Uma Nova Vida escrita por Mitzrael Girl


Capítulo 4
Uma Vida




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Uma Nova Vida


Capítulo IV: Uma Vida


– Menina! Não me faça chamá-la de novo! Acorde de uma vez que o almoço está pronto. – a voz era rigorosa, entretanto, conseguia ser ao mesmo tempo completamente confortável e suave.

 

– Ai, mãe… já vou. – a morena se revirou na cama grande, abraçando o travesseiro com força, escondendo o rosto.

 

– Não sei como você consegue dormir tanto.

 

O som da porta fechando foi ouvido e a morena deixou um sorriso vitorioso surgir nos lábios, começando a cair no sono novamente. Sua tentativa, porém, foi completamente frustrada quando ouviu a mesma voz de antes invadir seus ouvidos, acompanhada do som de passos apressados.

 

– Sabia que na primeira chance, você tentaria dormir de novo. Levante de uma vez, o almoço já está na mesa.

 

– Mãe! Por Deus, é sábado! – ela se revirou na cama novamente.

 

– Mas já são mais de uma da tarde. – a mulher abriu as cortinas com um movimento rápido e a claridade dos raios de sol invadiu o quarto, incomodando mesmo os olhos fechados de Gabrielle. – Levante de uma vez, seu pai também mandou lhe acordar. Já está todo mundo à mesa.

 

– Vocês adoram estragar meu dia!

 

Ela finalmente abriu os olhos, mas antes de conseguir observar a figura da mulher bem ao lado da cama, a luz do sol invadiu seus olhos e deixou-a ofuscada por um momento.

 

Quando ela recuperou a visão, estava de volta ao quarto da Casa de Virgem, sentada na cama simples, observando as paredes acinzentadas ao redor. O coração estava acelerado, mas de excitação. Por pouco não vira o rosto da mulher que deveria ser sua verdadeira mãe.

 

– Era mesmo… minha mãe! – Gabrielle sorriu animada. Suas memórias pareciam estar finalmente dispostas a voltarem.

 

Daquela vez, ela não precisou pensar duas vezes para compartilhar a notícia com Shaka. Sabia que tinha adormecido no jardim das Salas Gêmeas, e não era mistério algum que ele provavelmente a levara para o quarto. Pelo menos não precisava se sentir tão extremamente constrangida como se sentira ao lembrar que o tinha beijado. Daquela vez, não tinha acontecido nada demais, mas estava começando a se certificar de que seus sonhos bons e memórias felizes só surgiam quando ela adormecia perto dele, sentindo-se realmente segura e feliz. Corou com o pensamento, mas ainda assim, continuou num passo apressado para alcançar a sala de jantar o quanto antes. Não sabia que horas era exatamente, só sabia que estava fazendo frio e que se não estava chovendo ainda, iria chover mais tarde. Seria mais um dia sem treinamento, e provavelmente, mais um dia com pesadelos ruins.

 

– Shaka! – ela chegou na sala de jantar já chamando pelo virginiano, mas ele ainda não estava lá, embora a mesa já estivesse servida com o café da manhã, e houvesse pratos e talheres para dois.

 

Ela piscou os olhos duas vezes, pensando em ir procurá-lo, mas mudou completamente de idéia ao notar que não comia nada desde o almoço do dia anterior. Tinha até pulado o jantar por ter caído no sono pouco antes da refeição. Pelo visto aquela lembrança era bem verdadeira, a mulher que chamara de mãe tinha reclamado do quanto ela dormia, e por ter acordado só depois da uma da tarde. Ao menos ali no Santuário, aprendera a acordar tão cedo quanto o nascer do sol. Bom, não sabia antes daquilo, afinal… em todos os seus pesadelos parecia sempre tão disposta a não dormir. Talvez se fechasse os olhos, tudo se tornasse pior, ou perdesse a única chance de ver a luz do dia de novo.

 

Gabrielle andou até a cadeira e se sentou, começando a se servir mesmo antes de Shaka, não agüentando o aperto em sua barriga de tanta fome. Talvez fosse aquela fome que tivesse feito com que ela sonhasse justo com a hora de acordar para o almoço. Sentiu os braços tremerem e percebeu que realmente estava com frio, principalmente com aquele vestido simples de alças de Saori. A única tentativa de se aquecer foi quando levou uma xícara de chá quente aos lábios, e ainda se arrependeu por ter queimado a língua de tão quente que estava.

 

– Vista isso.

 

A morena quase deixou a xícara cair com a súbita voz de Shaka no ambiente. Virou o rosto para o lado, observando-o com o braço estendido com uma camisa de mangas cumpridas em mãos.

 

– Deve estar com frio.

 

– Ah, obrigada! – ela colocou a xícara de volta na mesa e pegou a camisa que ele lhe oferecia, vestindo-a imediatamente. Era bem larga e ela sentiu-se de novo como no dia em que fora visitar Saori, completamente perdida dentro da roupa, embora o frio já estivesse diminuindo.

 

Shaka sentou-se sem falar mais nada e começou a acompanhar a jovem no café da manhã. Como sempre, foi ela que quebrou o silêncio.

 

– Eu tive outra boa lembrança hoje! – ela falou, empolgada. – Dessa vez com a minha mãe… de verdade. Ela tinha uma voz gentil… mas não vi o rosto dela, nem ouvi nomes. Ainda não entendo o que aconteceu para eu não conseguir lembrar tudo.

 

– Você tem que ser paciente. – Shaka disse, servindo-se apenas de uma xícara de chá.

 

– Estou tentando. Acho que hoje também não vou treinar… estou começando a sentir falta. – Gabrielle suspirou demoradamente.

 

– As chuvas vão cessar logo.

 

– Eu não me importaria se as chuvas continuassem. Contanto que os pesadelos parassem.

 

O olhar dela se perdeu na mesa, completamente desligado do resto do mundo. Shaka não pôde notar aquilo, mas dava para sentir como ela se incomodava com tudo aquilo, só pelo tom de voz.

 

O virginiano precisou apenas terminar de tomar o chá para se levantar da cadeira e sair da sala. Gabrielle simplesmente piscou duas vezes ao vê-lo se afastar, mas não se importou. Já estava acostumada com as saídas repentinas de Shaka.

 

O cavaleiro de Virgem não se importou em ir direto para sua sala de meditação, na verdade, foi até a saída da Casa de Virgem e encostou-se numa das grandes colunas, suspirando demoradamente. Não estava acostumado a sempre ver a jovem mesmo que ela ficasse na mesma casa que ele, mas parecia que a cada vez que se encontravam, alguma coisa acontecia para que eles ficassem mais próximos. E por mais que detestasse admitir aquilo, depois de mais de vinte anos de treinamento e inúmeras batalhas em que sua concentração e meditação tinham lhe garantido vitórias… estava sucumbindo. Era dito o cavaleiro mais próximo de Deus, seguira os ensinamentos de Buda à risca desde que se entendia por gente, jamais abria os olhos para sempre estar preparado para a próxima batalha. Mas era incrível como a presença daquela mulher em sua casa parecia fazê-lo desviar-se tão facilmente de todos os caminhos aos quais já estava acostumado. Sentia necessidade de abrir os olhos para ver a figura feminina, era atraído incrivelmente pelo cheiro dela, pela voz, pela simples presença. Constantemente lamentava-se por privar-se da visão dos sorrisos e expressões felizes que ela tinha todas as noites falando sobre os treinamentos. Mais do que tudo, sentia uma incrível necessidade de tocá-la sempre que estava ao seu alcance… de ficar ao lado dela. Simplesmente não conseguia acreditar que depois de tantos anos de treinamento e auto-controle, não adiantava mais de nada. Gostava da sensação humana, de ter alguém por perto… precisava confessar a si mesmo que não se sentia mais confortável com a solidão de estar tão perto de Deus e tão longe dos humanos. Entretanto, era claro que esquecera completamente como agir diante de outras pessoas que não os cavaleiros colegas de batalhas.

 

Ele passou a mão pelo rosto, sentindo-se completamente derrotado. Permitiu-se sorrir por um instante. Era de certa forma engraçado como conseguira vencer tantas batalhas contra grandes inimigos, e parecia ter perdido uma tão simples para uma garota que não devia ter muito mais que quinze anos de idade. Ainda pegou-se imaginando que preferia que ela lembrasse quem era, e que era bem mais velha do que o que ele supunha.

 

Depois de quase bater com a mão na testa pelos pensamentos avulsos, levantou o rosto na direção das casas mais altas do Santuário. Saori ainda não tinha voltado da terceira viagem ao Japão que fizera naquele curto período de tempo, e não parecia ter descoberto alguma coisa apenas com a imagem do rosto de Gabrielle. Assim que ela voltasse, precisava lhe informar sobre a possibilidade de um irmão mais novo, talvez fosse mais fácil encontrar daquele jeito. Ao menos, parecia que ela estava começando a lembrar realmente de todos os detalhes importantes, além daqueles incontáveis pesadelos. Desde o beijo, Shaka fazia questão de continuar trancado em seu quarto até ter certeza de que ela tinha saído para o café da manhã… não podia deixar que acontecesse de novo.

