Uma Nova Vida escrita por Mitzrael Girl


Capítulo 3
Um Sonho




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Uma Nova Vida


Capítulo III: Um Sonho


A mulher foi dormir tranqüila naquela noite, e embora mais pesadelos tivessem ocupado sua mente durante aquele tempo, ela acordou mais calma por nada naquele lugar frio lhe lembrar seus pais. Ficou mais animada ao lembrar que finalmente começaria o treinamento, e quem sabe, se sentisse mais segura e pudesse até mesmo ser capaz de enfrentar os próprios pesadelos.

 

Rapidamente tomou um banho e trocou de roupa, percebendo que só tinha os vestidos de Saori para usar, o que não devia ser nada adequado para um treinamento. Sem nada mais para usar, decidiu ir tomar o café da manhã, até encontrar Shaka para poder começar o treino. O virginiano já estava mesmo se servindo quando ela se sentou na cadeira habitual, quase dando pulinhos de empolgação.

 

– Então? Podemos ir? Vai ser tão emocionante. Sinto que finalmente vou ficar melhor, é quase como se eu sempre quisesse aprender a lutar. – ela disse, pouco interessada na comida.

 

– Coma primeiro. – Shaka disse, contendo a vontade de sorrir com a reação infantil dela. – Parece muito animada… dormiu bem?

 

– Não. – a resposta dela foi casual, enquanto se servia de uvas. – Acho que já estou ficando acostumada com isso. Incomoda… continuo com medo e insegura. Mas melhora depois. – ela sorriu, desviando os olhos para ele. – Eu sei que você vai estar aqui se eu precisar.

 

Shaka não respondeu, ao contrário, buscou mais comida para manter a boca ocupada e não precisar conversar.

 

Logo eles terminaram a refeição e Shaka a guiou para a entrada do Santuário. Ela estava ocupada demais lembrando como estava animada tentando aprender autodefesa e Shaka se preocupava apenas em manter a compostura e não sorrir das reações dela.

 

Daquela vez, Gabrielle teve a chance de conhecer os guardiões restantes das outras Casas Zodiacais, embora a de Leão estivesse vazia no momento. O Cavaleiro de Câncer era mais intimidador e não parecia feliz dela estar lá, na verdade, ele parecia algum tipo psicopata, e ela ficou contente ao perceber que a figura de Shaka parecia suficiente para defendê-la. Kanon e Aldebaran eram definitivamente mais amigáveis, e ela ficou feliz de reencontrar Mu e poder se apresentar mesmo sob um nome falso.

 

Eles ainda andaram muito para ela conseguir ter tempo de ver os aspirantes no Coliseu e se impressionar com a força deles despedaçando rochas e quebrando colunas ao meio apenas com socos e chutes.

 

– Isso… isso é fisicamente possível? – perguntou, espantada, apressando-se para alcançar o passo de Shaka pelo caminho acidentado. – Quer dizer… aquelas são colunas de concreto de verdade?

 

– São. E sim, é fisicamente possível. – Shaka respondeu, caminhando tão facilmente pela trilha que ela tinha cada vez mais dificuldade de segui-lo.

 

Ela pensou em perguntar mais, mas estava notando que todos os cavaleiros pareciam ter voltado a atenção para eles. Não sabia se por conta dela ou de Shaka, mas estava começando a ficar incomodada.

 

– Shaka de Virgem! Não creio!

 

A voz ligeiramente conhecida fez com que Shaka parasse e Gabrielle esticasse levemente o pescoço pelo lado do virginiano, para conferir quem era. Ele tinha longos cabelos azulados e completamente desalinhados. Os olhos eram de alguém muito convencido e charmoso também, era exatamente o tipo que devia gostar de sair e caçar mulheres, e definitivamente o completo oposto de Shaka, embora ela nunca o tivesse visto de os olhos abertos. Se ela conseguia lembrar bem, era Milo de Escorpião.

 

– O homem mais próximo de Deus realmente desceu à Terra para ficar entre meros mortais? – o sorriso dele era bem convencido.

 

– Estou ocupado agora, Milo.

 

– Ah, o que temos aqui… – ele esticou o pescoço para encarar Gabrielle, sorrindo-lhe cordial. – Então os dois estão indo num encontro? Lugar diferente, hein? Bem no campo de treinamento.

 

Gabrielle imediatamente corou com a pergunta e Milo não deixou de notar aquilo.

 

– Ela não é muito nova para você?

 

– Estou levando-a até as amazonas apenas. Se me dá licença… – Shaka tentou passar por ele, inutilmente.

 

– Então está se mudando da Casa de Virgem? Oh! Pode ir para a Casa de Escorpião. Tem muito espaço lá e vou recebê-la muito bem. – Milo abriu os braços, convidativo, com um sorriso único nos lábios, mas Shaka o impediu de aproximar-se um passo sequer de Gabrielle.

 

– Você fala demais, Milo.

 

– Eu não vou me mudar, eu vou só treinar com as amazonas. – foi Gabrielle que se preocupou em explicar.

 

– Treinar? Então agora decidiu ser uma amazona a serviço de Athena? – Milo arqueou as sobrancelhas, parecendo confuso. – Que pena… estava feliz de ver um rosto feminino sem máscara por aqui.

 

– Não quero ser amazona. – Gabrielle se colocou lado a lado com Shaka, sorrindo das reações casuais do outro, sentindo-se mais confortável com a presença dele. – Só aprender autodefesa.

 

– E vai até as amazonas pra isso? – Milo riu, parecendo indignado. – Se Shaka não quiser te ensinar, eu posso fazer isso com prazer. E a Casa de Escorpião é bem mais perto.

 

– Já chega, Milo. – Shaka interveio de novo. – Agora, que tal nos deixar passar? Não devia voltar a treinar agora?

 

– Calminha, Cavaleiro de Virgem. – Milo levantou as mãos na defensiva. – Não é possível que vai mesmo embora sem nem uma disputa entre amigos! Aiolia viajou e o Kanon está em Gêmeos, não tenho com quem treinar agora.

 

– Tem mais sete cavaleiros disponíveis em todo o Santuário, com quem você pode treinar. Não sou o único. – o virginiano disse, categórico. – Agora é melhor irmos, já demoramos demais aqui.

 

– Ah! Que é isso, Shaka? Só uma disputa! É tedioso treinar com aspirantes. Se treinar comigo dessa vez, prometo que não te encho no próximo mês.

 

– Milo… – a paciência do virginiano estava se esgotando e o tom era de aviso.

 

– Okay, dois meses. – o outro insistiu e Gabrielle começou a pressentir que ele não tinha noção do perigo.

 

– Milo!

 

– Isso seria interessante. – foi Gabrielle que interveio, sentindo que a situação estava tensa demais. Shaka e Milo se voltaram para ela de imediato, o primeiro surpreso, o segundo, satisfeito. – Er… digo… se aqueles caras conseguem quebrar rochas, e vocês são os mais fortes… o que fariam lutando sério?

 

– Mas não podemos lutar sério. – Milo sorriu largamente. – É só de brincadeira. Ou seria uma luta de mil dias.

 

– Uma o quê? – ela perguntou, confusa.

 

– Chega. Não temos tempo pra isso. – Shaka disse finalmente tirando Milo do caminho. – Vamos, se realmente quiser começar o seu treinamento.

 

Gabrielle se adiantou para passar por Milo e Shaka foi logo em seguida.

 

– Ah… você não tem jeito mesmo. – Milo deu de ombros, já pretendendo seguir seu caminho, quando foi chamado novamente.

 

– Milo…

 

Gabrielle virou-se também quando ouviu a voz de Shaka. Não soube exatamente o que tinha acontecido, mas Milo estava a uns três passos de distância deles e em seu rosto havia um pequeno filete de sangue, na altura da bochecha.

