The Devil Next Door escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 15
Capítulo 15




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          Kaoru suspirou profundamente, usando as costas da mão esquerda para tirar as mechas de cabelo roxo que insistiam em cair no seu olho. Apoiando as mãos ao lado do seu corpo, ajoelhado no chão, ele olhou para a imensa cartolina à sua frente.
          O pedaço de papel que fora outrora branco estava coberto de tinta, das mais variadas tonalidades de vermelho. Isso explicava por que o piso da sua sala estava forrado com jornais e o fato de sua roupa consistir em uma calça de moletom antiga e uma camiseta muito usada da Tokyo Disneyland, também manchados de tinta.
          Ele havia começado a trabalhar no projeto que Yoshiki havia designado para ele, dos cartazes do próximo filme de Matsumoto Hideto. O cineasta queria desenvolver uma trilogia falando sobre cores e sentimentos diversos associados a elas, o que inevitavelmente lembrou o publicitário de uma trilogia das cores francesas no mesmo momento. No entanto, não cabia a ele fazer acusações de plágio ou o que quer que fosse a Matsumoto Hideto.
          O encontro entre Hideto e Kaoru havia sido... Inusitado, para simplificar a estranheza da situação. Hideto estava com Yoshiki, ambos fantasiados: o seu chefe se encontrava de samurai, portando uma katana que o publicitário tinha quase certeza de ser real; Hayashi Yoshiki certamente tinha dinheiro suficiente para possuir uma. Já o cineasta trajava a fantasia de uma... Aranha.
          Duas das patas da aranha eram os próprios braços do homem, mas as outras seis patas eram de plástico e ficavam presas à roupa dele, balançando sem vida e de um jeito meio esquisito quando ele virava. Por causa disso, Hideto conseguira provocar a queda de duas pessoas já meio bêbadas que haviam passado perto demais do diretor de cinema, sendo atingidas pelas patas falsas.
          O fato de que a fantasia inteira era rosa também não contribuía para que o espanto inicial de Kaoru fosse embora, mas ele decidiu não perguntar sobre a escolha da cor; até porque combinava com o cabelo do dono da mesma. E depois, o publicitário não tinha muito como argumentar no quesito fantasia, porque Die havia lhe imposto uma também: anjo. Com direito a auréola e asas brancas falsas presas às suas costas.
          Logo após tomar o seu banho no bizarro camarim improvisado por Die, o homem de cabelos roxos se viu forçado a vestir uma fantasia para poder voltar à festa, sob ameaça do ruivo mandá-lo nu para o meio dos convidados novamente; tudo isso porque enquanto estivera no chuveiro, o dono da festa havia escondido as roupas de Kaoru.
          O publicitário grunhiu. Ando Daisuke realmente tinha a mente de alguém com metade da idade dele. Mas as mãos, boca, língua e outras partes da anatomia do ruivo tinham a experiência de alguém com, talvez, bem mais que somente vinte e cinco anos...
          Corando e balançando a cabeça com vigor, Kaoru decidiu que era melhor não pensar no que havia acontecido entre eles. Havia sido um puro e simples deslize, era isso; ele tinha ficado tempo demais sem contato físico com ninguém por causa do seu trabalho e acabou se deixando levar pelos sedosos cabelos do ruivo, pelo seus músculos incrivelmente esculpidos, pela sua voz sedutora, pelas suas mãos fortes e que sabiam como tocá-lo e...
          Kaoru teve vontade de bater a cabeça contra a parede mais próxima. Bem forte, somente para ver se ele conseguia provocar uma amnésia e esquecer o ruivo de uma vez por todas. Mas ele continuava morando ao lado, e, portanto, uma amnésia não seria o bastante. Nada que dizia respeito a Ando Daisuke era fácil; inclusive esquecê-lo.
          E ficava só um pouco mais complicado quando ele se lembrava de que, na segunda parte da festa, o ruivo havia voltado para os seus convidados com uma outra fantasia que combinava com a de Kaoru: demônio. Vestido todo em preto, mas carregando um tridente vermelho e chifres pontiagudos da mesma cor, Die conseguira a façanha de fazer todos ali ignorarem esses detalhes alegóricos em favor da visão que era a parte superior do seu corpo exposta, já que sua camisa estava totalmente aberta.