 

O resto da manhã, Shaka não sentiu vontade de voltar para dentro da Casa de Virgem, nem de treinar ou tentar meditar, sabia que seria em vão. As chuvas voltaram novamente, e o céu no Santuário ficou tão escuro a ponto de se confundir com o céu noturno. Já tinha chovido por tempo demais, então, não duvidava que logo aquelas chuvas parassem. Elas, entretanto, pareciam ser ótimas para piorar os pesadelos de Gabrielle, e todas as manhãs, ele facilmente acordava com gritos escapados da garganta da jovem.

 

Pelos próximos três dias ao bom sonho que a jovem tivera, mais pesadelos compensaram a sua felicidade momentânea, e era incrível como toda vez que tinha uma boa lembrança, eles pareciam piorar apenas para fazê-la se sentir ainda mais miserável e incapaz de se lembrar de seu passado por completo. E foi exatamente na manhã do quarto dia chuvoso, acompanhado do som de alguns poucos trovões, que ela acordou mais desesperada que em qualquer um dos dias anteriores. Suava muito frio, o barulho da chuva assemelhava-se a agulhas entrando em seus ouvidos. Tinha certeza que nenhum som tinha saído de sua boca, pois cada um dos gritos desesperados ainda estava lá, preso em sua garganta como um nó. Jamais, em todos aqueles dias e lembranças de memórias de um tempo terrível, imaginaria que conseguiria recuperar uma memória ainda pior… a ponto de fazê-la sentir-se tão odiada e frustrada como em nenhum outro dia se sentira.

 

Levantou-se da cama, chutando os lençóis para o lado, contendo a vontade de bater com força na parede. Sua respiração estava ofegante, e sentia como se o quarto estivesse diminuindo ao seu redor, prendendo-a num lugar do qual jamais poderia se libertar. O rosto já estava molhado de lágrimas, e elas não paravam de rolar. Mas mais do que medo de suas memórias, naquela manhã, estava sentindo-se completamente miserável por ser tão fraca e não poder resistir a cada dia que tinha passado em que tinha sido espancada… que não conseguira resistir a nada do que lhe faziam, nada…

 

Não pensou nem duas vezes em mudar a roupa para uma daquelas de treinamento que Marin lhe dera. Não sabia que horas eram nem se o sol já tinha nascido. Queria apenas sair dali e descarregar sua raiva em alguma coisa. Correu apressada pelos corredores mal-iluminados da Casa de Virgem e logo tinha alcançando a entrada. O céu estava muito escuro, e imaginava que o sol estava prestes a nascer. A chuva estava torrencial, mas aquilo era a menor de suas preocupações. Pensou se poderia alcançar o campo de treinamento das amazonas, mas não lhe agradava a idéia de ter que passar por mais cinco Casas Zodiacais e incomodar os cavaleiros que provavelmente a encheriam de perguntas. Ao contrário, correu para o lado da sexta Casa, passando por caminhos incrivelmente acidentados, muita lama e barro, até finalmente alcançar uns poucos arbustos e árvores que davam início a uma floresta que circulava o lado oeste do Santuário.

 

Precisou apenas alcançar uma das altas árvores que não conseguiam realmente amparar a chuva, para começar a golpeá-la o mais forte que conseguia, o máximo de vezes que conseguia, sem sequer ligar para a dor quando os punhos começaram a ser arranhados mesmo protegidos por faixas. As lágrimas facilmente se confundiam com as gotas de chuva, estava com tanta raiva de sua fraqueza que não conseguiu deixar de golpear a árvore, até mesmo com chutes, sentindo a calça começar a rasgar depois do quarto golpe. Bateu tantas vezes com as mãos fechadas em punho que as faixas se rasgaram e o sangue já estava sujando boa parte do tecido. Aquilo não foi motivo para fazê-la parar… sua resistência tinha aumentado com os treinos diários e não estava realmente cansada. Estava disposta a continuar ali o quanto fosse necessário, até estar completamente esgotada, até que não tivesse forças nem para sentir raiva. O sangue na árvore e nas mãos não a assustou, ao contrário, aquele vermelho viscoso apenas a deixava mais enfurecida, lembrando-se de todas as vezes que sofrera todo tipo de ferimento sob os cuidados daquele casal estranho. A cada soco, tinha vontade apenas de chorar mais, e para tentar evitar aquilo, mordeu o lábio com tanta força que não demorou a sangrar também.

 

– O que acha que está fazendo?

 

A voz do virginiano veio acompanhada de braços fortes que impediram que ela continuasse descarregando a sua raiva, puxando-a pela cintura para longe do seu alvo principal. O ato dele foi apenas motivo para deixá-la mais enraivecida, por não ter descarregado tudo o que queria ainda.

 

– Me solta! – ela se debateu nos braços dele, feliz que a chuva ainda estivesse caindo forte, impedindo-o de notar quantas lágrimas já haviam escorrido por seu rosto.

 

– O que… está fazendo? – Shaka segurou-a com mais força para evitar que ela conseguisse se afastar.

 

– Eu disse pra me soltar! – Gabrielle não pensou duas vezes para acertar o homem com uma cotovelada e se libertar com dificuldade dos braços dele. Deu dois passos vacilantes para frente, e encostou as mãos doloridas na árvore, encostando a testa no tronco em seguida, apenas para socar de leve a madeira, mais uma vez, sentindo seu movimento sendo impedido pelo virginiano.

 

– O que aconteceu?

 

Ele segurou o pulso dela com firmeza, mas sem machucá-la, e também sem a intenção de deixá-la se machucar. Gabrielle não se moveu do lugar, ainda com a testa encostada no tronco, as lágrimas continuando a escorrer e as pernas começando a fraquejarem. Ela preparou a mão livre para socar a árvore com toda a força que ainda lhe restava, mas o movimento de Shaka foi mais rápido e ele a puxou para longe do seu alvo principal.

 

– Me solte… – a morena estreitou os olhos enquanto encarava Shaka, mesmo que ele não pudesse ver. Tentou inutilmente se soltar de apenas uma das mãos dele que segurava seu pulso, não conseguiu nem fazê-lo mover um dedo. Sentia-se ainda mais fraca.

 

– Não. – a resposta foi categórica.

 

– Me solte! – ela tentou puxar o braço com mais força, mas foi inútil. Deixou que as pernas fraquejassem de vez e caiu sobre os joelhos, o braço ainda preso firmemente por Shaka. Levou a mão livre até o rosto, escondendo os olhos, não conseguindo mais engolir os soluços. – Por favor… por favor, me solte.

 

Shaka ficou sem reação por uns minutos, sem saber o que estava acontecendo, mas lentamente afrouxou o pulso dela e ela deixou o braço cair pesado sobre a terra molhada.

 

– Gabrielle… o que aconteceu? – ele se abaixou relutante, incerto se devia mesmo estar ali, se conseguiria ajudá-la daquela vez, o que quer que tivesse provocado tamanha reação de raiva e hostilidade da morena.

 

– Eu odeio isso. – Gabrielle abaixou a cabeça, esfregando os olhos com força, tremendo com os soluços do choro. A chuva continuava a fustigar as folhas das árvores, deixando o som invadir seus ouvidos acompanhado de memórias desagradáveis. – Odeio tanto… tanto.

 

– O que você odeia?

 

– Não ter… força. Pra nada. – a voz dela quase sumiu entre o som alto da chuva. A memória voltou em sua mente e ela chorou com mais vontade, apertando o rosto contra a mão, enrolando os dedos nos cabelos desalinhados.

 

Shaka hesitou em tocá-la, pensou em perguntar o porquê, mas as palavras também não saíram. O estado em que ela estava era definitivamente angustiante, e ele não fazia idéia do porquê… esperava que ela contasse sem ele precisar perguntar, mas a única coisa que se seguiu às palavras dela foi o som da chuva e do choro sendo abafado. O sangue ainda escorria das duas mãos e ela tremia ainda mais forte. Shaka sentiu-se completamente inútil naquele momento, e sem respostas dela, ele pensou em voltar a falar.

 

– Você tem qu…

 

– Eu era tão fraca! – o tom choroso era baixo, quase sussurrado, por mais que ela parecesse se esforçar para falar alto. Pressionou mais a mão sobre o rosto e agarrou um punhado de terra com a outra mão. – Eu não pude fazer nada! Simplesmente nada! Não tinha forças pra resistir, nem gritar… sequer me mover! Não consegui evitar que aquele… aquele homem… que ele…! Por Deus!

 

O cavaleiro de Virgem subitamente sentiu o próprio cosmo se descontrolar com um tipo de raiva que não sabia que conseguia sentir. Não precisava ouvir o resto das palavras forçadas dela para saber o que viria a seguir, não precisava que ela terminasse de dizer tudo para ter certeza que pela primeira vez na vida, tinha vontade de matar alguém.

