Louva-deus escrita por Aluada


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Esse original está na gaveta há meses, fruto de uma frase de um amigo meu. Obrigada, Raul! (mesmo que você não saiba...)

Inicialmente, teria lemon. Mas quem eu estou tentando enganar? Sou pura demais pra escrever essas coisas. Meu negócio é arrancar cabeças, mesmo.



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            Deixando a risada contida escapar pelas frestas dos lábios, correu agachado por entre as carteiras da sala de aula. Suas mãos estavam fechadas uma sobre a outra, em forma de concha. Em um momento, ele esticou o pescoço em direção à porta indevidamente aberta, escondeu seu corpo de criança por trás de uma mochila e aguardou. Não, nada, não era nada, só a impressão ruim de quando se faz alguma coisa errada. Engoliu-a e continuou, porque sem dúvidas a brincadeira era deveras divertida.

            Ali, duas carteiras à frente: o assento de Maria Alice, o fichário cor-de-rosa estendido, as canetas coloridas com glitter ordenadas em dégradé, o estojo de florzinhas bem aberto. Sim, ali, bem ali. Pulou pulinhos contados, despejou o conteúdo das mãos e fechou o zíper do estojo rápido, bem rápido, segundos antes do sinal de intervalo bater e a manada de crianças ensandecidas entrar se matando.

            Quando a pequena Maria Alice voltou do pátio, o menino - o Maurício - já estava estrategicamente localizado duas carteiras atrás, segurando um olhar feroz. Viu-a dar uma última risada com a amiga na porta, rebolar sua volta até sentar-se, procurar a próxima matéria entre as folhas, arrumar o cabelo e coçar o nariz, ansiosíssimo. Observou, angustiado, cada movimento da menina, seus dedinhos que envolviam lentamente a alça do fecho éclair, puxando-a, dente por dente, até o fim, até avistar a figura monstruosa do inseto verde, até ouvir o berro desesperado que -

            Mas o berro não veio.

            Maurício teve de se erguer sobre seu assento e tentar adivinhar, por entre as dezenas de cabecinhas hiperativas, como seria a expressão da menina-assustada-que-não-se-assustou. De costas, enxergou como pôde Maria Alice fechar de volta o estojo e esconde-lo na mochila. Na mochila? Na mochila! Coçou o ouvido. Não, não, o grito devia ter vindo sim, certamente, ele devia ter rido e agora não se lembrava...

            Aguardar o fim da aula foi um suplício. Por fim, veio. Ele esperou a classe mais ou menos esvaziar e segurou sua vítima falha pelo braço.

            O rosto de um era mais bravo que o do outro.

            - Ai! Meu braço!

            - Ele é meu! Me devolve! Você guardou ele na mochila!

            - Seu, é? E você queria me assustar com ele?

            Não respondeu. Esperou ter o bichinho de estimação de volta entre os dedos para se sentir seguro.

            - Queria, sim. Mas você é uma boba, porque nem ligou.

            - Bobo é você, tá? - mostrou a língua - Eu não tenho medo dessas coisas.

            - Toda menina tem.

            - Eu não, oras. Eu até acho ele bonitinho...

            Um pegou o outro olhando para o louva-deus nas mãos do menino, as duas patinhas em forma de oração, os dois rostos abobalhados de admiração. Depois, vermelhos de vergonha.

            - Eu tenho até uma aranha de estimação, sabia? Peluda e tudo mais - ela disse, a cabeça ainda abaixada.

            - Mentira.

            - Mentira nada! Vai lá em casa que você vai ver!

            Com muita relutância, ele a seguiu até sua casa. De longe.

            Foi quando começou o namoro.

             


*****


            Anos se passaram.

            A missa das oito da noite de domingo era sempre a mais cheia da igreja. Os bancos de madeira quase nunca eram suficientes, faltavam cadeiras de plástico, as pessoas sentavam no chão, nos colos; rezavam em pé, ultrapassavam as entradas principais, vazavam pelas janelas. Os fiéis vinham em bando: pais, mães, tios, tias-avós, filhos, primas, namorados, cunhados, sogros, noras, enteados, conhecidos distantes, adjungidos e afins - ocupando praticamente uma única fileira inteira, por exemplo, estavam duas famílias enormes, os Pereira e os Serafim, unidos pelo laço de mãos entre Maurício e Maria Alice.

            O padre abençoou os ouvintes pelo microfone e os dispensou. Num segundo, todos os assentos ficaram vazios e todas as passagens (por uma ironia maldosa) viraram um inferno. Os amantes adolescentes apertaram ainda mais uma aliança prateada contra a outra e se misturaram à multidão.