 

– Seus reflexos estão lentos. – Shaka disse, antes de voltar a andar.

 

– Mas que droga. – Milo sorriu, passando a mão pelo rosto para limpar o sangue. – É nisso que dá treinar com cavaleiros de prata. Aquela velocidade de mach 3 me mata…

 

Gabrielle correu para alcançar o loiro, ainda sem saber o que havia acontecido, mas muito mais surpresa ao ouvir mach 3.

 

– Quanto… exatamente é uma velocidade de mach 3? – ela perguntou, alcançando Shaka.

 

– Pouco mais de três…

 

– Uns três metros por segundo?

 

– Três mil e quinhentos quilômetros por hora. – ele completou, e Gabrielle quase caiu no meio do caminho.

 

– T-t-três… três mil? – ela questionou. – Está brincando, não é? Quer dizer… uma pessoa não alcança essa velocidade, é impossível!

 

– Claro que não. – Shaka respondeu simplesmente. – Tudo depende do nosso treinamento e da explosão do nosso cosmo.

 

– Pensando bem… você voltou rápido demais ontem, se fez esse mesmo caminho. Estamos andando há mais de uma hora. – ela disse, ficando feliz chegarem a um caminho plano. – Qual a velocidade dos Cavaleiros de Ouro então?

 

– Velocidade da luz. – ele respondeu, e sem ao menos dar chance para que ela se surpreendesse, parou de repente. – Chegamos.

 

– Que… ahn?

 

Ela esqueceu o que ia perguntar quando desviou o olhar para uma série de arbustos e árvores que pareciam curiosamente formar um muro. Eles estavam diante do que devia ser a entrada, um pequeno espaço entre dois arbustos baixos. Ela nem perguntou por que estavam parados, quando uma mulher apareceu na entrada.

 

– Então deve ser você a jovem que veio treinar. – ela disse, aproximando-se e fazendo um breve aceno com a cabeça na direção de Shaka, que respondeu do mesmo modo, como um cumprimento.

 

A mulher tinha cabelos médios castanhos e o rosto coberto por uma máscara prateada inexpressiva. Trajava roupas simples de treino e uma armadura muito simples também, apenas com peitoral e ombreira.

 

– Eu sou Marin, amazona de prata de Águia. – ela estendeu a mão para cumprimentá-la também. – Vou ser a sua mestra de agora em diante.

 

– Pode me chamar de Gabrielle. – a morena apertou a mão dela, sorrindo. – Muito obrigada por ajudar.

 

– Ela ainda não conhece os caminhos do Santuário. – Shaka avisou.

 

– Não se preocupe, Shaka de Virgem. Eu mesma me encarregarei de levá-la de volta quando o treinamento terminar. – Marin disse, o tom de voz dela era bem tranqüilo.

 

– Tenha um bom treinamento então. – Shaka disse a Gabrielle, e depois de acenar brevemente para Marin, deu as costas para voltar ao Santuário.

 

Gabrielle sentiu um aperto no coração ao vê-lo desaparecer rapidamente. A insegurança e o medo tinham voltado. Entretanto, estava ali exatamente para livrar-se daquilo, então, respirou fundo antes de voltar a falar.

 

– Eu achava que ele ia ficar.

 

– Mesmo se quisesse, não poderia. – Marin riu, começando a andar e fazendo sinal para que Gabrielle a acompanhasse. – Não entram homens aqui, esse é o território exclusivo das amazonas.

 

– Oh… – Gabrielle olhou ao redor, uma enorme clareira estava cheia de mulheres treinando, e todas elas usavam máscaras. – Por que… treinam separadas? E de máscaras?

 

– Isso é por precaução. A nossa relação com os cavaleiros é ligada apenas ao dever de proteger Athena. – Marin explicou. – Dizem que num passado distante, apenas homens eram permitidos proteger a Deusa. Então, para que uma mulher pudesse assumir essa tarefa, ela precisaria renegar a sua feminilidade. Por isso a máscara. É estritamente proibido que um homem veja o rosto de uma amazona.

 

– Nossa. Isso é meio…

 

– Machista. É sim. – Marin riu. – Mas nós treinamos tendo plena consciência disso quando decidimos nos tornar amazonas.

 

– E o que acontece se um homem vê o rosto de uma amazona? – Gabrielle não conteve a curiosidade.

 

– Ela tem duas opções: matá-lo ou amá-lo. – Marin respondeu, quando elas finalmente alcançaram uma casinha pequena e simples. Apenas ali, Gabrielle se deu conta que tinham atravessado o campo de treinamento, e havia mais casas ali, como um pequeno vilarejo. – Bom, antes de tudo, deve vestir uma roupa adequada.

 

– Ah, claro. – ela concordou. – Eu pensei nisso, mas não tenho roupas…

 

– Não tem problema, é fácil dar um jeito nisso. – Marin entrou num quarto e tirou peças de roupa das gavetas de um armário de madeira, estendendo-as para Gabrielle. – Essas devem servir melhor, mesmo que fiquem um pouco folgadas, você parece magra demais.

 

– Obrigada. – Gabrielle pegou as roupas e Marin saiu para que ela se trocasse.

 

Em cinco minutos, ela já estava com uma camisa sem mangas, calças e faixas nas canelas e punhos. Encontrou Marin do lado de fora da cabana, esperando-a.

 

– Acho que estou pronta.

 

– Está sim. – Marin concordou. – Venha comigo, vamos voltar ao campo.

 

– Claro.

 

Elas andaram alguns poucos passos, até que Marin voltasse a falar.

 

– Sabe, fiquei surpresa quando o Cavaleiro de Virgem veio me procurar pedindo para treiná-la. Shaka nunca pede nada a ninguém. – Marin disse, o tom de voz era bem calmo e amigável. – Deve ser algo importante.

 

– Bom… é que…

 

– Você não precisa me contar nada se não quiser. – a amazona parou e se virou para ela. – Eu fico feliz de poder ajudar, e se você realmente estiver disposta a aprender, eu a ensinarei.

 

– Eu tenho mesmo que agradecer por vir parar aqui, não importa como. Todos vocês parecem tão dispostos a me ajudar. – Gabrielle sorriu. – Eu sei que é mais que óbvio que eu não devia estar aqui, muito menos eu treinaria para ser uma de vocês. A verdade é que Shaka me salvou quando eu estava quase morta, inconsciente nos arredores do Santuário. Infelizmente, quando acordei, tinha perdido todas as minhas memórias. Gabrielle nem é meu nome de verdade. – ela sorriu sem graça, não era como se quisesse esconder a sua história, não havia nada a esconder, embora as breves memórias ainda a incomodassem muito.

 

– E o que a fez ter vontade de treinar?

 

– Bom… – ela levou a mão à cabeça e instintivamente, tocou exatamente no local onde havia uma cicatriz. – Eu recuperei alguns flashes de memória… e eles não são muito agradáveis, e provavelmente por isso que esqueci tudo. Eu queria ter a chance de… poder me defender, se acontecesse de novo.

 

– Então, vamos ter certeza de que não vai acontecer novamente. – Marin disse e Gabrielle quase conseguia ver um sorriso por trás da máscara prateada. – Sei que deve ser estranho para você falar com alguém que esconde o rosto, mas peço que tente confiar em mim. Aí podermos treiná-la de verdade e não importa o que tenha acontecido, acredite, não vai acontecer de novo.

 

– Tenho certeza disso. – Gabrielle concordou, sentindo-se mais aliviada. – Então, por onde começamos?

 

– Condicionamento físico. – a resposta foi imediata. – Você está muito magra, precisa se alimentar e desenvolver alguma resistência antes de partirmos para as técnicas. Vamos trabalhar nisso por enquanto. Você vai vir treinar todos os dias, e é provável que nos primeiros dias sinta o corpo bem dolorido. O importante é não deixar de treinar, a dor sempre some quando você volta a praticar. Então, está seriamente disposta a seguir minhas instruções à risca? Sem reclamar?