 

– Eu nem tive forças… pra deixar o pesadelo acabar. Não consegui… não sei se ele… chegou a fazer… algo… – ela se esforçou para completar a frase. – Eu nem sei… nem sei mais o quão quebrada eu estou…

 

O cavaleiro de ouro não falou nada nem moveu um músculo, sabia que se o fizesse, poderia derrubar metade daquela floresta num piscar de olhos. Só conseguiu respirar fundo para recuperar o controle de seus poderes quando percebeu que as forças dela tinham se esgotado. Rapidamente, estendeu os braços para evitar que o corpo enfraquecido tombasse contra o chão. Lentamente, abriu os olhos, observando o estado em que ela se encontrava: as mãos ainda sangravam muito e as gotas de chuva levavam o vermelho para o chão de terra; os cabelos estavam completamente desalinhados e escorrendo água sobre o rosto avermelhado; havia marcas fundas em volta dos olhos fechados dela, mesmo inconsciente, a expressão dela era de medo. Ele a ergueu nos braços, e segurando-a com força, fechou os olhos, andando de volta até a Casa de Virgem, ainda sob a chuva pesada. Devia ter acordado mais cedo, ter notado mesmo durante seu sono que ela tinha saído da Casa, que estava abalada… mas uma presença tão fraca não tinha sido capaz.

 

Ele precisou deixá-la no quarto da sexta Casa Zodiacal e se deslocar até o campo de treinamento das amazonas, mesmo com toda aquela chuva, para pedir ajuda a Marin para trocar a roupa dela ao menos, ou ela ficaria pior do que já estava. A amazona prontamente o seguiu de volta à Casa de Virgem e cuidou de trocar as roupas de Gabrielle e também fazer curativos e enfaixar tanto as pernas feridas como as mãos. Não se atreveu, entretanto, a perguntar ao virginiano o que tinha acontecido, quando terminou de tratar dos ferimentos dela e ela ainda dormia, Shaka tinha acabado de sair do banho e trocar a roupa também. Marin apenas se despediu e voltou ao campo de treinamento das amazonas, depois de feito o trabalho, ficando confusa com o que tinha acontecido, e momentaneamente curiosa. Mas definitivamente a expressão que Shaka tinha não era uma agradável e que estava disposta a responder a qualquer tipo de questionamento. Na verdade, até o cosmo dele estava hostil, e ela respirou aliviada ao sair da casa.

 

A chuva tinha diminuído e parou por um tempo quando já estava perto do meio-dia, mesmo que o céu ainda estivesse nublado. Shaka ficou apenas sentado numa cadeira ao lado da cama de Gabrielle, os olhos abertos fixos na figura feminina que respirava com dificuldade, o rosto um pouco avermelhado e a expressão que parecia de dor.

 

– Eu nunca imaginei que o veria de olhos abertos que não numa batalha pela sua vida, Shaka de Virgem.

 

Shaka quase se assustou com a voz conhecida se pronunciando. Não exatamente por ter sido pego de olhos abertos, mas por não ter se dado conta de que o ariano tinha chegado até ali, completamente invisível à sua percepção aguçada.

 

– E pelo visto, estava muito mergulhado em pensamentos também. Não percebeu a minha presença. – Mu disse, aproximando-se da cama em que Gabrielle estava deitada. – Ela não parece nada bem.

 

– Não está. – Shaka disse, finalmente fechando os olhos e sentindo-se menos alarmado.

 

– Eu pensei na possibilidade de vir antes saber o que acontecia… – Mu disse, desviando os olhos de volta para o amigo. – Mas confesso que fiquei assustado com a hostilidade que seu cosmo estava emanando. Não que não esteja hostil agora, mas está mais calmo. Pode me dizer o que aconteceu?

 

– Pela primeira vez… – Shaka fechou as mãos com força, respirando fundo uma vez. – Em todo o tempo que venho seguindo os ensinamentos de Buda. Eu realmente sinto vontade de tirar a vida de alguém.

 

Mu não precisou evitar a surpresa que surgiu em seu rosto e o leve arregalar de olhos. Shaka não se voltava para ele, estava apenas com o rosto virado na direção da garota que dormia não tão profundamente.

 

Ele ficou calado por uns segundos, pensando se seria prudente perguntar o resto dos detalhes, mas temeu que lembrar destes fizesse com que Shaka ficasse com raiva novamente. E naquele dia, o cosmo do virginiano estava completamente instável. Não duvidava nada que era porque ele estava se lembrando de algum fato daquela manhã em particular, quando ele estava realmente perigoso.

 

Depois de pensar bastante sobre o que falar, não conseguiu deixar de sorrir vitorioso ao notar que Shaka não se desviava nada da figura de Gabrielle, e se ele não tivesse aparecido ali, o virginiano ainda estaria de olhos abertos.

 

– Bom… talvez isso seja uma coisa boa. – as palavras de Mu foram suficientes para que Shaka virasse para ele completamente descrente. Era considerado uma coisa boa ter vontade de matar alguém? A pergunta não precisou ser feita com palavras, Mu a entendeu apenas com a expressão de Shaka. – Não é errado querer matar pessoas. Apenas matá-las. Como eu pensei, você está voltando a ser um humano, meu amigo. Está finalmente se afastando alguns passos de Deus. Está com raiva, está feliz, está sentindo ódio, preocupação, afeto. São sentimentos que só humanos têm, e que você só pode sentir por outro humano. Até mesmo os deuses sucumbem a eles às vezes. Estava imaginando quanto demoraria a você sucumbir também.

 

Shaka não respondeu, completamente contrariado. Não podia negar que o que o amigo falava era a pura verdade. Durante toda a sua vida, tinha se desligado de todos aqueles sentimentos para alcançar um nível que naquele momento, sabia não querer mais. Gostava de sentir de novo, mesmo que fosse uma vontade assassina acima de todos os bons sentimentos.

 

– Não se preocupe, ela vai melhorar logo. Parece uma garota forte. – Mu disse, já seguindo na direção da porta do quarto. – E vai lembrar de tudo também.

 

– Eu não desejo mais isso. – Shaka disse, ainda voltado para Gabrielle. – Se souber quem fez tudo aquilo com ela… não sei se posso me responsabilizar pelos meus atos.

 

Mu sorriu de novo, não resistiu e se aproximou do loiro, batendo de leve no ombro dele.

 

– Bem vindo ao nosso mundo, Shaka. – ele disse, apenas, para se afastar logo em seguida. – Até outra hora, voltarei pra Áries antes que volte a chover.

 

Shaka apenas fez um sinal positivo com a cabeça e Mu saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Ficou no quarto por alguns minutos a mais, até sair para deixar que ela descansasse, a tarde passava rapidamente e logo a noite cairia, mas ela ainda não tinha recobrado a consciência. Durante a noite inteira, o virginiano não conseguiu adormecer, por mais que rodasse na cama enorme no quarto do lado oposto à ala em que ela dormia.

 

xXx

 

Quando Gabrielle abriu os olhos novamente, ficou feliz de não ter sonhado com nada, mesmo se tivesse sonhado, não conseguia se lembrar. Não havia boas lembranças do que seria a sua verdadeira família, mas também não havia a continuação das memórias torturantes que a fizera despertar a raiva a ponto de se machucar.

 

Sentia o corpo extremamente pesado e cansado, mesmo que estivesse coberta até o pescoço, sentia frio. Precisava manter a boca aberta para respirar, em vias do nariz congestionado, a visão estava um pouco turva, mas logo focalizou o quarto com o qual se acostumara nos últimos poucos meses vivendo no Santuário.

 

Pensou em se sentar, mas desistiu de imediato ao ver que não tinha forças suficientes para tal, portanto, apenas levantou as mãos para ver o motivo pelo qual sentia os movimentos dos dedos tão restritos. As duas tinham sido cuidadosamente enfaixadas, e havia uma fraca mancha rosada apenas na mão direita. Não demorou muito e deixou as mãos caírem na cama, sentia cada parte de seu corpo amolecida e sem forças para responderem aos seus comandos.

 

Cogitou a possibilidade de voltar a dormir, sentindo as pálpebras pesadas, mas resistiu à tentação, certa de que daquela vez, em plena consciência, seria atormentada por novos pesadelos.

 

– Você acordou… sente-se melhor?

 

– Shaka… – ela tentou levantar o tronco mais uma vez para encará-lo entrando no quarto, uma tentativa falha.

 

– Eu trouxe seu café da manhã, precisa se alimentar, ou não vai melhorar.

 

O virginiano colocou uma bandeja no criado-mudo ao lado da cama dela. Gabrielle deixou um sorriso de lado escapar ao ver como ele estava reagindo preocupadamente… nos poucos dias que passara lá, Shaka de Virgem não era o tipo de pessoa que reagia daquele jeito, era apenas frio e distante, salvo algumas exceções em momentos particulares.

 

– Isso não parece com você. – a morena deixou as palavras escaparem num fio de voz, mexendo-se na cama, um pouco incomodada.

 

Shaka se aproximou e segurou-a pelos ombros, ajudando-a a se sentar e ficar encostada num dos travesseiros. Puxou a cadeira que estava lá, onde sentara no dia anterior apenas para observá-la, e sentou-se de novo, pegando uma caneca fumegante na bandeja e estendendo para a garota.