          Voltando a atenção para a sua cartolina mais uma vez, Kaoru chegou à conclusão de que o cheiro de toda aquela tinta estava mexendo com os seus pensamentos além do tolerável. Sorrindo satisfeito ao encontrar uma desculpa perfeitamente plausível como aquela, ainda que ele não reconhecesse que era de fato uma desculpa, o publicitário limpou as mãos em uns farrapos de pano que ele sempre tinha por perto quando trabalhava com tinta e se levantou, andando descalço por sobre as folhas de jornal até a porta e abrindo a mesma.
          Olhando para o seu hall, constatou que não havia ninguém do lado de fora, portanto não tinha como ele receber reclamações por estar trabalhando na sua casa com a porta aberta. Voltando para o seu apartamento, Kaoru sentou-se novamente na frente da sua primeira obra para Hideto e examinou-a atentamente, procurando por qualquer imperfeição que pudesse ser apontada pelo cineasta mais tarde.
          Ocupado em examinar a peça que representaria a raiva, o publicitário não percebeu a porta do elevador se abrir no hall, admitindo a alta figura do dono da festa do dia anterior que carregava uma sacola plástica de um supermercado. O ruivo imediatamente estranhou a cena, observando Kaoru trabalhar do seu lugar do lado de fora em silêncio.
          O mais velho dos dois homens, sentado no chão e coberto de tinta, era para Die uma visão bastante interessante e também... Fofa. Lembrava uma criança, embora o ruivo tivesse completa certeza do contrário.
          Quando o homem de cabelos roxos havia colocado o papel novamente no chão e se preparava para iniciar a próxima figura, ele percebeu que havia alguém observando seus atos. Piscando, Kaoru virou a cabeça para a porta e arregalou os olhos ao encontrar o ruivo parado ali, encostado no seu batente e sorrindo de uma forma que havia dado todo o tipo de reações no publicitário na noite anterior.
          - Bom dia, Kao! - o ruivo cumprimentou o outro alegremente, utilizando a mão livre que tinha para subir os óculos escuros que cobriam seus olhos para a sua cabeça, equilibrando-os no alto dos seus cabelos flamejantes e observando Kaoru abertamente agora.
          A ação fez a respiração do publicitário ficar meio presa na garganta. Ele não esperava se encontrar sob aquele olhar tão cedo... Não depois de tudo que havia se passado entre eles nas últimas vinte e quatro horas.
          Die, no entanto... Não parecia nada desconfortável.
          - Daisuke. O quê você quer?
          A hostilidade estava mais que evidente na voz do homem sujo de tinta, mas o outro nem tomou conhecimento da mesma, sorriso brilhando como sempre.
          - Dar bom dia, ora essa. Não se pode mais fazer a política da boa vizinhança hoje em dia? - ele perguntou com uma expressão repentinamente dramática e magoada, e Kaoru se perguntou se Die havia aprendido a atuar em algum momento da sua vida para alterar seus trejeitos faciais com tamanha rapidez.
          -...Política da boa vizinhança vindo de você? - o mais velho dos dois homens rolou os olhos, pegando tintas azuis que estavam por perto logo em seguida - Não me faça rir, Daisuke.
          - Ah, rir talvez eu não consiga, mas pelo menos gritar, sussurrar e gemer de novo eu posso garantir.
          O publicitário não percebeu quão rápido ele mesmo tinha agido até estar frente a frente com Die, sua mão direita na gola da camisa do outro com uma força que ele não sabia de onde havia tirado. Os seus olhos queimavam com raiva, sabendo que o ruivo iria se vangloriar da última noite deles juntos como um troféu até o dia do julgamento final... E Kaoru não queria acreditar que ele havia cedido.
          Não queria aceitar que seu corpo havia ganhado e que, para piorar a situação, havia gostado. Seu orgulho simplesmente não permitia.
          - Hmmm, algo me diz que o dominante da próxima vez não serei eu.
          - Daisuke, cala a boca. - o outro falou por entre os dentes, uma expressão mortal de ódio que o ruivo nem parecia notar - Me deixa trabalhar em paz. - ele concluiu, jogando o outro para trás de repente, notando com prazer o olhar ligeiramente espantado que havia tomado conta do rosto do outro então.
          Voltando com passos resolutos para dentro do seu apartamento, Kaoru parou no meio do caminho e girou no seu próprio eixo, pronto para gritar alguma coisa para o ruivo quando... Percebeu que seu vizinho não estava mais no corredor do lado de fora.
