Elseth - as Crônicas dos Sobreviventes escrita por Pedro_Almada


Capítulo 2
Um Pouco de Chá




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UM POUCO DE CHÁ

 

            A caverna estava iluminada por uma fraca lareira, alimentada por galhos minúsculos e lascas de arpões inúteis em uma guerra. Apesar disso, o frio da quase-noite não era capaz de adentrar a cripta, onde as paredes barravam, sem nenhum esforço, o vento cortante.

            O velho aquecia uma panela de cobre, onde uma pequena porção de chá borbulhava, emanando um aroma de ervas adocicadas. Suas mãos trêmulas apanhavam a concha e giravam o líquido em todos os sentidos, permitindo que todas as folhas recebessem o calor escasso do crepitar instável da lareira.

            Ao lado do velho, quase imperceptível, uma criança, menino franzino de olhos muito azuis e cabelos louros espessos, girava no ar um cavalo feito de amarras de palha e toras de madeira, absorto em sua brincadeira particular, aparentemente ignorando a guerra que explodia lá fora, na província de La Elseth.

            O velho observou, por um breve momento, a criança que cavalgava em sua imaginação. Sorriu, sabendo que ali, naquela fantasia doce e infantil, seu neto estaria protegido, longe das lanças violentas e as espadas banhadas de perdição. O mundo estava aos escombros agora, e tudo o que o pobre homem queria era alimentar o filho de seu filho, a única fagulha ainda acesa em sua vida decrépita.

            - Ranald, meu pequeno – murmurou o velho – gostaria de um pouco de chá?

            A voz do velho soou grave, cansada. O menino fitou surpreso, o avô, que, inesperadamente, se tornara bondoso e amoroso, traços antes desconhecidos na personalidade do idoso ranzinza.

            - Eu... Quero sim, senhor – o menino respondeu, pousando levemente o cavalo sobre uma pedra.

            O velho abriu sua bolsa de couro de lebre, pegou dois canecos de metal, encheu-os do líquido amarelo-esverdeado, enquanto a fumaça espiralava no ar, o liquido fumegante esquentando a base do recipiente.

            O velho estendeu o caneco para o menino, que o fitou com hesitação.

            - Vamos, Ranald, não tenha medo. – o velho sorriu, como nunca fizera antes – confie em seu velho avô.

            O menino assentiu, confiando sinceramente. Jamais o vira agir dessa maneira, mas Ranald gostava da forma como o fazia. Era cálido, como não costumava ser, e cuidadoso. Jamais conhecera o talento do avô com as ervas.

            - Isso mesmo, meu menino – o velho sorriu, engolindo uma lágrima que passou por despercebido – beba devagar, está quente.

            O avô foi o primeiro a bebericar o chá quente, estalando a língua ao sentir o doce sabor das ervas que cultivava, antes da guerra assolar as suas terras e sua família.

            - Doce... Quente... – ele murmurou, mais para si mesmo do que para o neto – como a vida costumava ser.

            Aquelas palavras excitaram a atenção do menino, como se, de repente, seu avô, antes austero e bruto, se transmutasse em um ancião sábio, dócil, de sorriso caloroso.

            - É sim – disse o menino, provando do chá – doce... Muito quente.

            O velho deixou escapar uma risada honesta, franca.

            - Eu disse para beber devagar. Não quer desperdiçar esse sabor, certo?

            - De jeito nenhum, vovô. – Ranald riu em resposta, achando divertida a súbita mudança do avô.

            Ambos permaneceram em silêncio, protegidos em suas lembranças. As mãos se aqueciam com a caneca, enquanto a lareira, aos poucos, diminuía seu vigor, como se estivesse prestes a se converter em uma tosca labareda, que logo seria apenas pó.

            - Vovô... – Ranald murmurou, incerto – posso perguntar uma coisa?

            A voz da criança quebrou o silêncio como uma maldição quebra um encanto, mas o velho não fez menção de silenciar o garoto. Fitou o neto com gosto e, atento, murmurou.

            - Diga, Ranald. Diga o que quiser. Hoje o dia é nosso, todinho nosso.

            O garoto sorriu, radiante. De repente, eram amigos, escondidos em uma caverna, em um diálogo amigável, amável.

            - Mamãe... – o menino resmungou, mas sem abandonar seu inocente sorriso – vou vê-la de novo?

            O avô fechou os olhos, pensativo. O que dizer a uma criança órfã? Provavelmente era essa sua dúvida. Ele não sabia precisar o instante em que passou a se preocupar com os sentimentos do neto, mas sabia que essa mudança estava fortemente ligada à guerra, que, cedo ou tarde, chegaria até eles.

            - Astrid, sua mãe... Ela também tem um cavalo. Exatamente como o seu.