 

– Tome isso, vai se sentir melhor.

 

– Não quero… – Gabrielle contraiu as sobrancelhas ao observar o líquido translúcido dentro da caneca, e sentir um nó na garganta só de pensar em beber ou comer alguma coisa.

 

– Você precisa.

 

O tom autoritário dele fez com que ela observasse o chá mais uma vez, até finalmente levar o copo à boca, tomando alguns bons goles até parar para tossir um pouco e estender a caneca metade vazia de volta para o cavaleiro. Shaka segurou-a e não pôde deixar de tocar na pele da mão dela e notar como estava quente. Se estivesse com os olhos abertos, não duvidaria que o rosto dela estaria vermelho também.

 

– Você está queimando em febre. – o tom era ainda mais preocupado, enquanto colocava a caneca de volta à bandeja.

 

– Estou? Mas aqui está frio… – Gabrielle puxou o cobertor até a altura de seus ombros de novo, segurando-o fortemente.

 

– Coma alguma coisa.

 

Gabrielle fitou a bandeja por alguns segundos, tinha algumas fatias de maçã e uvas, torradas e geléia e algumas fatias de pão, além da caneca de chá que já se servira, além de um copo de água. Sentiu o estômago embrulhar com a idéia de comer alguma coisa, mas para não contrariar a boa vontade e a preocupação que Shaka estava mostrando com o seu estado, serviu-se de uma das torradas e depois, dois pedaços da maçã.

 

– Eu dormi… desde ontem de manhã? – perguntou, entre uma mordida e outra na maçã.

 

– Sim.

 

– Mas ainda me sinto tão… cansada.

 

– Precisa descansar mais, na condição em que está. – Shaka apoiou os cotovelos nas pernas e curvou-se para pousar o queixo nas mãos, numa expressão ainda mais pensativa e preocupada. – Não devia ter feito aquilo.

 

Imediatamente, ela parou de mastigar a maçã e engoliu os pedaços inteiros de uma vez, sentindo a garganta doer com aquilo. Fitou as mãos pousadas sobre o lençol, fechou-as apertando o tecido por um momento, até sentir uma pontada de dor nos ferimentos ainda abertos, e parar.

 

– Eu não quero… lembrar disso. – disse, apressando-se em pegar outro pedaço de maçã para talvez se ocupar, embora não tivesse vontade de comer mais nada. – Não quero… descobrir como o pesadelo termina, e não ter forças nem para… nem para… – ela apertou fortemente o tecido com a mão que não segurava a maçã, evitando que as lágrimas escapassem de seus olhos. – Não ter forças pra nada.

 

Shaka não respondeu, simplesmente estendeu a mão até pousar sobre a dela, fazendo com que ela afrouxasse o aperto no tecido e se acalmasse.

 

– Não pense nisso. – daquela vez, era ele que estava se controlando, ao lembrar mais uma vez da manhã anterior. – Você devia descansar agora, pra se recuperar.

 

– Não quero descansar, não quero dormir.

 

– Você precisa.

 

– Não importa. Sei que se fechar os olhos, vou ter pesadelos de novo, e agora, não tenho mais forças sequer pra ficar com raiva. – ela virou o rosto para fitar a parede, sorrindo fracamente com as próprias palavras.

 

Shaka respirou fundo, qualquer palavra dela soava dolorida, especialmente quando se referiam às lembranças recentes. Soava também como provocações a seus ouvidos que não conseguia controlar, agora, com as palavras dela, seu instinto assassino estava desperto novamente. Até mesmo a idéia de Milo de um treinamento corpo-a-corpo parecia bem interessante, uma ótima forma de descarregar sua tensão, já que a meditação não estava ajudando.

 

– Apenas tente. – o loiro disse finalmente, levantando-se rapidamente da cadeira, considerando seriamente a possibilidade de passar o resto do dia treinando à moda antiga. – Se não dormir, pode piorar.

 

Quando ele deu um passo para sair, precisou parar quando ela segurou seu pulso fracamente.

 

– Fique aqui… – a voz fraca dela soou como uma súplica, e se tivesse os olhos abertos, veria o sorriso singelo no rosto dela. – Sempre que está comigo, eu tenho bons sonhos. Fique só até eu dormir…

 

Por um momento, ele ficou sem reação. Gabrielle arrumou-se desajeitadamente na cama, deitando-se de novo, finalmente soltando o pulso de Shaka, sem forças para manter o braço erguido por muito tempo. Ficou encarando-o apenas com os olhos semi-abertos, esperando uma resposta que não tinha vindo ainda.

 

– Por favor. – ela completou, deixando os olhos fecharem por completo.

 

Shaka não precisou pensar duas vezes para sentar-se na mesma cadeira ao lado da cama, colocando uma das mãos sobre a dela, para provar que ainda estava lá. Um sorriso se desenhou nos lábios da jovem enquanto o silêncio tomava conta do ambiente. Não foram precisos muitos minutos para que ela adormecesse, e Shaka logo percebeu, com a respiração mais tranqüila dela.

 

Apenas naquele momento, os orbes azuis voltaram a fitar a figura feminina adormecida. Ela respirava com dificuldade pela boca e a expressão era de visível incômodo. Ele se levantou da cadeia apenas para se aproximar e fitá-la mais de perto. Debruçado sobre o corpo dela, precisou controlar-se para não tocar-lhe os lábios rosados num beijo tão desejado. Ao contrário, afastou-se de vez e saiu do quarto quase batendo a porta com força, sentindo raiva mais uma vez ao lembrar o que ela tinha dito no dia anterior.

 

O resto da manhã ele se preocupou em treinar como não treinava havia uns dez anos, voltando em curto espaço de tempo ao quarto da garota, apenas para conferir o estado dela. Nas várias vezes que a observara, ela não parecia disposta a acordar, e o sono parecia realmente tranqüilo. Mal sabia ele a profusão de imagens desordenadas que passavam pela mente dela, desde aqueles constantes pesadelos a momentos mais simples e felizes com aqueles que deviam ser sua família e seus amigos. Faltava apenas uma peça, aquela capaz de explicar como fora parar naquele lugar sendo tão maltratada quando sua família parecia amá-la de verdade.

 

Ela dormiu durante o resto da manhã e o início da tarde, até Shaka voltar ao quarto dela depois do almoço pensou em levar-lhe mais comida, mas ela não parecia disposta a acordar tão cedo. A febre ainda estava alta, ele constatou ao tocar a testa dela, e ainda havia dificuldade para respirar, entretanto, a expressão calma denunciava que naquele momento, devia estar tendo um bom sonho, e ele definitivamente não seria capaz de acordá-la naquele momento.

 

Desviou-se dela apenas ao perceber que um dos servos do Santuário já estava se aproximando do quarto. Antes que ele tivesse chance de bater na porta, o virginiano saiu e fechou a porta atrás de si, para não incomodarem o sono de Gabrielle.

 

– Cavaleiro de Ouro, Shaka de Virgem…

 

Ele fez uma breve reverência, o que deu tempo a Shaka para questionar.

 

– Sim? Mensagem de Athena?

 

– A Deusa requer a sua presença no Salão do Grande mestre, assim como da jovem visitante. – o homem de meia idade disse, mantendo uma postura ereta elegante.

 

– Irei imediatamente.

 

O servo curvou-se exageradamente de novo, para poder dar a volta e desaparecer no longo corredor mal-iluminado. Shaka pensou em entrar no quarto de novo, mas hesitou ao levar a mão ao trinco da porta. Não queria ter que deixá-la sozinha, mas não podia negar uma ordem direta de Athena, além do que, poderia ser alguma informação sobre a verdadeira identidade da garota.

 

Virou-se para sair andando pelo longo corredor, para vestir a sua armadura de ouro de Virgem e atravessar as seis Casas Zodiacais que o separavam do Salão do Grande Mestre. Saga estava, dessa vez, em sua armadura dourada de gêmeos, e não era segredo que ele tinha acabado de voltar de viagem do Japão, escoltando Athena. Ele apenas acenou a cabeça rapidamente para Shaka, em sinal de cumprimento, e afastou-se, deixando o loiro passar.

 

O loiro entrou no Salão e em seguida, passou pelas portas duplas menores do lado direito do aposento, sentindo-as serem fechadas às suas costas pelos servos que ladeavam a entrada, para poder finalmente sentir a presença de Athena bem ali, sentada numa das elegantes cadeiras à uma mesa de simples seis lugares. Ele imediatamente, como de costume, ajoelhou-se sobre uma das pernas, curvando-se em seguida em reverência.

 

Saori deixou a xícara que tinha em mãos sobre a mesa e se adiantou na direção do Cavaleiro de Virgem, parou a um passo de distância dele.

 

– Levante-se, Shaka de Virgem.

 

Ele fez exatamente como a garota mandou, virando o rosto para a deusa, com seus olhos devidamente fechados, impossibilitado de ver o sorriso que surgiu nos lábios dela.