          Piscando, ele não acreditou que Die não o havia seguido e prensado contra a parede ou jogado-o no sofá da sala ou tentado qualquer tipo de ação maliciosa. Inclinando a cabeça para o lado como fazia quando estava pensando, o publicitário refez o caminho até sua porta em silêncio, achando muito estranho que ele não tivesse sido caçado pelo outro.
          Não que ele estivesse inconscientemente desejando que o ruivo viesse por trás ou simplesmente atrás dele, claro.
          De jeito nenhum.
          Mas por que diabos Die havia ido embora? De volta ao corredor, Kaoru sentiu que não era uma atitude sábia ficar andando naquele piso gelado, mas também observou que a porta do apartamento do ruivo estava aberta e que alguém mexia na geladeira do lado de dentro.
          Suspirando aliviado ao notar que ele não havia imaginado a presença do outro homem, Kaoru retornou para a sua sala e sentou-se mais uma vez diante da nova cartolina, preparado para ilustrar a tranqüilidade, apesar do seu estado agitado de espírito. Ele mal havia pingado as primeiras gotas de tinta quando ouviu o som da televisão do outro do seu lugar, muito alto.
          Die havia deixado a porta aberta e agora assistia à televisão no último volume. Rolando os olhos, o publicitário nem se deu ao trabalho de pensar nos motivos que levavam o outro a fazer uma daquelas, ocupando-se com o seu trabalho.
          Mas trabalhar era exatamente o que ele não estava conseguindo fazer, ficando cada vez mais irritado com as explosões, risadas e conversas que vinham da televisão do outro apartamento; Kaoru grunhiu vários palavrões quando percebeu que sua segunda cartolina estava muito longe de retratar a tranqüilidade, apesar dos tons de azul que ele havia utilizado.
          Picando o seu último cartaz em pedaços, o publicitário passou as mãos pelo cabelo, pensando no que fazer e inconscientemente ouvindo os ruídos do outro apartamento; parecia que o ruivo estava assistindo a um filme de guerra, agora. Foi quando ele se xingou mais ainda ao perceber que seu cabelo também estava lindamente manchado de azul marinho.
          Em um único e decidido movimento, Kaoru se colocou de pé e praticamente marchou até o hall do lado de fora dos dois apartamentos, determinado a mandar Die baixar o volume do aparelho ou então jogá-lo pela janela, tanto a televisão quanto o ruivo. No entanto, quando ele ia entrar no apartamento do seu vizinho, ele acabou por congelar quando seus ouvidos captaram os novos barulhos que vinham da tela que tinha a completa atenção do outro homem.
          Gemidos. Sussurros. Barulho de um móvel indo de encontro a uma parede, repetidamente.
          ...Ando Daisuke estava assistindo a alguma coisa pornô na televisão.
          Despertando para a realidade com uma cara de horror, a sua expressão aterrorizada só aumentou quando ele finalmente encarou o ruivo e notou que este tinha os olhos fixos nele, um sorriso hipnotizante torcendo seus lábios enquanto sua mão direita ia serpenteando na direção do zíper da sua calça.
          Assumindo a tonalidade mais vibrante de vermelho existente no planeta, Kaoru saiu quase correndo do apartamento do seu vizinho, voltando para o seu e fechando a porta, decidindo que era melhor morrer sufocado por causa da tinta a ouvir as indecências que o ruivo apreciava.
          O publicitário só não ficou ainda mais chocado depois de tudo porque perdeu o pequeno, quase insignificante detalhe de que eram o corpo dele e o de Die que se movimentavam em harmonia e produziam todos aqueles sons na televisão.

          No último dia de trabalho antes do recesso de Natal e Ano Novo na empresa, Kaoru esfregou os olhos vermelhos mais uma vez antes de tentar se concentrar no monitor à sua frente. O dia anterior não havia sido nem de perto produtivo como ele havia imaginado, e havia culminado com uma noite mal dormida. Os sinais eram evidentes: ele estava irritado, com os olhos mudando de cor para um escalarte não muito saudável e ainda por cima havia escutado os barulhos que vinham do apartamento de seu vizinho.
          O problema de ouvir ou ver qualquer coisa que remetesse a mente de Kaoru a sexo era que ele era lembrado instantaneamente da noite passada com Die; seu orgulho era talvez sua maior característica juntamente com a sua eficiência, sendo isso o quê provavelmente o impedia de aceitar que, apesar de tudo, a noite havia sido maravilhosa. A melhor de sua vida, disparado.