            O velho apontou para o brinquedo rústico sobre a pedra. O menino virou-se, encantado, encarando seu objeto superestimado.

            - Como esse? Igualzinho?- perguntou Ranald.

            - Parecido, na verdade. – o velho corrigiu a si mesmo – O dela é grande, branco, com uma crina prateada.

            Ranald ficou estupefato, ouvindo a descrição graciosa de um animal irreal, existente apenas em sua doce e ingênua fé infantil.

            - Eu a vi cavalgar, antes de fugirmos de La Elseth – ele continuou – sua mãe subiu no lombo do cavalo e desapareceu na floresta. Ela estava radiante, com um longo vestido branco, um sorrido dourado. Seu pai também estava lá, sabia? Eu o vi montado em um corcel negro, com olhos azuis e astutos.

            “Que mal há mentir para uma criança?” perguntou o velho em seu íntimo. “A verdade não precisa ser dita”. O homem não queria contar ao neto como seus pais foram brutalmente arrancados de casa e esmagados pelos cascos da cavalaria meradorfiana.

            - Vô...

            O velho piscou duas vezes, despertando-se do devaneio secreto.

            - Sim?

            - Por que Elseth está em guerra? – o garoto voltou a abraçar seu cavalo de madeira e palha. Bebeu um pouco mais de chá e observou a reação do avô – por que eles brigam? Mamãe disse que não devemos brigar. Ela disse que devemos ser pacíficos.

            O homem assentiu.

            - Ranald, todos devemos ser pacíficos... – ele sentou-se em uma pedra, terminando o seu chá e depositando o copo no chão – mas a natureza do homem não se resume em uma palavra... Somos humanos, e somos desumanos. Gentis, e hostis. Somos paz... Mas também somos guerra.

            O garoto absorveu a informação do avô, mas sua simplicidade infantil, seu tenro modo de ver o mundo, o impedia de ver dessa forma. Por que não poderiam ser simplesmente humanos, gentis e pacíficos?

            O avô notou a preocupação do neto aflorar em seus grandes olhos azuis. Lembrou-se das histórias que ouvira de seu pai, e do pai de seu pai. Histórias carregadas no lombo de mil gerações. Talvez fosse ali, aquele momento.

            - Quer ouvir uma história Ranald?

            Os olhos do menino se encheram de luz. Ah, como era fácil alegrar uma criança!

            - Quero sim, vovô. Quero sim.

            O velho sorriu.

            - Então preste muita atenção. É uma história longa.

            Ranald não respondeu mais. Já estava assentado ao lado da fogueira, atento, encarando o avô, esperando, a qualquer momento, a narrativa de sua história.

            - Bem... – o velho tossiu, pigarreou, mas continuou – É a história de nossa nação, nosso mundo.

           

            “Em um passado muito remoto, o mundo foi dividido em sete reinos: Ginald, Olarius, Sexto, Brioario, Fernocco e, finalmente, Meradorf e Elseth.Sabe por que isso aconteceu? Porque os homens não partilhavam das mesmas idéias. Uns acreditavam no livre comércio, outros eram tiranos e controladores da política e economia. A discrepância era imensurável. Não puderam conviver debaixo das mesmas leis. Então se dividiram.”

            “Mas isso não aconteceu de forma pacífica. Para dividir o mundo, é preciso demarcar territórios, e esse é o primeiro passo para se colecionar inimigos. Todos almejavam as mais verdejantes pradarias, os leitos de rios cristalinos repletos de peixes, um ambiente onde cervos, javalis e toda a sorte de caça se misturavam à riqueza de plantas e, o mais importante, minas de ouro. Sim, sempre o ouro no caminho dos ambiciosos. E assim os povos mergulharam na guerra.”

            “Naturalmente, os povos mais fortes, Meradorf, Elseth e Olarius, obtiveram os melhores terrenos. Os outros recolheram as migalhas e tomaram uma posição, digamos, neutra. Mas Elseth e Meradorf, não. Ah, não mesmo! Eles queriam mais.”

            “Chegaram a sacrificar o seu povo, enquanto o rei Edmundo I, de Elseth, mandava arrancar a cabeça dos invasores. Mas o rei de Meradorf, Fidel I, também não estava atrás. Ambos tinham as mãos cobertas de sangue. Olarius, o reino próspero, logo se retirou da guerra, satisfeito com o que tinha... Nunca vi um rei tão sábio como aquele.”

            “A primeira guerra, conhecida acidamente como “A Dança das Espadas de Sangue”, aconteceu pouco tempo depois. Elseth organizara suas tropas. Os vilarejos mais importantes estavam abarrotados de arsenais, armaduras, cavalos rápidos e potentes. Os mais fortes eram convocados, mas muitos se ofereciam de bom grado.”