 

– Eu suspeitei que a garota pudesse estar doente por conta do cosmo fraco, aconteceu alguma coisa? – ela perguntou, sem precisar especificar que mesmo tendo ordenado, Gabrielle não tinha acompanhado o virginiano.

 

– Ela ficou algum tempo na chuva e adoeceu.

 

– Que pena, queria que ela estivesse aqui. – Saori andou na direção de um conjunto de dois sofás, com dois e três lugares e uma poltrona, cercando uma pequena mesa de centro. – Venha aqui e sente-se, Shaka.

 

– Eu acho que…

 

– Eu acho que você deveria mesmo sentar. – Saori foi enfática, sabendo que ele estava prestes a continuar em sua pose impecável de protetor da deusa. Imediatamente ele a acompanhou até sentar-se na poltrona de frente para o sofá em que Saori tinha se acomodado. – Então, ela conseguiu lembrar algo?

 

– Algumas muitas lembranças traumáticas, que explicam o fato dela ter esquecido tudo. Sempre sonha com o mesmo lugar escuro e as mesmas pessoas maltratando-a. – Shaka disse, mantendo uma postura elegante sentado na poltrona, a coluna reta e as mãos sobre os braços do móvel. – As únicas boas lembranças não mostraram muito mais que a possibilidade de ela ter um irmão mais novo.

 

– Esses anos devem ter sido bem difíceis para ela. – a expressão de Saori era entristecida.

 

– Isso significa… que descobriu alguma coisa? – Shaka instintivamente curvou-se de leve para frente, prendendo o ar na expectativa da resposta. Saori sorriu de imediato.

 

– Sim. Foi um pouco difícil achar informações apenas com a imagem dela, por isso demoramos muito tempo, até mesmo com todos os contatos das empresas Kido. Mas com esforço, e com o que acabou de dizer sobre os pesadelos e o provável irmão mais novo, tenho certeza que encontramos a pessoa certa.

 

– Então…? Quem é ela afinal? O que aconteceu?

 

– O nome dela é Suzanna Morris, completou 19 anos de idade há pouco mais de dois meses, e tem como família o pai, Isaac, a mãe, Sophia, e o irmão mais novo, Joshua, agora com dezessete anos, todos moram em Oxford, na Inglaterra. Há dois anos ela ingressou no curso de História da Arte na Universidade de Oxford, mas não teve chance de cursar sequer um mês inteiro de aula. – Saori começou a contar e deu uma breve pausa.

 

– Foi aí que começou o momento dos pesadelos dela?

 

– Creio que sim. – Saori continuou. – Três semanas após o início das aulas, ela foi seqüestrada. Não é muito mistério lá no Reino Unido quem é o pai de Suzanna, ou melhor, de quem Suzanna é filha. Isaac Morris é o dono de um dos maiores grupos empresariais da Inglaterra, com multinacionais espalhadas pelo mundo, além de rico, é uma pessoa muito influente mesmo no meio político. Como a primeira filha, mesmo não sendo a herdeira dos negócios do pai, claro que ela sempre apresentou muita tentação como alvo de seqüestro, e mesmo que durante longos anos ninguém tivesse tentado aquilo de fato, por incrível que pareça, finalmente conseguiram. Os seqüestradores pediram o resgate, que foi pago como o devido, mas não a libertaram. Ao invés disso, pediram mais dinheiro três outras vezes, e mesmo com o pagamento, continuaram sem libertá-la. Isaac se recusou a continuar pagando e as autoridades policiais nunca conseguiram encontrar os responsáveis. Bom, se eles estavam no vilarejo aqui do Santuário, eu imagino o porquê, já que é praticamente desconhecido ao resto do mundo… é o esconderijo perfeito.

 

Shaka precisou de todos os anos de meditação e treinamento para controlar a raiva que sentia naquele momento. Eles estavam bem ali, bem perto deles, e a tinham machucado tanto, aquele tempo todo, e nenhum cavaleiro, fosse de ouro ou apenas aspirante, tivera capacidade de notar aquilo.

 

– Sei como se sente. – Saori disse, percebendo fácil a alteração no cosmo dele. – Ter uma coisa assim tão terrível acontecendo bem aqui, no lugar que deveria ser o mais seguro do mundo. Mas não é nossa culpa… os homens são assim, não podemos evitar isso de acontecer, e de agora em diante, eu mesma me certificarei de que esse vilarejo não seja esconderijo de nenhum tipo de ato desses. No momento, eu tenho esperança de que ela se recorde de tudo depois que contarmos o que aconteceu, e aí, poderemos encontrar os seqüestradores e entregá-los a autoridade de direito.

 

Shaka não soube se Athena tinha notado aquela oscilação novamente em seu cosmo ao ouvir aquilo, ele já tinha se alterado antes, mas ela não imaginava qual o real motivo. Esperava mesmo que Athena fosse entregá-los às devidas autoridades, ou ele adoraria a chance de matá-los antes de terem qualquer chance de julgamento.

 

– Então… – ele finalmente se acalmou um pouco ao notar o detalhe mais importante daquela conversa. – Ela realmente pode voltar para casa…

 

– Sim, com certeza. – Saori sorriu satisfeita. – Já providenciei o vôo para ela voltar para casa e me encarreguei pessoalmente de informar a situação à família dela. Estão ansiosos para revê-la.

 

– Certamente.

 

– Agradeço pela sua atenção com nossa visitante. Assim que melhorar, ela poderá partir e voltará à sua vida normal. – Saori disse.

 

– Sim, tudo voltará ao normal. – ele concordou, perdido em idéias. – Eu deveria voltar agora… caso ela precise de algo.

 

– Claro. Tenho certeza que ela ficará muito animada de descobrir a notícia.

 

Saori se colocou de pé logo após Shaka, ele andou na direção da porta e se voltou para a Deusa, para curvar-se exageradamente.

 

– Athena… com sua permissão.

 

– Cuide bem dela.

 

Ele apenas acenou em acordo com a cabeça e se apressou de volta à Casa de Virgem. Ficou aliviado de ver que ela ainda dormia e que mesmo com a dificuldade em respirar, a febre estava diminuindo. Sentou-se na cadeira ao lado da cama e mais uma vez, os olhos azuis fitavam intensamente a figura feminina debilitada.

 

– Melhore logo. – as palavras saíram quase num sussurro. – Há uma família de verdade esperando por você…

 

Ele suspirou, fechando os olhos de novo. Finalmente tudo estava esclarecido, ela poderia voltar para sua casa de verdade, para pessoas que a amavam de verdade. Entretanto, ele não conseguia se sentir feliz com aquilo… tinha a impressão de que preferiria não descobrir a verdade, que ela continuasse sem lembrar… aí, poderia tê-la por perto durante mais tempo, e poderia ter a chance de continuar a confortá-la dos seus pesadelos.

 

Balançou a cabeça para os lados, levantando-se de imediato. Aproximou-se da cama e tocou a mão dela levemente, até segurá-la com cuidado. Sabia que aquilo aconteceria mais cedo ou mais tarde, que ela voltaria para o lugar de onde pertencia. Chegou a ser egoísta o suficiente para imaginar que se aqueles seqüestradores tivessem sido os pais dela, ele poderia deixá-la ali para sempre, protegendo-a.

 

Shaka ainda se demorou uns minutos ali, apenas observando-a enquanto dormia, segurando-lhe a mão, até finalmente, num movimento silencioso, afastar-se e alcançar a porta para sair, sem olhar para trás uma vez sequer. Foi no momento que fechou a porta atrás de si que percebeu como realmente se sentia: feliz por ela ter um lugar para voltar, triste por saber que chegara a hora dela partir. Conseguia lembrar finalmente porque estivera tão empenhado em subir tão próximo de Deus nos últimos anos de sua vida: ser humano doía.

 

xXx

 

– Você lembra de tudo o que dissemos, não é?

 

A morena rodou os olhos, deixando um suspiro pesado escapar dos lábios. Estavam em frente a uma grande casa em estilo modernista, cheia de enormes janelas de vidro, rodeada por vários caminhos ladrilhados, estatuetas de anjos e um jardim imenso, que devia se estender para os fundos da casa, além de uma piscina no lado oeste da mansão. Um carro preto estava parado bem diante da entrada, e um homem de aparência jovial, com os cabelos penteados elegantemente para trás, que misturavam curiosamente os fios brancos e pretos deixando-o ainda mais altivo, estava ao lado de uma mulher também de idade, entre os quarenta e cinqüenta anos, de cabelos curtos e pintados de castanho, os olhos expressivos e no momento, severos.

 

– Eu lembro, mãe. Pelos deuses, até parece que vocês nunca viajaram antes! Vocês fazem isso todo fim de semana! – a garota reclamou, tirando a franja que caía insistentemente sobre os olhos claros.

 

– Não fale assim com sua mãe, Suzanna. – o homem interveio na conversa. – Cuide do seu irmão também, o motorista vai ficar à disposição de vocês.

 

– Okay, eu sei, pai. – ela acenou de maneira positiva. – Façam uma boa viagem.