          Mas o problema era que isso havia vindo de alguém que ele detestava; alguém que simplesmente parecia gostar de infligir-lhe todos os tipos de tortura, não importando os seus sentimentos ou desejos. Essa sensação de ser apenas um instrumento nas mãos de Die, por mais que fosse biologicamente satisfatório, era insuficiente para a mente do publicitário.
          Com o confronto que se instalara entre corpo e mente dentro de si, Niikura Kaoru estava a poucos passos de perder o que restava da sua sanidade e também dos seus cabelos; a necessidade de puxá-los às vezes era maior que tudo.
          O lado bom de tudo isso era que logo o intervalo de festas de fim de ano chegaria e ele poderia ficar em casa, sem trabalhar e sem ter que encontrar ninguém da empresa. Die morava ao seu lado, muito bem, mas se ele não saísse de casa... Não tinha como ter problemas com o demônio ruivo do 305.
          - Kaoru-kun?
          Suprimindo um bocejo, o cansado publicitário se virou na sua cadeira e deu um sorriso bem fraco para Shinya, que retribuiu o gesto. Em seguida, o secretário passou-lhe um cabide, coberto com uma capa preta.
          - Die-kun me pediu para lhe devolver isso. Ele disse que você esqueceu com ele na festa de anteontem.
          Kaoru piscou e pegou o cabide das mãos de Shinya, vendo Toshiya se aproximar deles com a sua cadeira de rodinhas mais uma vez. O seu companheiro de divisória provavelmente passava mais tempo do lado que não era o seu do pequeno compartimento do que qualquer outra coisa, mas o publicitário de cabelos roxos estava cansado demais para sequer bronquear com o seu colega.
          Erguendo a capa, Kaoru constatou que era o seu terno, perfeitamente bem passado e lavado. Erguendo uma sobrancelha, a voz de Toshiya saiu antes que ele pudesse falar qualquer coisa.
          - Você esqueceu seu terno com o Die? E como você foi embora da festa sem roupa?
          Infelizmente, discrição não era um dos pontos fortes do bonito, porém, talvez inocente demais Toshiya, atraindo a atenção de pelo menos todos que já estavam trabalhando nos cubículos próximos. O dono do terno sentiu vontade de passar alguém pela máquina de picar papel para aliviar o stress.
          - Kaoru-kun estava com uma fantasia de anjo, lembra Totchi? Die-kun pediu para ele trocar. - Shinya esclareceu com a sua voz baixa de sempre - Eu acho que você já estava bêbado, Totchi.
          - Talvez...
          Falando em bebida, Kaoru pensou na festa e descobriu que depois do seu encontro com Hideto e Yoshiki, os dois homens haviam insistido muito para que ele bebesse com eles para comemorar a produção do projeto e... Isso explicava porque ele não lembrava como tinha chegado em casa; provavelmente ele também tinha bebido além da conta, o suficiente para voltar para casa sem o terno e nem perceber isso. Pelo menos não havia sofrido com nenhuma ressaca violenta.
          - Die pediu para você entregar isso, Shin-chan?
          Era muito estranho Die não ter optado por devolver ele mesmo as roupas; era uma oportunidade perfeita para tirar mais sarro da cara de Kaoru ou então fazer piadas imbecis, como era de sua natureza.
          - Hai. - o secretário concordou com a cabeça, estranhando um pouco a pergunta - Ele chegou bem cedo hoje por causa de uma reunião, e como sabia que você só entrava mais tarde, deixou isso comigo na sala de Yoshiki-san.
          - Entendi. Arigatou ne, Shin-chan.
          - Dou itashi mashite, Kaoru-kun. Totchi-kun, Yoshiki-san mandou dizer que espera ver muita coisa sua em janeiro pronta, viu? - ele comentou, ganhando um olhar meio desesperado do amigo.
          - Como assim, Shin?
          - Porque Die-kun passou muita coisa para Kaoru-kun enquanto estava chefiando o setor, então agora ele está tentando compensar. E depois, parece que Kaoru-kun está com um projeto muito importante. - ele se virou para o publicitário que havia acabado de pendurar o cabide na divisória em um canto onde o seu terno imaculadamente passado não amassava - É isso mesmo, Kaoru-kun?
          -...Hai. São posters para um filme.
          - Sugoi! - Toshiya exclamou da sua cadeira com os olhos brilhando, chegando mais para frente logo em seguida - Acha que vai ganhar ingressos grátis para assisti-lo depois?