            - Na casa da tia Lurdinha! - a matriarca Serafim gritou para a filha - A gente vai jantar lá!

            No segundo seguinte, era só confusão. A menina só pôde repetir o automático combinado minutos depois, quando se viu a salvo e a sós com o namorado dentro do seu Fusca 68.

            - Na casa da minha tia Lurdinha, ela disse. Sua mãe vai ficar brava se você for jantar com a gente de novo?

            - Ah, tanto faz, deixa ela pra lá. Eu só quero ficar com você.

            Maurício se aproximou. Envolveu a cintura fina com os braços. Esqueceram de tia Lurdinha.

Se no primeiro segundo cada um ocupava seu respectivo assento, no próximo comprimiam-se como uma pessoa só. Uma única boca, uma língua contínua. Estalos. Os cabelos atrapalhavam enquanto as mãos se divertiam pelas curvas, para baixo, para baixo, para baixo -

            Paf!

            O inchaço na bochecha foi imediato.

            - Quem você pensa que é, hein? Aliás, aliás - quem você pensa que eu sou? - o grito feminino era agudíssimo.

            - Desculpa, Li...

            - Desculpa uma ova, seu Maurício. Uma ova! - chamou-o pelo nome inteiro, virou-se para sua poltrona, cruzou os braços de lado, fez bico. Para completar a personalidade forte, finalizou: - Você não me respeita.

            - Nem vem, Alice, nem vem! Queria que eu fosse que nem o Fábio, é?, que nem aquele seu primo safado, é?

            - Tá vendo? Nem a família respeita!

            - To te mostrando que seu sangue não é tão santo assim, não, viu?

            Ela continuou muxoxando em seu cantinho fechado; ele resolveu se afeminar:

            - Você também não faz questão de me entender.

            - Você não faz questão de se segurar - replicou ela.

            - Poxa, não dá, é difícil.

            - Faz força.

            - E como faço!

            - Quando um não quer, dois não fazem, você sabe.

            - Sei sim, Li, sei. Mas ás vezes não dá... eu te amo tanto... queria ficar pertinho...

            Cheque-mate, Maria Alice estava completamente derretida. Tornou seu rosto de volta ao namorado com os olhos caídos de sentimento.

            - Ah... Também te amo, mô. Mas sabe... tem que ser especial. Inesquecível. Eu-eu quero combinar uma coisa com você. Pra quando nós...

            Na calçada da igreja, ainda tinha gente que rezava, fervorosamente.

            Foi quando fizeram o pacto.


*****



            Meses se passaram.

            Maria Alice perdia o fôlego enquanto a irmã tentava lhe fechar o vestido branco. Algo começou a apitar no plano de fundo.

            - Meu celular, Bê! Pega meu celular!

            - Isso lá é hora de atender celular, é? - Maria Betânia largou o botão faltante e se dirigiu ao telefone móvel. Voltou com a expressão revoltada: - Ah, não, Li! Imagina que o Maurício quer falar com você agora!

            - Daí que eu quero atender ele.

            - Quê?! Você não tá falando sério!

            - Pára com isso, vai! Daí logo.

            - Dá azar o noivo ver a noiva antes do casamento, cruzes!

            - Ele não vai me ver, vai falar comigo. Pára de ser tão antiquada assim, vai - atendeu-o só abrindo e fez sinal com a mão: - E sai e fecha a porta, anda, vai!

            Esperou ter certeza de ter ouvido o clique para finalmente por o aparelho à orelha.

            - Oi, mô.

            - Sua irmã às vezes é bem chata, hein? - ele riu do outro lado da linha.

            - Eu bem sei, ai, ai... viu, algum motivo especial pra conversarmos agora? Sabe, estou atrasada prum casamento...

            - Talvez a gente acabe se esbarrando por lá - ele brincou -, mas pra garantir, eu tinha que te ver agora...

            - Me ver? Onde você tá?

            - Olha pra trás.

            Ouviu um toque em vidro e o encontrou grudado à janela. Ela caiu na gargalhada.

            - Nossa, você tá com saudades mesmo!

            - Sempre, mô, sempre - meteu a cabeça para dentro - Vem, vamos conversar aqui fora, aproveita que a sua irmã pentelha não tá aqui. Se ela ver a gente junto, dá azar.

            Maurício a ajudou a não rasgar o vestido cerimonial na travessia. Depois, encheu-a de beijos e elogios, juras de amor e votos de saudades. Desfilou para ela dentro de seu fraque alugado e permitiu-a arrumar-lhe o nó da gravata. Tudo isso a muitos decibéis abaixo do tom de uma conversa normal, porque serem ouvidos significava a morte, ou ainda talvez coisa pior.