 

– Voltamos semana que vem. – a mulher mais velha voltou a falar. – Se cuidem.

 

Ela se aproximou e abraçou a filha, dando-lhe um beijo no rosto. O homem fez o mesmo, e depositou um beijo na testa dela, daquela vez. Com um aceno rápido de Suzanna, os dois entraram no carro e o veículo seguiu para fora da enorme propriedade. Ela deu a volta para seguir na direção da casa… sua casa. Um jovem apareceu na porta de entrada, os cabelos castanhos e curtos tão assanhados quanto possível, os olhos vermelhos de quem tinha acabado de acordar, vestindo apenas uma calça de moletom, bocejando demoradamente.

 

– E aí, já acabaram com todas as instruções de sempre? – ele perguntou, enquanto Suzanna seguia subindo as escadas.

 

– Até que enfim! – ela rodou os olhos, terminando de subir o pequeno lance de escadas até a entrada da mansão. – E você me deixou aqui sozinha pra ouvir tudo.

 

– Claro, irmã. Sabe como eu te amo, não é? – o garoto deixou um enorme sorriso surgir nos lábios. Ele devia ser uns vinte centímetros mais alto que Suzanna, mas além de saber que ele era dois anos mais novo, eles eram muito parecidos.

 

– Vai sair hoje, Josh? – ela perguntou, quando alcançou a entrada da casa.

 

– Não sei, acho que não.

 

– Eu vou pro shopping mais tarde. Vou pegar o motorista emprestado então. – ela deu de ombros, seguindo para dentro da casa.

 

– Traga pizza pra mim quando voltar! – Joshua gritou para a irmã antes que ela desaparecesse dentro da casa.

 

A morena se remexeu na cama, e em seguida, as imagens que estavam em sua mente se esvaíram para dar lugar a uma cena completamente nova, mas estranhamente familiar.

 

– Meninas, eu tenho que ir agora, sério! Meu irmão idiota está sozinho em casa… eu vejo vocês amanhã lá em casa.

 

– Toma cuidado, hein, Suz. – uma jovem loira acenou para ela, seguindo numa direção diferente do local fechado e bem movimentado.

 

– Pode deixar. Até mais!

 

Ela deu as costas para as duas jovens que anteriormente a acompanhavam e seguiu um caminho já bem conhecido para sair do prédio absurdamente movimentado. O relógio já marcava nove da noite, mas as pessoas continuavam a andar pelo local, entrando e saindo de todas as lojas possíveis que formavam um dos grandes shopping centers da cidade.

 

A morena ainda precisou descer dois andares até sair do prédio, andando pelo estacionamento até onde a vaga em que o carro do motorista da família estava estacionado. Ela o cumprimentou rapidamente, e ainda acenou em sinal para que ele não se importasse em abrir a porta para ela. Entrou no carro e o motorista fez o mesmo, já dirigindo para fora do estacionamento do shopping.

 

Por inúmeros minutos, ela ficou apenas concentrada no iPod, ouvindo músicas, olhando uns livros que havia comprado mais cedo. Apenas depois de mais de meia hora dentro do carro, lançou os olhos para fora da janela, observando o caminho que estavam seguindo. Não era um caminho conhecido.

 

– Ei, Mike, que caminho é esse? – perguntou, tentando olhar o rosto do motorista pelo retrovisor, mas a aba do cap que ele usava impedia que ela tivesse uma visão melhor do homem. – Estamos demorando demais pra chegar em casa! Josh vai reclamar que a pizza está estragada, provavelmente.

 

– Mike está de férias hoje.

 

A voz que ela ouviu foi completamente diferente da que esperava, e antes que conseguisse associar tudo o que estava acontecendo, só conseguiu ver os olhos verdes bem claros fitando-a pelo retrovisor, antes da janela se erguer entre ela e o banco do motorista. Pensou em protestar, em perguntar o que estava acontecendo, em tentar sair dali… mas no momento seguinte, tudo tinha escurecido ao seu redor, para escondê-la numa escuridão imensa.

 

Não sabia quanto tempo tinha passado naquele lapso de inconsciência, não sabia se a escuridão era de sua memória ou apenas do pesadelo que estava tendo, mas quando abriu os olhos novamente, o ambiente era completamente diferente, frio, cercado por vozes que ela julgara completamente irreconhecíveis.

 

– Não vai deixá-la aqui! Se eles nos acharem…

 

– Não precisa se preocupar tanto, eles nunca vão encontrá-la, e poderemos ter o dinheiro que quisermos. – a voz que ela julgava ser do suposto motorista respondeu. – Esse vilarejo é literalmente uma bênção divina… completamente desconhecido ao resto do mundo por ficar tão próximo do Santuário.

 

– Espero que seja mesmo. – a outra voz masculina retrucou, e apenas naquele momento, Suzanna conseguiu abrir os olhos do que parecia ter sido uma longa noite depois de um porre.

 

A visão ainda estava um pouco turva e demorou a focalizar os dois homens que estavam alguns passos à sua frente, em pé. O lugar onde estava era escuro, úmido, com o chão frio cheio de terra e as paredes de tijolos de barro. Definitivamente, ela não gostava do lugar. Mas o que fez seu coração quase saltar para fora da boca foi a junção de todo o contexto ao seu redor, especialmente por estar amordaçada, os braços e pernas imóveis e doloridos nos lugares onde cordas grossas machucavam sua pele.

 

Os olhos claros se arregalaram ligeiramente, olhando de um homem a outro, tentando observar alguma possível saída ao seu redor. Mas o lugar mais parecia uma caixa. Havia uma mesa de madeira rústica atrás dos dois homens, e bem à sua direita, encostada à parede, um pequeno lance de escadas de onde vinha um feixe de luz fraco. Logo ela descobriu que a fraca iluminação do local era auxiliada por um tipo de lamparina presa na parede à sua esquerda. Não prestou atenção no que os homens disseram a seguir, queria apenas levantar-se do chão sujo e sair dali o quanto antes, ou acordar do pesadelo… eles pareciam não ter notado ainda que ela estava consciente.

 

– E quando é que vamos ganhar o dinheiro, afinal? – o homem alto, forte, moreno, com olhos fundos e severos, a barba por fazer, perguntou, exasperado.

 

– Deixe isso comigo, meu velho amigo. – um sorriso se formou nos lábios do outro. Ele tinha a pele clara, cabelos em corte militar castanhos, os olhos absurdamente verdes. – Eu vou tomar conta de todo esse detalhe financeiro, e você vai só receber sua ajuda de custo.

 

– Eu espero!

 

Naquele momento, os olhos dela já estavam lacrimejando e ela sentiu os rastros frios correrem por seu rosto, o coração apertando ainda mais com a situação impotente em que se encontrava, e principalmente, como deixara aquilo acontecer. Infelizmente, tudo parecia cada segundo mais real, e ela não queria confirmar que o sonho era apenas ilusão.

 

– Oh, querida, você acordou!

 

Os olhos dela se arregalaram ainda mais ao perceber que uma mulher tinha parado bem a sua frente, ajoelhada diante de si. Sequer tinha percebido a chegada dela, e no momento, as atenções de todos os presentes estavam voltadas sobre sua figura amedrontada. A proximidade da senhora a deixou ainda mais assustada. A mulher aparentava seus mais de quarenta anos, gorda, com os lábios finos curvados num pequeno sorriso, escondido pelas bochechas avermelhadas. O olhar dela era vidrado, insano, quase doentio, e Suzanna sentiu algumas outras lágrimas escorrerem de seu rosto ao imaginar o que poderia lhe acontecer dali em diante.

 

– Oh, meu amor, eu senti tanta saudades de você! – a mulher continuou a falar, a voz carregada. – Veja só o que eu guardei! Eu sabia que você voltaria, sabia que não tinha partido de verdade, não é?

 

Ela mostrou uma boneca de pano em frangalhos, com os cabelos pela metade, um olho de botão faltando, o pequeno vestido verde rasgado e um sem um dos braços.

 

– Era a sua boneca preferida, não era? Oh, querida… por que está chorando? É de felicidade? – a mulher continuava a falar como se não fosse um problema Suzanna estar com um pedaço de pano cobrindo sua boca, impedindo-a de fazer qualquer tipo de protesto.

 

A mulher estendeu a mão para tocar o rosto dela, mas no mesmo momento, Suzanna desviou do toque dela, sentindo todo o corpo começar a estremecer mais ferozmente. No momento seguinte, desejou não ter se desviado. A pancada que sentiu no rosto foi tão forte que o gosto metálico de sangue se espalhou lentamente pela sua boca.

 

– O que acha que está fazendo? – a mulher gritou, completamente histérica. – Eu não lhe ensinei a ignorar sua mãe, sua bastarda!

 

Quando a mão dela se ergueu no ar de novo, Suzanna se encolheu completamente, os soluços sendo contidos pela mordaça em sua boca. A pancada que viria a seguir, ela sabia, seria ainda mais forte… até que um dos homens ali presentes achassem que o espancamento já fora suficiente.