          O publicitário piscou.
          - Acho que não, Totchi. Não tenho certeza.
          - Ahhh, mas se você ganhar, poderia levar a gente, ne Shin-chan?
          Kaoru quis rir do desconforto evidente de Shinya, mas apenas concordou com a cabeça, um pequeno sorriso enfeitando seus lábios:
          - Claro, Totchi. Estão convidados, se isso acontecer.
          - Arigatou!
          - Doumo arigatou, Kaoru-kun. Mas acho que temos todos de voltar ao trabalho, ne Totchi? - o secretário loiro acrescentou com o olhar mais próximo de bravo que Kaoru já havia presenciado; não era muito intimidador, mas funcionou e mandou Toshiya de volta para o seu lado da divisória.
          Quando o homem de cabelos roxos estava se preparando para retomar, ou melhor, começar de verdade o seu trabalho naquela manhã, ele notou a mão de Shinya ainda sobre seu ombro.
          - Esqueci de uma coisa. Die-kun pediu para que olhasse nos bolsos do seu terno mais tarde. - a expressão de confusão no rosto do homem loiro indicava que ele realmente não sabia do que se tratava - Não sei o que Die-kun quis dizer, mas era isso.
          - Obrigado, Shin. Bom dia para você.
          - Hai, hai. Até mais.
          O secretário se foi e Kaoru olhou o seu terno coberto, na esperança de que ele lhe contasse alguma coisa. Revirar sua roupa no serviço iria atrair atenção desnecessária, e ele realmente não desejava explicar para todo o andar o porquê de seu terno ter estado com Die até o presente dia.
          Ignorando por ora o cabide, Kaoru decidiu trabalhar e torceu para que o relógio andasse depressa; era dia vinte e quatro de dezembro e todos sairiam mais cedo do trabalho para a folga de Natal e Ano Novo, e então ele teria tempo suficiente para tentar entender as esquisitices do seu vizinho.
          E provavelmente falhar mais uma vez.

          Foi com grande felicidade que Kaoru estacionou seu carro na garagem do prédio, assobiando uma música qualquer natalina que estivera tocando no rádio; por não ser católico e também por causa do apelo comercial excessivo que cercava a data, ele não era muito fã do Natal, mas olhando pelo lado profissional, era uma época bem rentável.
          Pegando o terno do banco de trás do seu carro, o publicitário rumou para o elevador, ainda assobiando. Todo o stress daquele dia parecia ter se esvaído simplesmente pelo fato de que ele tinha mais de uma semana de folga pela frente, sem horários, pressões ou olhares indiscretos dos seus colegas de trabalho.
          Sem riscos de esbarrar em Ando Daisuke.
          A viagem até o terceiro andar do prédio foi curta e indolor, sem companhias como acontecera em uma das primeiras vezes que Kaoru se utilizou daquela cabine móvel. Corando levemente ao lembrar do incidente com as três prostitutas, ele empurrou a porta de madeira e saiu para o hall do seu andar.
          Retirando com as chaves do seu bolso com a mão que não segurava o cabide com o terno, o publicitário finalmente encontrou a que abria o seu apartamento e destrancou a porta, pisando no carpete da sua sala e apertando o interruptor para acender a luz como sempre fazia enquanto trancava de novo a sua residência.
          Foi quando Kaoru notou que a luz não havia acendido. Franzindo o cenho, ele se virou devagar, não acreditando que Die havia feito aquela brincadeira idiota de novo e havia deixado-o no escuro mais uma vez.
          Ou não tão no escuro, já que várias velas estavam espalhadas pela sua sala e iluminavam o cômodo fracamente. O efeito era muito bonito, mas bem inesperado.
          Até porque Kaoru não tinha velas. E ele não tinha colocado nenhuma delas na sua sala ou acendido qualquer pavio, e examinando o aposento, ele também teve certeza de que os enfeites de Natal presos à sua janela, assim como uma simpática árvore cheia de bolas e luzinhas que piscavam não era sua. E ele nem queria saber como os piscas-piscas estavam funcionando enquanto a luz da sala não.
          O publicitário piscou várias vezes, decidido a sair do apartamento e procurar o seu, porque aquela não podia ser sua sala. Não mesmo. Não naquela vida. No entanto, a chave havia aberto a porta, o sofá se parecia com o seu e a televisão também, apesar de servir de apoio para um boneco de neve sorridente feito em argila.