            Com cuidado, sentaram-se grudados à parede do quintal, ao lado do jardim.

            - Você é muito teimoso por ter vindo aqui me ver - Maria Alice começou.

            - E você muito mais ainda, por estar aqui - ele retrucou.

            - É, é... acho que nós dois somos geniosos - ela riu - Pra falar a verdade, não sei nem como podemos estar juntos há tempo... já parou pra pensar nisso?

            - É a nossa paixão - e apontou para um pontinho no jardim, verde sobre verde se misturando a todos os tons e formas da natureza minúscula criada no quintal de trás. Ela não poderia deixar de ver, no entanto: era a figura alongada, as antenas eretas, os enormes olhos minúsculos, as patinhas unidas em reza.

            - Esse bichinho virou meu trabalho de conclusão de curso, quem diria - riu-se.

            - E eu querendo assustar você com isso, hein?!

            - Nunca que você ia conseguir... é uma paixão...

            - Nossa paixão.

            Abraçaram-se.

            - Falta pouco pra hoje à noite.

            - Mal posso esperar.

            Instantes depois, a irmã caçula abriu a janela de trás e criou-se o caos. O noivo foi expulso e sua cabeça foi posta a prêmio até as nove horas da noite daquele dia.

            Foi quando se casaram.


*****


            Dias se passaram.

            Só faltava a senhora Serafim engolir o telefone.

            - Ô, seu Antônio - chorava para o patriarca Pereira -, minha filha não atende o telefone, não atende o celular, não falo com ela desde o casamento!

            - Calma, minha filha, eles não são crianças, tão em lua-de-mel...

            - Mas é uma chácara lá no quinto dos inferno, minha Nossa Senhora!

            - O lugar é o paraíso, dona Neide.

            - Paraíso? Paraíso no meio do mato, é, seu Antônio? Sei lá que que tem lá por aqueles canto, bicho, ladrão, sei lá, alguma coisa de ruim!

            - Epa, a senhora não vem falando mal do lugar, não, que aquela chácara é herança de família, compreendeu?

            - E se não fosse a sua família, a minha filha não tinha sumido, então!

            Seu Antônio Pereira gritou satisfações do outro lado da linha, mas Neide não ouviu: o marido tinha lhe arrancado o aparelho das mãos.

            - Ê, mulher, que chilique é esse? Pelo amor de Deus, deixa que eu resolvo isso... - limpou a garganta e chegou perto do telefone: - Ô, compadre, desculpa minha mulher aí. Ela é muito desesperada. Nós só queria que o senhor desse umas passadinha por lá, vê como é que eles tão, se tá tudo bem... é que vocês conhece mais o lugar e tal, né?

            - Não quero mais ouvir ofensa dos outro, não, ouviu bem?

            - Que é isso, seu Antônio, a gente considera muito a sua família, o senhor sabe disso! É só coração de mãe, sabe como é, né? Não tá se agüentando desde que a menina pôs o véu.

            - Pô, a minha aqui também não - e finalmente trocou a seriedade pelo riso - Chega de mulher preocupada. To indo lá agora ver os dois.

            - Então você me avisa depois?

            - Po\'deixá então.

            E desligou.

            - Você pára de ter ataque histérico, viu, Neide? Que é isso, fica agredindo o homem à toa... fique sabendo que ele falou que já vai na tal da chácara. Agora, sossega o facho!

            Saiu, deixando a esposa sozinha no quarto, as mãos em cima do peito do coração disparado, como se quisessem acalmá-lo. Mas não poderiam. Tinha que ter notícias da filha.

            Tirou um terço do bolso e se pôs a rezar.

            Foi quando começaram as buscas.

*****



            Horas se passaram.

            Já era tarde da noite quando Antônio, seu irmão e mais dois sobrinhos chegaram à chácara oferecida à lua-de-mel dos recém-casados. Suas luzes estavam todas apagadas.

            Entraram em todos os cômodos, passaram a mão pos todos os interruptores, desconfiaram de cada detalhe intacto. Nada havia acontecido naquela casa, além do mais pó acumulado.

             Foi quando encontraram Maria Alice.

             Ali, no último quarto, o supostamente do casal. O cheiro de podridão era insuportável. Ela estava de joelhos, os olhos cerrados repletos de lágrimas, a boca pintada de vermelho, em oração.

            Quando acenderam a luz, centenas de louva-deuses saíram pulando numa enxurrada pavorosa.


*****



             Minutos se passaram.

             Pegaram uma lanterna, enfiaram-se no mato.

             Foi quando encontraram Maurício.

             Sem a cabeça.

             Seu cadáver estava coberto de formigas.

           

           


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