 

Ela sabia… sabia tudo o que viria a seguir, sabia o fim do pesadelo que durara dois anos inteiros.

 

xXx

 

A luz do sol praticamente não tinha alcançado todo o Santuário ainda, mesmo que o astro já despontasse no horizonte àquela hora. Shaka andou a passos largos e calmos na direção da ala da Casa de Virgem onde Gabrielle continuava hospedada. A presença dela estava consideravelmente mais calma e o cosmo parecia ter-se recuperado bem nos dois dias que ela passara dormindo, praticamente. Entretanto, ele ainda não esperava encontrá-la completamente consciente, mesmo ainda em fase de recuperação, sentada na beira da cama parecendo alheia ao mundo ao seu redor.

 

Mantendo os olhos fechados, como há tanto já estava acostumado, ele apenas precisou empurrar um pouco a porta que estava apenas encostada. Gabrielle não voltou-se para ele por alguns momentos, e Shaka imaginou se deveria falar alguma coisa, mas um suspiro simples quebrou o silêncio, um suspiro aliviado.

 

– Eles não eram ruins, afinal de contas… – Gabrielle falou, finalmente desviando o olhar de algum ponto interessante em suas mãos para voltar-se para Shaka. – Sabe… eu tenho uma família que me ama de verdade.

 

Shaka não pôde ver, mas conseguia sentir fácil e imaginar rapidamente o sorriso simples que havia no rosto da mulher ao dizer aquilo. Ele ficou parado por uns minutos na porta ainda. Então, ela conseguira lembrar de tudo… o único problema era que ele não estava preparado para reagir àquilo. Passara tanto tempo imaginando como contaria a ela quem ela era de verdade, o que tinha acontecido, como passaria todas as informações de Athena, ou se simplesmente a levaria para ver Saori, que a possibilidade de ela lembrar sozinha sequer tinha passado por sua mente. Mas ali estava… a única e última prova necessária para que ela partisse, para que voltasse à sua vida normal.

 

– Eu nem sei o que fazer. – a jovem continuou a falar, interrompendo os pensamentos de Shaka, levando uma das mãos ao cabelo desordenado. – Deus… como eu quero voltar pra casa!

 

Ela precisou cobrir o rosto com as mãos quando as lágrimas escorreram pelo canto de seus olhos, o sorriso ainda abobalhado em seu rosto. Não importava se ainda estava doente, se sentia-se fraca, a única coisa que havia em sua mente naquele momento era a possibilidade concreta de voltar pra casa, finalmente.

 

– Você já pode voltar. – Shaka disse, mantendo-se parado ao lado da porta, como se algum tipo de força o impedisse de andar até ela, de tentar confortá-la… bom, aquele era o problema, ela não precisava mais ser confortada. – Eu estava esperando que você recuperasse a consciência, mas Athena achou sua família, sua identidade, sua história. Assim que você estiver pronta, eu a levarei até Athena, e ela pode providenciar a sua volta…

 

– Eu vou voltar pra minha família… finalmente, eu vou voltar… – ela escondeu o rosto ainda mais entre as mãos, as lágrimas ainda escorrendo pelos seus olhos. – Faz tanto tempo… tanto tempo!

 

Gabrielle deixou que o sorriso se alargasse e moveu as mãos para limpar as lágrimas do rosto, para poder erguer os olhos e ver Shaka.

 

– Isso não é ótim…

 

Ela parou subitamente de falar ao notar que ele não estava mais ali, e a porta estava entreaberta ainda. Num instante, o sorriso sumiu de seu rosto, e ela piscou duas vezes para poder associar que o quarto realmente estava vazio. Por um segundo, a felicidade de lembrar quem era e para onde poderia voltar se esvaiu, ao notar que estava sozinha de novo, mas Shaka era daquele jeito, já estava acostumada com a personalidade anti-social dele com a quantidade de dias que ficara ali… ainda assim, sentia-se ligeiramente incomodada. Queria que ele estivesse ali, para compartilhar aquela felicidade de descobrir quem era.

 

– Deixe de besteiras, Gabrielle! Você vai voltar pra casa agora! – ela balançou a cabeça ligeiramente para os lados, suspirando demoradamente, até um sorriso se formar em seus lábios de novo. – É Suzanna…

 

A jovem ainda ficou um tempo incontável no quarto, apenas relembrando todos os bons momentos possíveis, simplesmente para compensar todos os pesadelos que a perseguiram aqueles muitos dias que estava no Santuário. Quando o sol já ia alto na manhã, ela finalmente saiu do quarto para poder tomar café. Ainda estava um pouco febril, mas nada que a impedisse de sair dali, de respirar ar puro, e claro, de conversar com Shaka. Queria tanto falar a ele de seu mundo verdadeiro, não daquelas más lembranças que tinha dos dois últimos anos, mas sim da sua vida de verdade, do seu nome, da sua família.

 

Quando alcançou a sala, entretanto, Shaka estava terminando de falar com um daqueles servos, que muito parecia com o de Athena.

 

– Ah, Gabr… Suzanna. – Shaka voltou a atenção para ela, e por alguma razão que a jovem não conseguiu imaginar, sentiu-se incomodada com o chamado dele pelo seu nome de verdade. – Este servo está aqui para levá-la até o templo de Athena.

 

– Ahn? – ela piscou duas vezes. – Ah… claro, ir ver a Saori.

 

– Ela vai providenciar para que volte à Inglaterra. – Shaka disse, sem fazer nem menção de se aproximar da morena.

 

– Isso seria ótimo. – Gabrielle sorriu.

 

– Senhorita… – o servo fez um sinal com a mão, pedindo para que Gabrielle o acompanhasse, e logo ela começou a andar para segui-lo. Entretanto, Shaka continuou parado no meio da sala. Ela voltou a atenção para o loiro, ainda com os olhos fechados e a expressão séria de sempre.

 

– Você não vem…?

 

– Eu preciso treinar. – Shaka deu as costas de imediato e andou na direção exatamente oposta a ela.

 

Gabrielle pensou em chamá-lo de novo, mas mordeu o próprio lábio. Por um momento, pareceu que ele não queria mais estar perto dela. Chamá-la pelo nome verdadeiro foi como se afastar um passo… não lhe acompanhar, foi como afastar-se o segundo… e dar-lhe as costas, era quase como lhe dizer adeus antes da hora. Ela não sabia o que estava acontecendo, mas tinha certeza que havia algo de errado com Shaka, e não gostava nada daquilo… queria que ele estivesse contente por ela, e com ela… mas talvez ele não soubesse mostrar aquilo também. Com um suspiro pesado, simplesmente continuou seguindo o servo até sair da Casa de Virgem e fitar o longo caminho que havia adiante, um longo caminho com o qual estava estranhamente acostumada. Logo, entretanto, não teria mais que subir e descer aquelas escadarias antigas, quer fosse para visitar Saori, quer fosse para treinar com as amazonas… voltaria para os elevadores, escadas rolantes e tudo mais o que havia no seu mundo antigo. Curiosamente, sentiu a felicidade de voltar para casa se esvair de novo. Tinha passado maus bocados os dois últimos anos, mas os últimos meses tinham sido perfeitos, e sentiria muita saudade dali.

 

Antes de alcançar a Casa de Libra, olhou para trás para fitar as colunas de entrada de Virgem. Sabia do que ia sentir mais saudade. Antes de alcançar o templo de Athena, já estaria se questionando se estava disposta a sentir aquelas saudades…

 

xXx

 

Shaka precisou respirar fundo pela terceira vez só na última hora. A concentração tinha resolvido abandonar-lhe de vez, e por mais que tentasse continuar sua meditação, estava ficando impossível. Não conseguia acreditar que realmente tinha deixado-a partir daquele jeito, sem ao menos um adeus apropriado. Estava apenas fugindo daquele mundo humano de novo, ou ao menos tentando… mas começava a parecer bem mais difícil voltar a subir os degraus até Deus. Não conseguia parar de pensar que devia estar feliz por ela, que devia ter ao menos tentado demonstrar aquilo… mas ainda estava incomodado com o fato de que ela estava partindo, partindo para sempre. Felicidade? Tristeza? Não fazia idéia do que estava se passando dentro de si, sabia apenas que era algo forte o suficiente para não deixá-lo ao menos se concentrar na meditação com a qual já devia estar acostumado havia mais de duas décadas.

 

Por um momento, quase abriu os olhos, quando o quarto suspiro escapou de seus lábios e precisou passar a mão pelos cabelos loiros. Não importava o sentimento que estava se passando por seu corpo naquele momento… importava apenas que deixara a única chance de se despedir escapar por entre seus dedos. Àquela altura, ela já devia estar a caminho do aeroporto, e então, estaria partindo de volta à Inglaterra.

 

– Desculpe por atrapalhar, de novo…

 

Mais uma vez, Shaka teve a intenção de abrir os olhos com a surpresa, em resposta à voz que se pronunciava tão perto de si, e que definitivamente não devia estar ali. Como outras vezes desde que ela chegara ao Santuário, estava tão distraído, que não tinha percebido a simples presença se aproximando, distraído o suficiente para não perceber o movimento dela pelo Santuário e também dentro da Casa de Virgem.

