          - Parece estranho, eu sei. Mas onii-chan não era desinibido, não tinha muitos amigos e, de repente, ver o quê ele tinha demorado tanto tempo para conseguir tornar realidade... Desmoronou. E justo com o seu melhor e provavelmente único amigo da época. Foi uma fase ruim... - ela mergulhou em silêncio enquanto mantinha os olhos no tampo da mesa por alguns momentos antes de continuar - Eu era pequena e não lembro de muita coisa, a não ser dele trancado no quarto ou chorando pela casa quando saía do seu isolamento voluntário. Okaa-san ficou muito preocupada, já que o onii-chan não queria comer nem ir para a escola. Ele quase perdeu o ano por faltas.
          O aquecimento global atingiu um poderoso iceberg que vivia dentro do coração do publicitário e derreteu o mesmo.
          - Eu confesso que é difícil de acreditar nisso.
          - Concordo. Às vezes eu paro e olho para o onii-chan e não acredito que ele é o meu irmão de sempre. Parece uma outra pessoa.
          - Eu tive esse impressão quando estive em Mie. - Kaoru acrescentou em uma voz baixa e pensativa, relembrando os momentos - Ele andava pela sua casa, cumprimentando os moradores e conversando com cada um deles...
          - Essa é a natureza original dele, Kaoru-san. Carinhoso, protetor e preocupado com o bem-estar daqueles que o rodeiam. Mas eu acho que... Depois desse problema, ele se colocou uma nova meta na vida: ele jurou que nunca mais se deixaria apaixonar por outra pessoa.
          Os olhos do homem de cabelo roxo se arregalaram.
          - Foi aí que o onii-chan se transformou, Kaoru-san. Ele começou a sair mais, a fazer amizades, a conversar com quem ele não conhecia e... Bom, acabou seguindo a sua vida e profissionalmente foi muito bem. O problema é que ele sempre regrou os seus relacionamentos por algumas regras depois disso.
          Regras. O ruivo havia dito algo sobre as regras terem sido postas de lado há muito tempo...
          - Eu vou ser honesta com você, Kaoru-san: eu não gosto desse modo de encarar relacionamentos que ele adotou. Amor é uma faca de dois gumes, concordo; mas também... Privar-se voluntariamente disso não traz benefício nenhum. Basta olhar ao redor para ver como nós somos guiados pelo desejo de conhecer alguém e passar o resto dos nossos dias ao lado dele... E tirar isso é um pouco como transformar a nossa vida em preto e branco, não sei.
          Ayame corou furiosamente quando percebeu que estava falando mais sobre seus próprios sentimentos e pensamentos do que a respeito do irmão, mas o publicitário estava muito longe da conversa dos dois. Sua mente funcionava como um projetor de cinema, mandando várias imagens em uma rápida sucessão de lembranças que confirmavam cada palavra da sua vizinha e transformavam Die não em um problema, mas em uma... Solução.
          Pela primeira vez desde que havia percebido que amava o ruivo, Kaoru notou que o seu antigo vizinho poderia estar sofrendo tanto quanto ele, ou talvez até mais. Todos os sacrifícios que ele sabia que o outro homem estava fazendo para obedecer ao seu pedido por distância só deveriam contribuir para piorar ainda mais essa situação.
          - Ayame-san.
          - Hai, Kaoru-san?
          - O quê você acha que aconteceria se... Seu irmão colocasse essas regras todas que ele criou para si mesmo de lado?
          O modo como seu convidado a encarava da sua cadeira surpreendeu Ayame; havia... Havia algo de muito intenso naquele olhar.
          - Eu... Não tenho como ter absoluta certeza porque eu não sou o onii-chan e ele já vem agindo dessa forma há anos, mas eu acredito que ele seria... Feliz. Felicidade não é a mesma coisa que sucesso, dinheiro, boas amizades ou qualquer outra coisa; é um sentimento único que só aparece quando todos os milhares de aspectos e facetas da nossa vida estão completos. E eu não vejo como o onii-chan será feliz sem permitir que um dos seus lados, o emocional, seja completo.
          Kaoru concordou com a cabeça, compreendendo o que a garota queria dizer. De repente, pingos de chuva começaram a cair, atingindo o ombro do publicitário e depois a mesa no café. Trocando sorrisos cúmplices e correndo para dentro do pequeno café, o homem de cabelos roxos insistiu em pagar a conta da amiga e conduzi-la até o prédio em que ambos moravam sob o mesmo guarda-chuva.
          Apenas quando Ayame já estava em segurança na porta do seu apartamento é que o seu vizinho concordou em se despedir, destrancando a sua própria residência. Já com metade do corpo para dentro, Kaoru voltou para fora ao ouvir seu nome ser chamado:
          - Kaoru-san!
          - Hai, Ayame-san?
          - Espero ter... Ajudado de alguma forma. - ela falou com uma expressão de dúvida, perguntando-se internamente se deveria sorrir ou não; ela não queria se intrometer nos assuntos particulares do vizinho com seu irmão, mas esperava sinceramente que tudo terminasse bem. Ou menos pior do que a atual situação.
          - Já ajudou, Ayame-san. Boa noite!
          - Boa noite!
          Com a imagem de um último sorriso brilhante e cheio de confiança da mais nova dos Ando, Kaoru finalmente entrou em casa e fechou a porta, largando a sua pasta no chão e se jogando confortavelmente no seu sofá. Retirando o celular de um bolso interno do casaco e o bilhete com o endereço de Die de dentro da carteira, o publicitário aproveitou a iluminação emitida pelo teclado e visor do seu aparelho para digitar os números do telefone que estavam logo abaixo do endereço.
          O bilhete voltou a ser guardado e o homem de cabelos roxos ficou encarando seu aparelho, decidindo o quê fazer a seguir. Apertando o botão de chamar, Kaoru aproximou o telefone da orelha direita e esperou, ouvindo apenas um toque antes de encerrar a ligação imediatamente.
          Não. Ainda não era a hora.
          De olhos fechados e apertando o celular contra o peito, o publicitário acabou dormindo no seu sofá em meio a muitos e conturbados pensamentos.


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Notas finais do capítulo

Devido ao tamanho do capítulo, tive que dividir tudo em duas partes. As notas estão ao final da segunda metade.



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