 

– Com certeza. – Gabrielle acenou com a cabeça para enfatizar a resposta.

 

Era daquilo que precisava, de algo com o que se distrair e algo a que se dedicar. Algo que superasse o medo e a insegurança, que a desse forças para continuar em frente sem medo de recordar o passado.

 

Durante o resto da manhã, ela fez uma série de exercícios como alongamentos, corridas, flexões, todos em poucas sessões, e com um intervalo grande entre eles. Estava apenas começando a se acostumar com aquilo. Teve a impressão de que muitas das amazonas a encaravam, curiosas, mas logo se acostumaram à nova presença estranha.

 

Foi naquele mesmo dia que pela primeira vez desde que recobrara a consciência, ela estava tendo uma refeição longe de Shaka. Foi durante o almoço que teve a chance de ver o rosto da maioria das amazonas, exceto o de Marin e de outra amazona com quem ela conversava, dona de cabelos esverdeados.

 

Sentiu-se confortável também por participar da conversa das mulheres, e melhor ainda porque elas não pareciam preocupadas em lhe bombardear com perguntas de seu histórico de vida, mas estavam muito interessadas em saber se ela tivera a chance de conhecer os verdadeiros poderes dos Cavaleiros de Ouro, desde que a maioria nunca os tinha visto em batalhas, ou sequer visto os cavaleiros em suas armaduras douradas. Elas nem mesmo iam até as Casas Zodiacais, não havia motivos para se aventurarem a tal.

 

Mesmo naquele ambiente diferente e confortável, ela não conseguia deixar de sentir falta da presença do virginiano e da segurança que ele lhe passava. Não era realmente como se o visse com muita freqüência, mesmo estando na mesma casa, mas naquelas horas de refeições sempre podia encontrá-lo. Agora, o veria apenas pela manhã e pela noite, e se nesse meio tempo precisasse correr para encontrá-lo, não teria como. O sentimento de insegurança cresceu de novo, e por um momento, ela quis correr de volta à Casa de Virgem, mas foi a voz de Marin que chamou sua atenção.

 

– Vou dar um tempo para que descanse do almoço. – a amazona disse, tocando o ombro dela. – Então, voltaremos com os exercícios.

 

– Certo. – ela concordou rapidamente.

 

Naquele momento, lembrou-se do porque queria treinar. Assim poderia enfrentar seu passado de todas as maneiras, e então, voltar para o lugar a que realmente pertencia, deixando de incomodar o virginiano. Entretanto, estava começando a sentir, talvez, uma vontade de não deixar a Casa de Virgem, tampouco Shaka.

 

Ela voltou a treinar o quanto antes, para deixar de pensar naquelas coisas, e durante a tarde, se empenhou mais nas suas tarefas. Foi apenas quando o sol estava começando a se pôr que Marin anunciou o fim do dia de treinamento.

 

– Você se saiu bem hoje. – ela disse, aproximando-se de Gabrielle e colocando uma mão sobre seu ombro. – É melhor voltarmos a Virgem agora, antes que fique tarde.

 

– Claro. Obrigada pelo treinamento. – Gabrielle ainda sentia o ar faltando de tanto se exercitar.

 

– Não me agradeça ainda. Temos muito trabalho pela frente. – Marin disse.

 

– Eu devia tirar essa roupa antes de voltar. – a morena indicou as roupas de treinamento que ganhara da amazona mais cedo.

 

– Não precisa. Aliás, vou arrumar mais algumas para você. Vai precisar, se vier treinar todos os dias. – Marin disse, já andando na direção do vilarejo.

 

– Obrigada.

 

Marin apenas acenou com a cabeça e em menos de dez minutos, tinha voltado com algumas roupas em mãos, incluindo o vestido que ela usara para chegar ali.

 

– Vamos indo então, temos um longo caminho a percorrer. – a amazona anunciou, já seguindo na direção da saída do campo.

 

– Mas… você não tem outras amazonas para treinar? – Gabrielle constatou, visto que ela instruía outras amazonas enquanto lhe treinava. – Eu posso voltar sozinha.

 

– Claro que não. Disse a Shaka que a levaria pessoalmente e vou me certificar de que chegue lá inteira. – Marin já estava alcançando a saída do campo.

 

Ela seguiu a amazona e andaram sem parar nem para respirar, conversando algumas coisas aleatórias. Quando alcançaram as escadarias de Leão a Virgem, a noite já ia bem alta. Gabrielle estava ainda mais cansada e já sentia os músculos completamente doloridos, sem contar que ainda faltava o último lance de escadas a subir. Estava começando a imaginar se realmente resistiria ao treinamento.

 

– Acho que aqui é o bastante. – Marin disse, diante da escadaria até a Casa de Virgem. – Já não precisa mais da minha escolta, tem um guardião bem melhor.

 

– Tenho? – Gabrielle arqueou as sobrancelhas.

 

– Não desista ainda. – a amazona cortou o assunto, sorrindo por trás da máscara. – Sei que está bem cansada e dolorida, mas precisa ser resistente.

 

– Não se preocupe, não vou desistir.

 

– Até amanhã então.

 

Marin acenou de leve para ela e entrou na Casa de Leão. Apenas depois de subir mais aquele lance de escadas, foi que Gabrielle se deu conta do que a amazona se referira antes ao falar de um guardião melhor. Shaka estava bem ali, parado de pé bem na plataforma de entrada da sexta Casa Zodiacal. Ela deixou um sorriso escapar de seus lábios ao vê-lo.

 

– E então, como foi?

 

– Foi ótimo. – a mulher fez um sinal de positivo com a mão, não se importando realmente se ele continuava de olhos fechados.

 

– Você parece melhor agora.

 

– É porque finalmente estou de volta. – ela não corou nem hesitou ao sorrir, não havia porque esconder, mesmo que se sentisse bem com as amazonas e seu treinamento, nada superava aquele alívio e aquela sensação de segurança que tinha de estar de volta à Casa de Virgem.

 

– Seja bem-vinda de volta. – Shaka também não pareceu incomodado, ao contrário, Gabrielle quase pôde ver a sombra de um sorriso no rosto dele antes de dar as costas para entrar na Casa. – Venha, o jantar está servido.

 

Ela se apressou para segui-lo e esqueceu completamente de toda a dor, especialmente enquanto relatava os acontecimentos do dia ao virginiano, que, como sempre, se mostrava pouco interessado, embora ela tivesse a forte impressão de que ele não deixava escapar uma palavra sequer sua.

 

Aquela noite não fora diferente das anteriores para Gabrielle: cheia dos constantes pesadelos com dores, lugares escuros e frios, e pessoas gritando alteradas, acabando por descontar nela. Acordou ofegante e temerosa na manhã seguinte, e daquela vez havia ainda as dores musculares do treino que ela não pôde deixar de ligar às dores que deveria sentir se cada pesadelo tivesse um fim além dos gritos desesperados.

 

Decidida a se livrar do medo sozinha, ela respirou fundo por alguns minutos, até recuperar o controle sobre o corpo trêmulo. Não haveria razão em treinar para se sentir segura se não conseguiria sozinha. Foi com aquele pensamento que ela enfrentou todas as manhãs seguintes, acordando de pesadelos cada vez piores, sentindo que o treinamento ainda não tinha alcançado o objetivo desejado.