 

– Eu achei que…

 

– Eu tinha partido? Eu deveria. – ela sentou-se exatamente diante dele, cruzando as pernas em posição de lótus. – Mas não podia ir sem me despedir direito, não é?

 

– Não vai perder seu vôo?

 

– Só mais uns minutos, não importa… não me importo de perder um vôo se for pra me despedir de você. – a morena disse, remexendo as próprias mãos sobre as pernas. – Sabe… foi você que cuidou de mim esse tempo todo, e que esteve disposto a me ajudar quando eu mais precisava, não tem como eu simplesmente ir embora sem dizer nada, mesmo que você não quisesse se despedir de mim.

 

– Eu não…

 

– Eu nem sei como você está se sentindo de verdade. – ela o cortou, como sempre fazia quando não queria ouvir uma resposta indesejada. – Acho que aliviado porque eu finalmente vou voltar pra casa. Não sei se estaria feliz por eu lembrar tudo, ou se estaria triste por eu ter que partir… – por um momento, ela se calou, respirando fundo para recuperar a coragem de continuar a falar, enquanto sentia uma lágrima escorrendo pelo canto do rosto. – E nem sei se quero confirmar o que você está sentindo… acho que ainda sou bem medrosa, não é?

 

– Você não é medrosa.

 

– Eu tenho bem certeza que sim. – ela forçou um sorriso. – Sabe, eu estive pensando essa manhã o verdadeiro motivo por ter esquecido minha vida de verdade… e tenho quase certeza de que aconteceu porque eu tinha medo. Medo de lembrar quem eu era, e assim, estranhos me levarem embora de novo, pra ter que passar por tudo de novo.

 

– Mas você teve coragem de lembrar. – Shaka falou, contendo a vontade que tinha de abrir os olhos, de levantar uma das mãos para enxugar a lágrima dela. Na verdade, ele que parecia estar com medo, medo de sentir dor…

 

– Graças a sua ajuda. – Gabrielle completou. – Disse que eu tinha que enfrentar meus medos, e acho que deu certo… agora eu posso voltar para casa, pros meus pais, meu irmão, meus amigos.

 

– Eles devem estar ansiosos com a sua volta.

 

– Sim… espero que sim. – a jovem levantou uma das mãos para limpar o rosto. – Obrigada por tudo que fez por mim, Shaka. Eu tenho certeza que não importa o que aconteça, eu não vou esquecer… eu vou sentir saudades.

 

– Você precisa ir. Eles estão esperando… – aquelas foram as únicas palavras que saíram dos lábios do virginiano, mesmo que ele não tivesse a intenção de dizê-las.

 

– Acho que já os deixei esperando por tempo demais. – Gabrielle se levantou de um salto, imaginando que estava no lugar errado, na hora errada. Apenas estava confirmando o que imaginara antes, por mais que gostasse dele, ele devia estar aliviado por ela estar partindo. No fundo, sabia que ele era péssimo pra demonstrar qualquer tipo de emoção. – Adeus, Shaka.

 

Gabrielle deu os passos mais largos que conseguia na direção da saída da sala de meditação, aliviada por saber que ele não a seguiria, triste pelo mesmo motivo. Mais uma lágrima escorreu do canto do seu rosto, e o seu coração falhou uma batida quando sentiu o seu pulso sendo segurado. Virou-se rapidamente para confirmar que não era imaginação, e que ele estava ali, de pé, segurando-a… curiosamente, ainda com os olhos bem fechados.

 

– Eu seria egoísta… por querer por um momento, que você não tivesse lembrado? – ele falou, sem ao menos dar chance dela responder ou se surpreender com a questão. – Por pensar por algum momento que se sua família fosse ruim, você ficaria aqui? Ou por achar que poderia ser feliz aqui?

 

Gabrielle ficou calada por uns minutos, piscou os olhos duas vezes até finalmente deixar um sorriso simples surgir no seu rosto, enquanto mais uma lágrima escapava do canto de seu olho.

 

– Eu acho… que você seria… só humano. – ela se aproximou mais dele, e ficou na ponta dos pés para que seus rostos se aproximassem, a ponto de suas respirações se cruzarem. Fechou os olhos. – Eu acho que também seria, se dissesse que quero ficar. Mas…

 

– Você tem que voltar. – Shaka completou a sentença, encostando sua testa à dela.

 

– É. – o tom de voz de Gabrielle foi tão baixo que estava praticamente inaudível. – Eu tenho.

 

– Eu vou… sentir saudades. – o loiro falou, engolindo em seco, sem saber ao certo como se expressar.

 

– Eu também. – Gabrielle aproximou mais o rosto, mas se afastou um pouco, abrindo os olhos de novo. – Será que eu seria egoísta… se quisesse voltar?

 

– Você seria apenas humana. – ele retribuiu, deixando um sorriso espontâneo surgir no rosto.

 

Gabrielle sorriu de volta, continuando a observar os olhos fechados dele. Desviou o olhar para a mão que ainda segurava seu pulso, e entrelaçou os dedos com os dele.

 

– Todo esse tempo que eu estive aqui… você nunca abriu os olhos. – ela falou, observando a mão dele. – Eu nunca vi a cor deles.

 

– Eu posso lhe mostrar… – Shaka disse, começando a abrir os olhos lentamente, mas o movimento foi impedido quando Gabrielle cobriu-os com uma das mãos.

 

– Não… eu não quero que me veja agora. – ela disse, ainda com a mão sobre o rosto dele. – Quando você abrir os olhos para me ver, eu quero que veja a verdadeira pessoa que eu era, antes desses dois anos difíceis… não quero que me veja no estado que estou agora.

 

– Eu tenho certeza que de qualquer jeito… estará perfeita. – as palavras saíram tão espontaneamente dos lábios de Shaka que ele só percebeu o que tinha dito quando o tinha dito. Mal sabia ela que várias vezes ele já a tinha visto, sem que ela pudesse perceber, entretanto.

 

– Mas se não o vir agora, então, será a nossa promessa de que teremos que nos ver de novo. – ela apoiou a testa na própria mão, ainda cobrindo os olhos do virginiano. – Vamos brincar de esconde-esconde. – o sorriso da morena se alargou ainda mais, e ainda com a mão sobre o rosto dele, aproximou-se de novo. – Você precisa contar até dez, e então, pode ir me procurar. Quando menos esperar… vai acabar me encontrando.

 

– Certo… – ele concordou.

 

– Um… – Gabriele mesmo começou a contar, mas ainda estava bem diante dele, e então, apertando levemente a mão entrelaçada à dele, ficou na ponta dos pés para selar seus lábios aos do virginiano num beijo rápido. – Dois… – ela se afastou, soltando a mão dele e tirando a mão da frente dos olhos que continuavam fechados. – Três…

 

Ela deu vários passos para trás, e quando contou o quatro, já tinha dado as costas para sair da sala de meditação. Antes mesmo que ela pronunciasse o cinco, Shaka abriu lentamente os olhos e ainda teve tempo de ver os longos cabelos castanhos esvoaçando por trás das colunas antigas da Casa de Virgem, até sumirem por completo, enquanto apenas um eco chegava até seus ouvidos com os números sete e oito. O nove parecia apenas o som de uma memória distante…

 

– Dez. – ele mesmo pronunciou o último número, e então, o silêncio tomou conta da enorme Casa Zodiacal.

 

FIM

 


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Notas finais do capítulo

Bom, depois de alguns capítulos, sem vir comentar nada mesmo aqui, resolvi dar uma passada para as últimas despedidas.

Não comentei nos outros capítulos e talz, já tinha o fic postado em outro site, mas não há muito tempo, resolvi compartilhar com os leitores do Nyah! Fico feliz com os que acompanharam e comentaram, agradecimentos à litaa-chan por ter paciência com o fic XD. E também, aos que acompanharam e não tiveram tempo para comentar, eu sei que nem sempre temos disposição para deixar comentários nos fics, mas agradeço a todos da mesma forma!

Sei que quem leu deve estar se perguntando WTF foi esse final... XD Pois é, como eu já tinha dito numa nota anterior do outro site, eu não diria que o final foi perfeito, mas sim o ideal.

Provavelmente o fic ficou corrido e o passado da Gabrielle durante o sequestro pouco explicado, eu sei, mas não queria me estender muito no fic ou sabia que não ia terminá-lo tão cedo.

Eu me despeço oficialmente de vocês aqui, mas devo confessar que tenho uma vontade de fazer um epílogo para concluir essa cena, um bem pequeno e significativo. Mas não vou prometer nada que sei que demoro pra escrever as coisas, então, qualquer coisa, a atualização aparecerá por aí. XD

Mais uma vez, obrigada a todos que acompanharam até aqui e espero que tenham gostado. Se se sentirem à vontade e felizes com a história, adoraria receber comentários, sejam positivos ou negativos, críticas construtivas.

Até a próxima, então.



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