          Ainda surpreso e com as defesas todas ligadas, o homem de cabelos roxos se deslocou lentamente para o corredor, olhando a cozinha. Ela também estava iluminada por velas estrategicamente colocadas pelo recinto, além de contar com adesivos de motivos natalinos nas paredes, armários e uma toalha nas cores vermelho, verde e branco cobrindo a mesa. Era sobre essa peça de mobília, aliás, que se encontrava muita comida, e pelo que Kaoru conseguiu enxergar, muitas eram importadas e típicas das festividades de fim de ano ocidentais.
          O cheiro que vinha da mesa era ótimo, mas mesmo assim o publicitário não foi comer, decidindo terminar de examinar o seu apartamento. Prosseguindo pelo mesmo corredor, ele abriu a porta do seu banheiro, também iluminado por duas velas em formato de estrela. Deixando o terno em um dos ganchos que haviam na parede do banheiro, Kaoru rumou por fim para o seu quarto, encontrando a porta entreaberta.
          Empurrando em silêncio a mesma, mais uma vez se encontrou diante de velas, colocadas sobre a cômoda, as duas mesinhas de cabeceira e também pelo chão, iluminando o quarto a partir do carpete. Sua cama estava coberta com uma colcha que brilhava de uma forma diferente sob a luz das chamas, parecendo cetim vermelho. Aproximando-se com cuidado por entre as velas que estavam no chão, Kaoru estendeu uma mão para tocar o tecido da colcha, apreciando a sensação do tecido entre seus dedos. Sorrindo, ele percebeu que os travesseiros haviam sido arrumados de modo a servir de apoio para alguma coisa.
          Subindo na cama e engatinhando até a cabeceira, o publicitário encontrou ali uma carta, sem nada escrito no envelope. Rapidamente, Kaoru abriu o mesmo e tirou uma folha de papel ligeiramente envelhecida de dentro, onde uma caligrafia elaborada havia escrito...
          - "Você sabe onde me encontrar." - o publicitário leu a mensagem em voz alta, logo em seguida recolocando a folha dentro do envelope e sentindo-se, mais uma vez, dividido: ou ele truicidava Die por ter invadido seu apartamento ou então abraçava-o e agradecia por todas as produções que ele havia se disposto a fazer.
          Porque aquilo tudo só podia ser obra do ruivo. De repente, Kaoru se lembrou do bilhete que estava no meio do seu terno e correu até o mesmo, procurando em todos os bolsos até achar um pedaço da mesma folha de papel que continha a mensagem que ele havia acabado de ler. Dessa vez, o recado dizia apenas "Prepare-se".
          Sabendo o que deveria fazer, o homem de cabelos roxos deixou seu apartamento e tocou a campainha do vizinho, levando um pequeno choque quando apertou o botão. Murmurando palavrões, Kaoru não se conformava em ver que até mesmo as coisas inanimadas que cercavam Die eram suas inimigas.
          Se bem que um inimigo não faria tudo aquilo que estava no seu apartamento; ele não teria metade da paciência que seria necessária para montar uma mísera árvore de Natal, que dizer da decoração completa de uma residência como Die havia feito. Mas... E se tudo fosse um plano para amansá-lo?
          Por via das dúvidas, foi com uma expressão de profunda desconfiança que Kaoru observou a porta se destrancando e finalmente revelando a figura do ruivo, que vestia uma camiseta vermelha de mangas longas, totalmente aberta na frente, junto com uma calça preta que fez os olhos do publicitário inevitavelmente serem atraídos para as coxas do mesmo.
          - O meu rosto é um pouco mais para cima, Kao.
          - É Kaoru! - o outro replicou, mais com raiva do que vergonha por ter sido pego observando partes que não deveriam ter sido olhadas. Não explicitamente, pelo menos.
          - Eu sabia que você viria. - o outro disse de forma inocente, dando dois passos para trás e aparentemente não ligando para o fato de que estava meio frio para a roupa que utilizava - Posso ajudar?
          - Pode. Devolvendo a chave.
          - Chave? - o outro colocou dois dedos sobre o lábio enquanto pensava - Não tenho chave nenhuma para devolver.
          - Claro que tem, Daisuke! - Kaoru por fim entrou no apartamento, usando o dedo indicador para acusar o mais novo dos dois homens, mas acabou encostando o mesmo no peito do outro sem querer, corando e logo em seguida removendo a mão, mas sem perder a raiva - Você invadiu meu apartamento!