 

Os pesadelos começavam a ficar bem mais nítidos e assustadores, e também, estava cada vez mais difícil acordar deles antes de ser espancada ou de deixar os gritos escaparem por acidente. Parecia que o fortalecimento de seu corpo e sua mente era apenas razão para que as memórias dolorosas voltassem com mais força. Até mesmo quando as cenas se repetiam ela parecia com mais medo do que mais segura, sabendo o que poderia acontecer. Parecia que tinha vivido daquele jeito a sua vida inteira, embora houvesse aquela impressão forte de que faltava uma peça muito importante de suas memórias, capaz de explicar por que sofrera daquele modo e porque não conseguia deixar a idéia de voltar para casa desesperadamente, como se a pessoa a esperando não fosse aquela mulher de seus pesadelos que lhe chamava de filha. Aquele era o único sentimento que lhe dava forças para resistir e continuar em busca das últimas peças do quebra-cabeça.

 

Durante incontáveis manhãs em que sentia aquele cosmo inquieto e por vezes ouvia um ou dois gritos desesperados, Shaka seguia o mais rápido possível até o quarto da visitante. Não sabia se era movido por uma vontade desesperadora de protegê-la ou simplesmente pela possibilidade da sensação de tê-la em seus braços de novo. Entretanto, em todas aquelas vezes após o início do treinamento, parava exatamente na porta e esperava até que o cosmo dela se acalmasse, junto às batidas aceleradas do coração.

 

Por mais que quisesse confortá-la, sabia que se entrasse lá, seria impossível que ela atingisse o objetivo de enfrentar seus medos, de ficar mais forte. A verdade era que tinha se acostumado com a singela presença rondando a Casa de Virgem e então, quando ela partia para o treinamento o dia todo, o silêncio era incrivelmente capaz de tirar a sua concentração. Entretanto, mesmo que tudo ficasse vazio demais durante o dia, era completamente preenchido de novo pelas palavras animadas dela sobre o dia de treino e, às vezes, alguma novidade sobre as memórias traumáticas.

 

Inúmeros foram os dias que se passaram em que Shaka parava apenas à porta do quarto de Gabrielle, observando-lhe secretamente até que ficasse calma de novo. Mas naquela noite em particular havia algo muito diferente e incrivelmente incômodo. Ele levantou de um sono leve pouco depois da meia-noite, confuso com a presença inquieta que circulava pela Casa de Virgem. As batidas do coração da mulher estavam tão aceleradas que ele poderia senti-las até mesmo da Casa de Peixes. O virginiano se adiantou rapidamente até o lugar onde ela estava, e era bem longe do quarto ou das salas em que ela estava acostumada a andar.

 

Gabrielle olhava ao redor como se não visse as colunas da casa, parecia completamente perdida, e realmente devia estar, ali, tão longe do quarto. Apenas naquele momento, Shaka se deu conta de que os seus olhos estavam abertos, e antes de fechá-los, não teve como deixar de notar como a figura feminina parecia muito mais adulta e esbelta depois de tantos dias de recuperação. Os cabelos castanhos ondulados caíam pelas costas em cascatas, as mãos com dedos longos e finos e os braços delicados definitivamente nunca pertenceriam a uma amazona. Antes que ela tivesse chance de notar a sua presença, fechou os olhos novamente e se aproximou alguns passos.

 

– Gabrielle?

 

A reação dela foi a menos esperada. Ela se voltou com tamanha urgência para ele que os batimentos acelerados descompassaram imediatamente e ela caiu de vez no chão. Os olhos expressavam muito mais que medo, era pavor, estavam vermelhos e o rosto completamente molhado com as lágrimas.

 

Shaka não viu os olhos assustados de início, mas sentia pela reação dela o quanto estava assustada. Permitiu-se abrir os olhos de novo e sentiu algo dentro de si apertar com a visão.

 

– Gabrielle… o que-

 

– Não! Por favor, não! – ela se arrastava para trás, numa tentativa desesperada de fuga. – Eu… eu prometo que não tento fugir de novo. Por favor, não me machuque!

 

As lágrimas rolaram mais dos olhos assustados e só naquele momento, Shaka se deu conta de que ela o encarava, mas não o via realmente. Foi ali que ele se arrependeu de todas as manhãs que não entrara no quarto para confortá-la e dizer que estava lá, que ela não estava sozinha naquele lugar escuro.

 

– Acalme-se, eu não farei nada. – Shaka se aproximou e ajoelhou-se diante dela, estendendo a mão para tocar-lhe o rosto. A reação dela foi imediata: levantou os braços diante do rosto, como se precisasse se defender de algo.

 

– Por favor, não! Não me machuque, não!

 

Shaka não hesitou mais um segundo sequer, agarrou-a pelos pulsos e puxou-a para perto de si, abraçando-a fortemente e escondendo o rosto dela em seu peito.

 

– Está tudo bem. – ele disse, fechando os olhos com força, sentindo raiva de si mesmo por deixar que ela chegasse àquele estado. – Estou aqui.

 

– S-Sha… Shaka?

 

– Eu não vou machucar você.

 

Shaka sentiu quando os braços de Gabrielle envolveram seu pescoço rapidamente e ela escondeu o rosto na curva de seu pescoço. A mulher precisou apenas daquilo para chorar desesperadamente, como se sua vida dependesse da quantidade de lágrimas derramadas. Ela não disse nada, sequer tentou falar, e o virginiano também não conseguia pensar em qualquer palavra para dizer. Gabrielle o abraçava com força, como se a cada soluço, Shaka pudesse abandoná-la.

 

Eles ficaram parados ali por um momento, mas Gabrielle parecia disposta a chorar por todos os dias em que acordara assustada e sozinha. Sem nem precisar pensar duas vezes, o loiro a ergueu nos braços e andou no corredor. Ela não pensou em corar ou protestar, continuou apenas chorando e abraçando o outro ainda mais forte.

 

Shaka andou apenas alguns passos antes de alcançar um par de portas enormes que Gabrielle jamais imaginaria existir naquela casa. Entretanto, ela só notou que o ambiente mudara quando uma brisa leve tocou-lhe a pele e o aroma suave invadiu seu nariz. Já estava começando a se acalmar quando Shaka se abaixou devagar e sentou-se no chão, colocando-a sentada também, encostada a uma coluna que parecia estreita demais para as que sustentavam o teto das Casas Zodiacais. Foi apenas naquele momento que ela afrouxou o abraço em volta do virginiano e engoliu o choro, para abrir os olhos e fitar o lugar ao seu redor. Não teve muito tempo de se impressionar com o imenso jardim banhado pela luz do luar, decorado apenas com um par de árvores que pareciam iguais, numa das quais ela estava encostada. Os grandes olhos pousaram finalmente sobre a figura de Shaka, a não mais que um metro de distância dela.

 

– Sinto muito… me desculpe. – ela disse, contendo a vontade de chorar de novo, levando as mãos até o rosto, cobrindo a boca. – Não sei… o que está acontecendo.

 

– Não vai acontecer nada com você. – Shaka disse, a voz quase num sussurro.

 

– Eu devia estar melhor… mas não consigo. Elas só pioram, por que tinha que acontecer comigo? – a jovem estava voltando a chorar.

 

– Você está segura agora, não tem com o que se preocupar. – o virginiano definitivamente não sabia o que fazer.

 

– Eu finalmente… consegui fugir. – as lágrimas voltaram a correr pela face avermelhada. – Por favor, não me deixe voltar para lá, por favor.

 

Shaka finalmente levantou a mão até tocar o rosto dela, limpando as lágrimas e se aproximando lentamente.

 

– Você não vai voltar. – ele disse, o rosto perto demais, fazendo com que ela prendesse a respiração. – Eu não vou deixar.

 

Ela continuou encarando-o nos olhos fechados, já estava tão acostumada àquilo que ainda assim seu olhar ficou tão vidrado como se estivesse vendo os olhos dele abertos. Só notou o que estava acontecendo quando sentiu o toque suave em seus lábios. Ele tinha estendido os dedos até alcançá-los, aproximando-se o suficiente para sua respiração cruzar com a dela.