            “Ranald, você precisava ver! O amontoado de gente nas praças, a fonte decorada, pareciam estar preparando uma festa. Os casebres mais simples foram usados como despensa para comida, ou como hotelaria para os viajantes das regiões mais distantes que se ofereciam a lutar contra Meradorf, embora, é claro, nossos inimigos também recebessem estrangeiros adversários.”

            “Naquele dia, fazia um sol de rachar. Sua avó, se me lembro bem, se oferecera para cuidar dos feridos. Eu estava com a espada mais pesada do meu grupo. Sim, meu querido. Eu era um guerreiro, o melhor, diga-se de passagem.”

            “Não demorou muito, e o general gritou ‘Meradorfianos!’. Foi um pandemônio. As mulheres agarravam seus filhos e se abrigavam ns porões, os guerreiros desembainhavam suas espadas e, os mais humildes e valentes pegavam o que podiam usar como arma. O inimigo tinha atravessado os portões de Elseth. Vieram em nossa direção com balisas, catapultas e flechas. Lutamos bravamente. Mas o resultado foi menos que o esperado.”

            “Havia muito sangue. Cabeças fora de seus corpos. Suspiros de despedida. Vi meus amigos morrerem um por um, enquanto eu sobrevivia, matava. O conflito durou até a noite, fria e nublada. A única coisa que aquecia o meu corpo era o sangue de meus inimigos. Por fim, eles bateram em retirada. Mas deixaram uma grande cicatriz no coração de Elseth.”

            “Dez anos de conflito, se não me engano. Até o dia em que Elseth e Meradorf decidiu assinar o Contrato de Fronteira. Segundo esse contrato, um meradorfiano não poderia invadir Elseth, e nenhum elsetiano poderia invadir os terrenos de Meradorf. Os conflitos seriam nas zonas mortas entre as fronteiras. Vez ou outra Edmundo I mandava algumas tropas para, à certa distância, derrubarem as torres de vigília. Erguemos nossas guaridas, novas muralhas. Depois daquele dia, eu soube. Nunca mais os campos de Elseth seriam pacíficos. Nenhum povo seria livre desse medo. O império de Elseth estava destinado a se afogar no próprio sangue”.

            O homem engasgou, percebendo que estava chorando. Sentiu o chá formigar a sua garganta. “Um pouco mais”, pensou ele, “e tudo será paz, pequeno Ranald”.

            - Vovô... Aqueles homens de armadura no vilarejo... Eles eram meradorfianos, não eram? – perguntou o menino.

            - Sim. – ele admitiu, desanimado – acho que, por essa vida, chega de histórias.

            O menino tossiu, sentindo uma estranha queimação na garganta.

            - Vô... Acho que o chá não me fez bem.

            O velho apenas riu, suave, resignado. Pacífico.

            - Vai fazer, meu filho. Ele vai nos trazer liberdade, logo logo.

            Ranald se curvou, abraçando as próprias pernas, sentindo um súbito mal-estar.

            - Vovô, não estou me sentindo bem. – o menino tossiu, sentindo sua cabeza girar.

            O velho aproximou-se do neto, abraçando-o com força, sentindo o calor daquele pequeno corpo, a única amostra real e cálida de que a inocência e a gentileza ainda existia, não era apenas uma lenda.

- Vai ficar tudo bem, Ranald – disse o avô – descanse. Eles não vão mais nos fazer sofrer.

O menino fitou o rosto plácido de seu avô e, em seguida, lançou um rápido olhar para o caldeirão de cobre, onde o chá ainda fumegava.

            Ranald fechou os olhos, ouvindo o falho coração do avô batendo, já sem o mesmo ânimo de viver. Percebeu, logo em seguida, que o seu próprio coração já não lutava por continuar com a frenética batida que lhe conduzia à vida. Ambos estavam adormecendo. Os olhos não mais despertariam.

            - Durma, Ranald. Prometo que logo, logo, acordará em um lugar melhor.

            - Elseth?  Murmurou o menino.

            - Sim... Uma Elseth muito melhor.

            O som no exterior da caverna aumentou. Cascos de cavalos surravam a terra fofa com urgência, enquanto gritos e ordens soavam não longe dali.

            - Aqui, comandante! – gritou um – Vejo uma luz naquela caverna!

            - Mate! – gritou a voz em resposta – Quem quer que seja, mate!

            Barulhos metálicos soaram em seguida.

            O velho levou a mão ao rosto do menino. Suspirou, aliviado. Eles não poderiam mais executar sua criança. Deitou-se, abraçado ao corpo vazio de Ranald. A última coisa que sentiu antes de fechar os olhos foi o aroma doce do chá, ainda quente sobre a fogueira.


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