          Andando para trás e claramente se divertindo com a situação, Die acabou por sentar em cima da parte de trás do seu sofá, apoiando uma das suas mãos na sua coxa e vendo que o olhar de Kaoru havia mais uma vez seguido seus dedos. No entanto, ele nem precisou falar nada para que o outro corasse ainda mais.
          Niikura Kaoru ficava adorável com aquele tom de vermelho no rosto, na opinião de Die.
          - Pode procurar à vontade, não tem nenhuma chave sua por aqui, Kao. - o outro falou com uma voz animada, abrindo os braços e incitando o outro a aproximar-se mais e procurar nos seus bolsos - Na verdade... - o ruivo continuou, se levantando de onde estava apoiado e desviando de Kaoru para andar até a porta aberta da sua casa, fechando a mesma. Em seguida, colocou os braços para cima da sua cabeça e deixou-os apoiados contra a madeira, ficando de costas para o outro homem - Por que não me revista?
          A respiração do publicitário mais uma vez parou, apenas observando o modo como a calça negra do outro delineava o contorno perfeito da parte traseira da sua anatomia, e realmente... Correr as mãos por tudo aquilo e sentir o corpo do ruivo era algo tentador.
          Mas ele tinha de resistir à tentação. Já havia sucumbido uma vez, e não iria deixar isso acontecer de novo. Ficando onde estava com uma dose gigante de força de vontade, o homem mais velho suspirou e cruzou os braços.
          - Muito engraçado, Die. Agora devolve a chave do meu apartamento. Bonita a sua decoração de Natal, mas eu não quero você entrando lá sem qualquer aviso.
          - Mas eu avisei. Deixei um bilhete para você... Que provavelmente você não leu até chegar em casa. - o ruivo acrescentou virando o pescoço para trás e sorrindo malignamente, mas sem sair da sua posição. Kaoru sentiu-se infinitamente previsível de novo.
          - Então você não nega que entrou no meu apartamento!
          - Nunca neguei. - o outro replicou com serenidade e desvirou-se, apoiando as costas na madeira da porta e cruzando os braços sobre o seu tórax convidativo. O publicitário sentiu saudades da visão anterior embora a atual não fosse nada mal, claro.
          -...Anh? - o outro replicou, não entendendo mais onde o ruivo queria chegar.
          - Muito simples. A chave que eu usei foi a do zelador. Portanto, não tenho nada para devolver. Você, no entanto, poderia me pagar a gentileza de ter arrumado todo o seu apartamento de tarde me convidando para a ceia de Natal que eu garanto que está deliciosa.
          Kaoru não sabia se batia em Die ou desmaiava.
          - Eu não vou te convidar para passar o Natal comigo! - o publicitário bradou ultrajado, ficando vermelho de raiva. Qual seria o próximo pedido de Die? Um passeio pelo túnel do amor em um parque de diversões ou assistir ao pôr-do-sol juntos?
          ...O homem de cabelos roxos decidiu não investigar de onde aquelas hipóteses haviam vindo também.
          - Ah, eu não vou deixar toda aquela comida estragando lá, Kao. Está tudo muito bonito para ser perdido. Se você não vai me convidar, eu vou por conta própria. Até mais!
          Em um movimento rápido, Die se afastou da porta, abriu a mesma e fechou-a atrás de si. Bufando com irritação, Kaoru foi imediatamente atrás, somente para perceber que estava trancada.
          - ANDO DAISUKE!
          Não era possível que Die tivesse trancado-o lá dentro... Era?
          Kaoru girou a maçaneta novamente.
          Era.
          - Daisuke, volte aqui! Daisuke!
          Começando a bater na porta com os punhos, o publicitário quase perdeu o barulho do telefone do outro tocando. Profundamente irritado, ele lançou um olhar cheio de ódio para uma mesinha que continha o aparelho de telefone, vendo no identificador de chamadas que a ligação vinha...
          - Aquele filho da mãe está usando o telefone da minha casa! - Kaoru correu para atender e assim que apertou o botão para falar, encheu os ouvidos do homem mais novo com palavrões.
          - Ow, ow, Kao! É Natal, pega leve!
          - Você quer que eu pegue leve quando você me prende na sua casa?
          - Olha, você é muito chato. Quando eu te prendi aí comigo, você não gostou; quando eu saio, também não. Qual o seu problema?