 

– Não vou deixar que vá, a lugar nenhum.

 

Ela não pôde responder, apenas fechou os olhos, sentindo dessa vez os lábios dele encostando aos seus, de maneira tão suave que parecia estar com medo de quebrá-la. Shaka ainda beijou-a levemente algumas vezes, até parecer ter coragem de aprofundar o gesto, com o consentimento dela… especialmente ao notar o quão mais calma ela estava.

 

Antes que o ar pudesse faltar, Shaka afastou-se, colocando a mão na nuca dela, puxando-a para abraçá-la de novo. Gabrielle estendeu os braços para retribuir o gesto, apertando o abraço em volta do virginiano.

 

– Vai ficar tudo bem. – Shaka disse, fazendo menção de se afastar, mas foi impedido quando ela o segurou com mais força.

 

– Não… me deixe ficar aqui… só mais um pouco. – ela pediu, segurando o tecido da camisa dele entre os dedos.

 

Ele não precisou responder, apenas não tentou mais se afastar, colocando a mão sobre os cabelos dela, acariciando-os gentilmente. Em menos tempo do que ele queria e muito mais do que esperava, Gabrielle tinha caído no sono, e daquela vez, bem mais tranqüila. Shaka a ergueu de novo nos braços e voltou à Casa de Virgem, não demorando a alcançar o quarto em que ela estava hospedada. Pegou-se de olhos abertos mais uma vez, fitando a imagem feminina serena. O sono dela devia estar sendo mais calmo, finalmente. Contendo a vontade de ficar ali, apenas observando-a dormir, fechou os olhos e saiu do quarto, repreendendo-se mentalmente por estar sendo tão descuidado e, acima de tudo, passional. Ele era, definitivamente, o último tipo de pessoa que reagiria daquele jeito, especialmente influenciado por outros. Era quase como se o treinamento de toda uma vida estivesse indo completamente por água abaixo.

 

Ao chegar ao próprio quarto, sentou-se na cama, escondendo o rosto nas mãos e deixando um suspiro pesado escapar dos lábios. Sabia, mais do que qualquer um, que não devia ter deixado aquilo acontecer. Era claro que ele parecia estar se aproveitando da situação dela do que realmente estava a ajudando. Às vezes até, se pegava pensando que preferia que ela não recuperasse as memórias, e talvez pudesse continuar ali, sendo protegida por ele. Queria também que ela não lembrasse onde e com quem realmente sofrera tudo aquilo, ou ele não se responsabilizaria pelos próprios atos. Mas o que mais estava lhe preocupando era o que tinha acabado de fazer, deixara-se levar completamente pela situação e sem conseguir se conter, beijara-a. Havia ainda aquela grande possibilidade de ela ser menor de idade, o que o deixava apenas mais confuso.

 

Ele se jogou de costas na cama, tentando dormir, mas naquele momento, parecia completamente impossível, com a cabeça tão cheia de pensamentos confusos. Pelo menos esperava que a garota tivesse um bom sono e não precisasse acordar ofegante dos pesadelos. Conseguiu cair num sono muito leve bem antes do que imaginara.

 

xXx

 

O dia estava ensolarado. A brisa de primavera era leve e refrescante e o jardim grande era preenchido por vários tipos de flores, especialmente rosas de todas as cores e tonalidades. Ela estava sentada diante de uma das roseiras repleta de flores e botões prestes a se desabrocharem. Havia uma prancheta apoiada num tripé bem diante dela, na altura de seus olhos. As mãos ágeis e delicadas traçavam rapidamente com um lápis simples as formas das rosas que observava. O desenho era simples e a técnica básica, entretanto, era bem expressivo.

 

A morena sorriu com o resultado que estava conseguindo alcançar, mas antes de dar mais um toque no desenho, uma voz conhecida invadiu seus ouvidos.

 

– Ei! Mas você já está aí de novo? Será que não cansa não?

 

– Você que gosta de me tirar a paciência. O que quer agora? Posso terminar meu desenho? – ela virou-se apenas para confirmar a imagem que já sabia ser dona daquela voz. Era um jovem de curtos cabelos negros, e olhos claros iguais as dela, era bem mais alto e forte, embora ela tivesse certeza que ele era mais novo que ela.

 

– Suas amigas já estão aí, irmã. Estão esperando lá no seu quarto. Vai sair?

 

– Ah, já chegaram. Nem percebi a hora. – ela respondeu, abrindo um pingente de coração pendurado em seu pescoço, observando a hora no relógio dentro dele. Marcava exatamente 16h05min.

 

Levantou-se do banquinho e pegou a prancheta, convencendo o homem a pegar o tripé e o banco para seguirem para longe do jardim.

 

– Para onde vocês vão? – ele perguntou, enquanto caminhavam lado a lado.

 

– Você não precisa saber. – ela acelerou o passo.

 

– Irmã! Diga! Ei… ainda me deixa aqui carregando essas coisas! Vai ver uma coisa quando eu te alcançar!

 

Ela apenas acelerou mais os passos, começando a correr enquanto o garoto tentava acompanhá-la.

 

Sorriu.

 

Pela segunda vez em muitos dias, Gabrielle acordava de um sono muito tranqüilo, sem gritos, pesadelos ou dores. Ao contrário, havia muita luz, tranqüilidade e sorrisos, e havia principalmente aquele sentimento confortável de quando pensava em voltar para casa. Era como se aquele sempre tivesse sido seu verdadeiro lar, e tinha até mesmo um irmão e amigas de verdade. O melhor de tudo era que estava feliz… muito feliz. E sorrindo.

 

A garota levou as mãos ao rosto, não conseguindo conter o largo sorriso em seus lábios. Aquilo devia ser uma lembrança, tinha que ser uma lembrança, e a melhor delas. Era o seu caminho de volta para casa, finalmente. E pensar que na noite anterior tivera um pesadelo tão terrível…

 

Sem nem pensar duas vezes, ela se levantou apressada, excitada para contar a novidade ao virginiano o mais rápido possível, mas parou de súbito ao lembrar o que tinha acontecido naquela madrugada. Por um momento, o pesadelo de tentar fugir daquele lugar e ser pega por aquele homem bêbado tinha ofuscado sua memória, mas agora podia lembrar perfeitamente do resto do acontecido. Seu rosto queimou violentamente e as bochechas assumiram um tom avermelhado. Não estava conseguindo acreditar que realmente tinha estado com Shaka, e além de descobrir aquele jardim incrível, eles tinham se beijado. E para completar, tinha pedido para ficar abraçada a ele até cair no sono, provavelmente.

 

– Não acredito… não pode ser verdade. – disse consigo mesma, sentindo o coração acelerar com os pensamentos. – Ah… meu Deus!

 

Ela escondeu o rosto nas mãos, sem saber realmente o que fazer, constrangida consigo mesma. Não fazia idéia de como reagir diante de Shaka, nem sabia como ele reagiria. O problema era que estava morando na casa dele e não poderia ficar escondida ali o tempo todo. Na verdade, precisava era se apressar para o treinamento, ou chegaria atrasada, e depois daquela lembrança, estava mais disposta a continuar treinando, sabia agora que tinha muito mais coisa que estava disposta a lembrar.

 

– Okay, eu posso fazer isso. – ela respirou fundo e se levantou, decidida. – Não é como se eu nunca tivesse beijado ninguém…

 

Sentiu o estômago embrulhar, sequer lembrava aquilo, mas ainda assim, gostara do beijo e não tinha dúvidas que já fazia algum tempo que também gostava do virginiano. Antes que pudesse se sentir constrangida de novo, saiu às pressas do quarto e correu até o banheiro para se arrumar para o treinamento. Não tinha idéia do que a estava deixando mais disposta, se o que sentia por Shaka e aquele beijo repentino, ou se a nova lembrança com seu possível verdadeiro lar.

