Elseth - as Crônicas dos Sobreviventes escrita por Pedro_Almada


Capítulo 1
O Estopim




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Eu tinha cometido um grande erro. Deitado ali, na nave da catedral em ruínas, eu era capaz de entender. Se eu tivesse, ao menos, pensado antes de ter feito o que fiz, provavelmente muitas vidas teriam sido poupadas.

 

            Deixei a minha aljava e o arco sobre um pilar, ou pelo menos o que restara dele, enquanto o vento gélido da tarde cinza entrava, sem nenhuma dificuldade, nos domínios da antiga catedral, onde, um dia, vi meu irmão se casar com a bela Cossette Rivielli, duquesa de La Elseth. Muitos casamentos passaram por ali, muitas promessas de felicidade eterna foram proferidas entre aquelas paredes, agora aos escombros.

 

“Não, a cidade não suportara sustentar tantos sonhos alicerçados em uma província instável, onde a guerra era, a cada dia, uma triste e desesperadora realidade. Ouvi os choros, assisti a violência, presenciei crianças órfãs, e pais sem filhos. Tudo numa fração de segundo se tornou o caos. Um caos invocado por mim, por meu estúpido complexo de grandeza.”

 

Não é o tipo de coisa que um simples e jovem domador de cavalos consegue suportar, mas foi o que precisei fazer. Suportar as maiores atrocidades, atravessando todo o condado, montado no lombo de uma égua albina, com um cão pastor ao flanco, correndo como um louco. Não sei quantas flechas disparei, mas eu sabia que havia deixado um lamentável rastro vermelho logo atrás.

            Fugi. Um soldado da guerra entre províncias, um jovem de apenas dezoito anos, acompanhado de seu leal cão Proteus e sua montaria Sophie, fugitivo, sem nenhuma honra. Se eu continuasse no confronto, provavelmente seria o meu corpo a decorar o cenário fúnebre do centro da cidade de La Elseth.

 

            “Os reinos de Elseth e Meradorf nunca foram tão inimigos quanto nesses últimos tempos. Agora eu conseguia compreender, embora, tarde demais.”

 

            Proteus lambia a pata ferida, tentando estancar o filete de sangue que, teimosamente, brotava de sua ferida. Sophie estava mastigando os arbustos, que, a julgar pelos seus protestos, tinham um gosto tão ruim quanto a própria derrota.

            La Elseth era uma província, a principal, do grande reino de Elseth, lugar onde nasci, cresci e, provavelmente morrerei, mais cedo do que esperava. Meus olhos se encheram de lágrimas, fitando o campo onde, outrora, os aldeões trabalhavam pacificamente, colhendo morangos e ensinando seus filhos o manuseio do arco e flecha, lanças e adagas.

            Lembrei-me do primeiro dia em que disparei uma flecha, perfurando um esquilo que tentava apanhar uma noz. Meu pai estava ao meu lado, sorrindo de orelha a orelha, orgulhoso da pontaria do filho. Naquele dia, senti, pela primeira vez, o gosto da carne caçada, minha primeira captura. Nunca me senti tão feliz, tão vivo.

 

            “Meu pai me fitava com uma ternura incomparável, acreditando ser eu a maior de suas bênçãos, o maior orgulho que os céus presenciaram. Eu lutei, todo esse tempo, para que assim fosse. Lutei para que cada gota de sangue e suor se convertesse em uma vitória, não a mim, mas ao meu pai, o homem que me ensinara o papel de um homem, um soldado, protetor de uma nação de nobres.”

 

            O céu começava a escurecer, senti eu meu rosto os primeiros salpicos de chuva, sinal de melancolia. Toda a província chorava sua perda, seu sangue em dilúvio. Proteus dormiu mais que depressa, Sophie desapareceu na escuridão, em algum lugar. Não me dei ao trabalho de procurar, sabia que voltaria cedo ou tarde. Chorei, como nunca. Como um soldado ferido. Dezoito anos, juventude. Nada disso era desculpa. Meu corpo era forte, e isso deveria ser o suficiente. Mas fui tolo, estúpido.