          - O meu problema é que eu não gosto de ficar trancado, ou ainda não deu para perceber? - Kaoru estava falando tão alto que tinha certeza que os vizinhos acima ou abaixo deles já estavam ouvindo parte da conversa deles.
          - Ahhhh, entendi. Ainda bem que é isso, cheguei a pensar que o problema fosse comigo.
          - Daisuke! Venha me soltar já!
          - Só se você me convidar para passar a ceia com você, Ka-chan.
          - Não me chame assim.
          - Só se você me convidar. - o ruivo repetiu, quase cantando a última palavra com evidente divertimento. Kaoru desejou ter encontrado algum objeto valioso na casa do outro para quebrar.
          - Ando Daisuke, venha abrir a porta já. Ou então eu telefono para a polícia.
          - Polícia na véspera de Natal? Eles não vão aparecer.
          - Então interfono para o zelador!
          - Ele nem sabe que você e o Niikura são a mesma pessoa; não vai vir te libertar.
          Kaoru ficou em silêncio. Die... Havia planejado tudo mesmo. Provavelmente a invasão tinha sido o único método de forçar o publicitário a deixar seu próprio apartamento e assim dar a chance para todo o intricado esquema do ruivo.
          Belo presente de Natal esse, passar a data com o seu maior inimigo e coincidentemente a pessoa que ele menos queria ver no momento. Mesmo que ele estivesse usando as roupas mais perfeitas deste e outros universos para a ocasião.
          - Por que não liga para a sua mãe?
          - Minha mãe? - Kaoru replicou estupidamente, sem entender.
          - É. As pessoas ligam para as mamães quando estão com medo ou em apuros. Se bem que não sei qual é o seu caso.
          Kaoru realmente começou a procurar coisas quebráveis e valiosas pelo apartamento de Die, irritado por só encontrar almofadas e garrafas vazias de cerveja pela sala. Engraçado o ruivo arrumar o apartamento do vizinho e cuidar tão mal do próprio.
          - Eu deveria ligar para a minha mãe e contar a ela o crápula que você é.
          - Ah, Ka-chan. Ela não acreditaria nessa mentira.
          - Mentira! É a mais pura verdade.
          - Claro, claro. Eu acho que vou comer um pouco do peru, parece apetitoso. Segui direitinho as instruções para cozinhá-lo.
          -...Você cozinha?
          - E muito bem.
          O homem de cabelos roxos ficou sem saber o que falar depois disso, a visão de Die de avental em frente a um fogão dançando na sua mente.
          - Se você me convidar para a ceia, Kao... Pode provar tudo que eu cozinhei. Inclusive o cozinheiro, se estiver com muita fome. - ele acrescentou e fez Kaoru mudar a cor do seu rosto, mesmo à distância.
          Eram os incríveis poderes de Ando Daisuke sobre Niikura Kaoru.
          - Daisuke...
          - Hmmm?
          - Eu te odeio.
          - Feliz Natal para você também, Kao!
          - É sério!
          - Eu também falo sério. E então? Vai me convidar?
          Respirando fundo, Kaoru percebeu que o outro estava realmente determinado a passar o Natal com ele. Resignando-se e aceitando mais uma derrota para os planos malucos do seu vizinho, ele sentou no sofá, reunindo coragem para anunciar sua decisão. Ele positivamente preferia morrer a ficar constantemente perdendo nos jogos imbecis que disputava com Die.
          - Vou.
          - Nananinanão. Convide direito, Kao!
          - É Kaoru.
          - E então?
          O suspiro pesado foi ouvido pelo ruivo.
          - Quer passar o Natal comigo, Daisuke?
          - Die.
          - Quê?
          - Me chame de Die.
          - Não!
          - Então não vou aí abr...
          - Quer passar o Natal comigo, Die?
          Kaoru jurava que conseguia ouvir o sorriso do outro.



Continua...


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Notas finais do capítulo

Olá para todos novamente!

Queria agradecer a todas as reviews enviadas e também pelo apoio e entusiasmo com o lemon da história! :D Este capítulo segue com a história imediatamente após a side-fic.

Para quem não sabe/lembra, existe uma side-fic entre os capítulos 14 e 15 da história, chamada "Do Not Disturb" e que pode ser lida no meu perfil. É um lemon separado por critérios de classificação, mas a sua leitura é facultativa; quem quiser pular o lemon e emendar o capítulo passado neste aqui não terá problemas.

Beijos!
Mari-chan.