 

Depois de demorar o máximo possível para se arrumar, respirou fundo para correr até a sala de jantar. Incrivelmente, Shaka não estava lá e a mesa estava servida apenas para um. Ela pensou em ficar aliviada por não ter que encontrá-lo depois do que acontecera, mas o pensamento foi completamente suprimido por um sentimento de angústia e decepção. Apenas naquele momento percebeu o quanto queria vê-lo, e especialmente o quanto queria receber uma resposta positiva ao que tinha acontecido. Mas era óbvio que ele devia achar aquilo algum tipo de erro, já que não estava disposta a encontrá-la. Agora, ela estava sozinha de novo, o coração apertado e sem ninguém para compartilhar aquela nova lembrança.

 

A morena andou até o seu lugar à mesa e parou ao lado da cadeira, observando a comida, pensando em tomar o café da manhã. Entretanto, outro impulso mais forte fez com que ela desse as costas à mesa e corresse em busca do virginiano. Não importava que ele não a quisesse como mulher, e que achasse que o que tinha acontecido era um erro. O que importava era que ele era a única pessoa que tinha para confiar, para lhe ouvir e principalmente para não deixá-la sozinha. Era seu único amigo, e ao menos aquilo ela não estava disposta a perder.

 

Àquela altura, Shaka já não fazia mais a mínima idéia de há quanto tempo estava ali, em sua sala de meditação, tentando inutilmente se concentrar. Mas não importava quantas vezes respirasse fundo, a imagem dela não o deixava em paz. Lembrava da figura tão esbelta, dos olhos grandes e assustados, dos longos cabelos modelando o rosto fino, do aroma suave, até mesmo do semblante sereno ao dormir longe de pesadelos. Tinha até abandonado o café da manhã para não ter a chance de encontrá-la, mas a tentativa parecia frustrada, já que mesmo longe dela, não conseguia meditar, e aquilo era algo que fazia havia tantos anos, com tamanha facilidade! Mas naquela hora, tinha se tornado algo terrivelmente complicado.

 

Ele suspirou de novo, passando uma das mãos nos cabelos. Foi apenas naquele momento que se deu conta de que não estava mais sozinho na sala. Repreendeu-se mentalmente por estar tão distraído a ponto de nem perceber a presença da morena se aproximando.

 

– Eu tinha a impressão de que… o encontraria aqui. – Gabrielle falou, hesitante, ao notar que o rosto dele tinha se virado em sua direção. – Antes que diga qualquer coisa, desculpe por vir procurá-lo. Eu sei que não estava querendo me ver, provavelmente pelo que… aconteceu e… sinto muito por isso.

 

– Você não tem que se desculpar por nada. – Shaka se levantou para andar na direção dela. – Pede desculpas demais.

 

– Eu sou egoísta demais. – ela sorriu forçadamente. – Mesmo que não quisesse me ver, eu vim até aqui. Só… tive a impressão de que não queria ficar sozinha de novo. E se o que aconteceu foi motivo para afastá-lo, eu não me importo de esquecer também.

 

– Você não…

 

– Eu só queria, na verdade… – Gabrielle o cortou rapidamente, antes de ter que ouvir alguma resposta indesejada. – Contar do meu sonho. Sabe, não foi um pesadelo… e parecia minha casa de verdade. Eu tinha até um irmão que foi me chamar num jardim de rosas. E disse que minhas amigas estavam me esperando. Isso não é ótimo?

 

– Sim. – Shaka respondeu depois de alguns minutos em silêncio.

 

– Bom, não sei se é uma lembrança de verdade. – Gabrielle continuou, parecendo mais tranqüila. – Mas é a melhor que tenho até agora, e meu único fio de esperança.

 

– Com certeza é uma lembrança, e sua casa de verdade. – Shaka disse.

 

– Bom, eu sinto muito por ontem de noite. – ela disse, já dando uns passos para trás. – Eu prometo que não deixo acontecer mais uma vez, mas não me deixe sozinha de novo, certo? Eu preciso… ir treinar agora. Até mais tarde!

 

Ela sorriu forçada de novo, e imediatamente correu para sair dali, antes que pudesse ouvir a resposta do virginiano. Só parou de correr quando alcançou a entrada da Casa de Virgem. Ainda conseguia sentir uma ligeira decepção por ele não ter ido atrás dela, mas talvez fosse melhor daquele jeito, dava pra confirmar que ele provavelmente não gostava dela como ela gostava dele, e ainda assim, poderia manter a relação que tinham desde que Shaka a encontrara. A jovem respirou fundo e se animou de novo, talvez quando voltasse, ele a estivesse esperando de novo na entrada da Casa de Virgem, e tudo tivesse voltado ao normal. Fitou o céu nublado por um momento e então, finalmente começou a descer as escadarias para percorrer o caminho que já estava acostumada.

 

Shaka ainda ficou completamente parado por alguns minutos até conseguir reagir ao excesso de informações que Gabrielle tinha acabado de despejar. Ele sequer tivera tempo para se defender ou tentar explicar alguma coisa, mas a verdade era que não fazia idéia do que dizer, ou fazer. Era bem verdade que queria poder abraçá-la e ficar com ela, mas ainda se sentia extremamente culpado por fazer aquilo com uma pessoa sem memórias, que talvez tivesse outra pessoa em seu passado, ou que pior ainda, fosse menor de idade. Mas o que o atingira com mais força foram as palavras dela sobre ele deixá-la sozinha. Como podia ter-se deixado levar por toda aquela confusão e esquecer que o maior medo dela era estar num lugar sem mais ninguém que pudesse confiar, alguém que pudesse mostrar que estava tudo bem, e que ela estava longe do lugar de seus pesadelos? O virginiano quase teve vontade de bater a cabeça com força na coluna da Casa, mas desistiu, apenas se encostando a ela e depois deixando-se escorregar até o chão. Tudo o que tinha que fazer era relaxar a mente e voltar a agir como sempre agira perto dela. E talvez, tudo voltasse ao normal.

 

Ele abandonou a sala de meditação para confirmar que ela já tinha ido pra o campo das amazonas, e também para descobrir que ela não tinha tocado num só pedaço do café da manhã. Ela ainda não tinha a melhor das formas para ter um treinamento com uma amazona de prata, não havia desculpa para perder uma refeição.

 

A sua mente estava finalmente mais tranqüila, mas resolveu abandonar a chance de treinar e apenas sentou-se no sofá da sala de estar, deitando-se logo em seguida. Não demorou muito a ouvir o som da chuva caindo sobre o Santuário, e pouco depois, incrivelmente conseguiu adormecer.

 

Gabrielle ainda treinou muito mesmo debaixo de chuva, mas depois que o clima começou a piorar, Marin foi obrigada a parar com o treinamento dela, visto que sua resistência ainda não era tão alta, e ela podia facilmente ficar gripada. Por muito tempo depois da interrupção do treinamento, ela ainda ficou observando as outras amazonas treinarem sem se importarem com o clima, e só quando a chuva diminuiu, Marin permitiu que ela voltasse para a Casa de Virgem, visto que já estava perto do pôr do sol.

 

A morena seguiu o caminho de volta, as roupas ainda um pouco úmidas com a chuva fraca que caía no Santuário, mas estava esperançosa de que quando chegasse à sexta Casa Zodiacal, Shaka a estivesse esperando de novo, como sempre fazia. Mais uma vez, sentiu um aperto no peito ao notar que a plataforma de entrada da Casa de Virgem estava completamente vazia. Precisou engolir em seco para erguer a cabeça e conseguir entrar lá, com a possibilidade de encontrá-lo, e ter que agir normalmente, sabendo que qualquer oscilação em seu tom de voz podia denunciar os seus sentimentos.

 

Ao entrar na casa, foi direto tomar um banho e trocar a roupa de treinamento molhada por um dos vestidos de Saori. Daquela vez, tentou não criar esperanças de encontrar o loiro no jantar, afinal, ia ser só mais uma pontada no peito ao perceber que ele não estaria lá para lhe fazer companhia. Tinha que começar a se acostumar com a idéia de estar ali sozinha, ou então… poderia finalmente aceitar a idéia de se mudar para o vilarejo das amazonas.

 

Todos aqueles pensamentos se esvaíram de sua mente quando alcançou a sala de estar. Precisou piscar duas vezes para ter certeza do que estava vendo. Aproximou-se o máximo do sofá e apoiou os cotovelos no encosto deste, encarando a figura adormecida de Shaka. Ele parecia tão tranqüilo ali, completamente desajeitado sobre o sofá, com os pés passando do braço do móvel e a cabeça meio de lado. Um dos braços estava sobre a barriga e o outro atrás da cabeça, como um apoio.

 

Ela sorriu, sentindo-se extremamente aliviada ao notar o motivo dele não ter ido recebê-la na entrada da Casa de Virgem. Pelo visto, não duvidava nada que ele não tivesse tido um bom sono naquela noite, exatamente por culpa dela. Mas ter a chance de vê-lo daquele jeito, tão desligado de tudo, era definitivamente um momento único. Depois de alguns minutos apenas observando-o, foi impossível resistir à tentação de afastar aqueles fios de cabelo que estavam cobrindo o rosto dele. Estendeu a mão para tocá-los, mas antes que conseguisse aquilo, sentiu seu pulso ser segurado fortemente, e o rosto de Shaka tinha se virado na sua direção. Era incrível como mesmo com a aparente surpresa, ele não abria os olhos.

 

– Me desculpe… eu só… Nada. – ela disse, sentindo o aperto em seu pulso afrouxar.

 

– O que aconteceu? – ele perguntou, sentando-se no sofá.

 

– Não sei… – Gabrielle disse, afastando-se do sofá. – Quando eu cheguei, você estava dormindo aí. Não queria ter te acordado… parecia dormir tão bem.

 

– Não tem problema. – Shaka passou as mãos pelo rosto. – Dormi demais. Seu treinamento já acabou?

 

– Sim. Eu nem treinei muito, na verdade, porque estava chovendo. E a Marin achou que eu podia ficar doente. Então, como a chuva não parou, eu voltei mais cedo. – ela respondeu, começando a se sentir mais confortável com a conversa casual, embora ainda houvesse alguma coisa na boca do seu estômago lhe incomodando.

 

– E você está bem? – ele se voltou na direção dela.

 

– Melhor que nunca. – ela disse, fazendo um sinal de positivo com a mão.

 

– Não tomou o café da manhã hoje. – o tom do virginiano era acusador.

 

– Besteira… só acabei… esquecendo. – Gabrielle sorriu sem graça. – Então acho que é melhor eu comer pelo café da manhã também agora.

 

– Sim.

 

Ela parou no caminho para a sala de jantar, enquanto ele a acompanhava também. Assim que alcançaram as cadeiras e sentaram, prestes a começarem a refeição, Gabrielle tomou coragem para voltar a falar e fazer um pedido que tinha em mente desde que saíra da Casa de Virgem naquela manhã.

 

– Eu estava pensando… aquele jardim… – ela hesitou ao pensar em completar a frase com alguma coisa da noite passada, então, depois de uns segundos, voltou a falar. – Será que eu poderia vê-lo de novo?

 

Shaka franziu o cenho diante do pedido. Bom, ele a tinha levado lá na noite anterior, mas não era como se deixasse muitas pessoas verem o jardim. Na verdade, eram poucas as vezes que voltava lá depois do desfecho da batalha de Hades.

 

– Eu imagino que é um lugar importante pra você. – Gabrielle juntou as mãos sobre o colo, remexendo os dedos. – Eu achei que… – ela hesitou de novo. – Esquece, deixa pra lá.

 

– Termine o que ia dizer.

 

– Não era nada. Foi só um pensamento aleatório. – ela finalmente colocou as mãos sobre a mesa, preparada para se servir.

 

– Termine. – Shaka impediu que ela alcançasse a comida, colocando a mão no caminho dela.

 

– Eu achei que poderia tentar desenhar o jardim. – a morena finalmente completou. – Queria só… ter certeza que eu o que eu sonhei era uma lembrança de verdade, e não só uma ilusão…

 

– Quando não estiver mais chovendo. – Shaka disse, finalmente, sem precisar pensar duas vezes em ceder a um pedido dela. Realmente estava com um belo problema.

 

– Muito obrigada! – Gabrielle abriu um sorriso largo antes de começar a refeição.

 

O clima parecia bem mais tranqüilo entre eles, e não havia nada que indicasse incomodo pelo que tinha acontecido. Claro que no fundo, os dois sentiam muito mais do que mostravam, e estava começando a ficar difícil esconder.

 

Nos dias que se seguiram, Gabrielle precisou voltar a enfrentar os mesmos pesadelos, e mesmo que fosse dormir mentalizando aquele sonho que tivera no jardim de rosas, ele apenas parecia ficar mais borrado e indistinto entre as memórias assustadoras. Do mesmo modo, os treinos começaram a diminuir a freqüência por conta das constantes chuvas. Ela chegava a nem sair da Casa de Virgem quando o dia amanhecia chuvoso, e já fazia quase uma semana que o clima estava daquele jeito. O pior era que ele parecia contribuir incrivelmente para piorar o teor de seus pesadelos, embora estivesse feliz de conseguir cada vez mais se controlar e acordar menos afetada com as imagens pesadas.

 

Foi no fim da tarde depois de uma semana de chuvas que o céu abriu para dar espaço aos fracos raios de sol de novo. Imediatamente, Gabrielle abriu um sorriso ao ver aquilo. Não pudera treinar aquele tempo todo, mas principalmente, também não tivera a chance de tentar desenhar o jardim da Casa de Virgem. Extremamente empolgada, ela correu para a sala de meditação onde sabia que encontraria o loiro, para poder finalmente tentar desenhar o jardim. Já tinha até arrumado folhas, uma prancheta improvisada e um lápis.

 

Ela estava tão animada que chegou à sala sem cerimônia, falando sem nem pensar na possibilidade de não interrompê-lo na sua constante meditação. Muitas vezes, ela imaginava se era só aquilo que ele fazia o dia inteiro.

 

– A chuva parou!

 

Shaka saiu de sua posição de lótus lentamente para voltar a atenção para a presença alvoroçada da garota.

 

– Sim. Não por muito tempo, creio. – Shaka disse, não parecendo nem um pouco incomodado com a interrupção.

 

– Será que eu posso ver o jardim… agora? – mesmo com a confirmação anterior do virginiano, estava hesitante que ele talvez tivesse mudado de idéia de última hora. – Quer dizer, aproveitar enquanto está fazendo sol…

 

– Claro.

 

Shaka concordou tão rapidamente que ela até se impressionou, mas deixou um sorriso satisfeito surgir nos lábios. Seguiu então com o virginiano até pegar o material de desenho na sala e depois, andar por um corredor que ela realmente não imaginava existir ali na Casa de Virgem. Ainda devia haver muita coisa que ela não conhecia, como a ala em que ele sempre ficava.

 

O que mais a impressionou logo de cara foram os gigantescos portões duplos que havia entre duas colunas, provavelmente que davam acesso ao jardim. Eram simplesmente magníficos, deviam dar umas três dela em altura, e ainda eram ornamentados com bonitas imagens em relevo. Shaka os abriu com tanta facilidade que nem parecia serem tão grandes e pesados. Ela abraçou a prancheta com força, finalmente seguindo-o na direção do jardim. Definitivamente, ele era muito mais que incrível. Mesmo com tanta chuva dos últimos dias, as flores delicadas pareciam perfeitamente intocadas, continuando a dançar com a leve brisa do vento, cercando em abundância as duas árvores que agora ela tinha ainda mais certeza serem idênticas, era quase como se uma fosse apenas o reflexo da outra.

 

– Esse lugar é incrível. – Gabrielle disse, completamente hipnotizada com a visão, andando alguns passos na direção do jardim, já entre as flores.

 

– É o jardim das Salas Gêmeas. – Shaka disse, parado atrás dela, perto da entrada, com os braços cruzados diante do corpo. – É uma réplica exata do lugar onde Buda morreu.

 

– Não imaginei que teria um lugar assim aqui no Santuário. – ela parou, olhando tudo cuidadosamente ao redor. – Por que tem essa réplica aqui?

 

– Porque esse… é meu santuário.

 

– Ah… eu não vou demorar muito. – ela ficou completamente sem jeito diante da resposta imediata dele.

 

– Pode ficar o quanto quiser.

 

Shaka não esperou a resposta, e seguiu na direção das portas que davam de entrada no jardim, saiu e deixou uma delas entreaberta. Gabrielle apenas sorriu, parecia que ele estava voltando ao normal, sem esperar respostas ou se incomodar com o que lhe diziam ou o que ele mesmo dizia. Ela apenas deu mais alguns passos até parar no meio do caminho entre a Casa de Virgem e as árvores gêmeas, sentando-se bem num espaço entre as flores, apoiando a prancha em suas pernas cruzadas em posição de lótus.

 

Pelos próximos longos vinte ou trinta minutos, ela ficou apenas rabiscando as flores ao seu redor e as árvores gêmeas. O desenho não estava tão bom quanto aquele do seu sonho, mas estava bom o suficiente para lhe provar que aquela podia ser uma lembrança de fato. Deixou um sorriso satisfeito surgir no rosto enquanto continuava a rabiscar os traços, sentindo o vento soprar um pouco mais forte.

 

– Devo supor que esteja indo bem, pelo tempo que está aqui?

 

Gabrielle imediatamente levantou a cabeça para fitar Shaka parado de pé bem atrás de si. Ele não estava de olhos abertos e nem com o rosto voltado para ela, apenas se prostrava na direção das árvores gêmeas não muito longe dos dois. Parecia estar observando-as, mesmo de olhos fechados.

 

– Ah! – ela instintivamente abraçou a prancheta, como se não quisesse que ele visse o desenho, era meio impossível até, já que ele nunca abria os olhos. – Eu poderia estar aqui apenas me sentindo frustrada por não conseguir nada.

 

– Não parece.

 

O loiro deu um passo para o lado, sentando-se exatamente ao lado dela, embora estivesse de costas para as árvores gêmeas, o completo oposto da direção em que ela estava sentada. Gabrielle sentiu o rosto corar com a proximidade que ele tinha se sentado ao lado dela, e finalmente relaxou os braços, colocando a prancheta de volta sobre as pernas, observando o desenho mais atentamente agora que parara de rabiscar.

 

Naquele silêncio, observando o desenho tão atentamente, não conseguiu evitar que uma lágrima escapasse de seus olhos, enquanto o sorriso continuava estampado em sua face, embora agora tivesse uma leve sombra de tristeza.

 

– O que foi…? – Shaka notou de imediato a reação dela.

 

– Oh… acho que uma gota de chuva se perdeu. – ela deu uma risada, limpando a lágrima no rosto. – É mesmo verdade… era uma lembrança boa.

 

– Acho que está voltando a chover. – Shaka disse, estendendo uma das mãos para limpar mais lágrimas que escorriam pelo rosto dela. – Você não devia estar feliz?

 

– Eu estou. – ela confirmou, contendo a vontade de segurar a mão dele enquanto ainda tocava seu rosto. Fechou os olhos para sentir o toque do virginiano. – Mas não consigo entender porque esqueci tudo se meu passado não era tão ruim… porque não consigo lembrar nem do meu próprio nome.

 

– Deve haver uma boa razão.

 

– Eu espero que sim.

 

A morena abraçou as pernas junto ao corpo com a prancheta e os desenhos entre os dois. Não deixou que mais lágrimas escapassem, mas não imaginava que se sentiria tão mal por confirmar que aquela lembrança realmente fazia parte do seu passado.

 

– Isso é tão frustrante… – ela disse, deixando que mais algumas lágrimas escorressem pela face avermelhada.

 

– Vai ver que há uma razão. Tudo vai ficar bem. – Shaka evitou levar a mão ao rosto dela de novo.

 

– Será que vai mesmo?

 

Gabrielle escondeu o rosto entre os braços apoiados nos joelhos. Não queria ter que chorar por aquilo, mas estava começando a sentir uma enorme raiva de si mesma. Por mais que quisesse, não conseguia lembrar sequer o próprio nome. E estava começando a perceber que se sentir frustrada era a pior das sensações que tinha. Tinha vontade de rasgar o desenho que demorara tanto para fazer e arremessar tudo bem longe. Pela primeira vez em tantos dias, estava realmente irritada consigo mesma por demorar tanto a recuperar as memórias. Achara que ia ser mais fácil, que logo descobriria tudo, por isso sempre respirava fundo e continuava. Mas a única coisa que conseguira até ali fora um histórico de pesadelos e apenas uma boa lembrança. Apertou a mão em volta do próprio braço com tanta força que por pouco não se machucara.

 

Imediatamente, afrouxou o aperto quando se sentiu envolvida de maneira desajeitada pelos braços do virginiano. Ele tinha se aproximado mais, e com os braços em volta do pequeno corpo dela, apoiou o queixo no topo da cabeça abaixada da jovem.

 

– Não se martirize tanto. – as palavras dele eram quase sussurradas. – Apenas não chegou a hora de lembrar de tudo. Quando menos esperar, vai notar que as memórias sempre estiveram aí.

 

– E se eu não lembrar?

 

– Você vai.

 

– Mas se demorar muito…

 

– Você ainda tem um lugar aqui. – Shaka a cortou antes que ela completasse a frase.

 

– Mesmo que eu nunca recupere minhas memórias? – Gabrielle deixou a frase escapar num fio de voz, esperançosa que ele não tivesse ouvido. Estava apenas pedindo mais do que queria, e também, lembrando do que sentia pelo loiro agora que ele a abraçava de novo.

 

A resposta demorou a vir, e ela quase suspirou aliviada que ele não tivesse realmente ouvido aquilo. Precisou prender o ar quando a voz dele se pronunciou de novo, mais firme e alto o suficiente para que ela entendesse cada sílaba de sua frase.

 

– Especialmente se nunca recuperá-las.

 

Imediatamente ela sentiu as batidas do coração acelerarem com as palavras dele. Ficou completamente sem reação, e sabia que o rosto estava corado. Sabia que logo, logo, ele se afastaria, e desapareceria pelos corredores da casa, como sempre fazia. Com aquele pensamento, imediatamente moveu os braços para segurar a camisa dele, abaixando as pernas e apoiando a testa no peito de Shaka. Ele não se afastou.

 

– Obrigada. – a voz dela era mais baixa. – Por ficar comigo.

 

O silêncio foi a resposta do cavaleiro de ouro. Ela sorriu, sabendo que devia ser bem incomum para ele agir daquele jeito com uma mulher. Aliás, supondo-se que a maioria deles vivia naquele Santuário sozinho, seria muito estranho interagir com qualquer pessoa de fora. Naquele momento, a jovem apenas ficou contente dele não tentar se afastar dela, e suspirou aliviada, sentindo-se extremamente confortável nos braços do virginiano.

 

Final do Capítulo III


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