 

            “O Imperador de Elseth, Dominique III, grande homem e líder, me nomeara soldado da guarda real. Os olhos de meu pai pareciam cascatas incontroláveis, chuva desenfreada diante a mina nomeação, seu filho, um simples aspirante a domador de corcéis, agora desembainhando uma espada em nome do reino. Sir Gran Fideus, - o grande fiel – o primeiro jovem de dezessete anos a vestir a armadura das tropas de Elseth. Os novos recrutas se faziam necessários em tempos de guerra, e D. Dominique III me enxergava como um soldado em potencial. Ele só não esperava que seria eu o responsável pela queda do condado de La Elseth...”

 

            Meu primeiro pensamento foi “Onde está Sir Gran Fideus agora?”. Eu não o sabia, pois não o era mais, não era digno de receber essa honra. Minha mente vagou, deslizando sorrateiramente até o passado recente, tempo-lugar onde meu ego explodira em uma catástrofe.

 

            “Estava apanhando tâmaras, enquanto Proteus montava guarda na torre de sentinela, pronto para avisar qualquer movimento suspeito. O brasão de Elseth brilhava em meu peito, reluzindo o ouro puro, mais do que qualquer raio de sol no dia mais ensolarado, no verão mais quente. O aroma da grama tomava conta da atmosfera. Estava absorto em pensamentos longínquos, enquanto fazia uma prece mental, agradecido pela vida que levava. De simples domador a soldado. Prodígio com a espada como eu, não havia em toda a província. Meu pai se assegurava de que ninguém, jamais, se esqueceria disso.”

            “Estava com os lábios lambuzados de tâmaras, quando ouvi o latido de Proteus ecoar. Algo estava acontecendo.corri em direção a torre, onde Proteus saltava e rosnava ferozmente. Um vulto vermelho correu pela floresta, esmagando galhos, fazendo os ramos mais baixos farfalharem como asas de abutres esfomeados. Segurei meu arco, movi uma flecha da aljava e posicionei, esticando a flecha até tocar o meu queixo. Continuei correndo, sem jamais perder o vulto do campo de visão. Assim que o identificasse como hostil, dispararia a seta contra seu peito, e teria cumprido meu papel como soldado da guarda real.”

            “Sim, estava próximo agora. Fosse quem fosse, parecia cansado, começava a mancar e, logo, desacelerou.”

            “- Pare! – gritei – identifique-se!

            “Ele não parou. Uma capa vermelha o cobria. Identifiquei o brasão no capuz, um soldado de Meradorf. Insolente, acreditava mesmo que poderia entrar nos domínios de Elseth e sair com vida, como se zombasse de nossos ancestrais e cuspisse em nossas costas. Não, eu era um soldado.”

            “- Estou Avisando, imundo! – bradei – pare aí mesmo!”

            “Ele continuou sua correria. Estava perto do rio Lorean, a divisa dos dois impérios. Minhas pernas obedeceram fielmente, mas eu precisava admitir, meu adversário, ainda exausto, era ligeiro e astuto. Se emaranhava nos galhos e saltava as valas com uma facilidade admirável. Mas meu corpo era corpo de guerreiro e, como tal, era meu dever vencer o limite de meu próprio inimigo. Era uma doutrina elsetiana.”

            “Não consegui, no entanto, pará-lo. Ele saltou uma pedra e pousou como uma ave experiente sobre a ponte. Não era alguém que eu devesse subestimar. Continuei a perseguição. Subi a ponte e disparei a primeira flecha. Ele não podia chegar do outro lado. Mas minha mira não foi tão impecável, e a seta perfurou seu capuz, sem feri-lo.”

            “- Maluco! – ele gritou – se me mata, seu reino será apenas ruínas pela manhã! Não pode atravessar essa ponte!”

            “- Suponho que você possa! – bradei em resposta – Não, verme! Eu o tenho na mira! Vou arrancar os seus pés, pó ter profanado nosso solo!”

            “De fato, eu não deveria estar ali. Eram ordens, não apenas do rei, mas de meu próprio pai – jamais cruze a ponte, jamais penetre em reino meradorfiano. Mas eu estava cego e surdo para qualquer ordem. Acima das leis, estava a honra de meu povo. Permitir a fuga de um inimigo seria proclamar nossa fraqueza, minha incompetência como guerreiro. Não, eu não tinha outra escolha. Era preciso apagar a luz de vida em seus olhos.”

            “Atravessei a ponte, seguindo meu adversário. Ele parecia, a cada instante, mais assustado, provavelmente surpreso por me ver atravessar a ponte. Sim, eu corria o risco de ser atingido por uma flecha a qualquer instante, mas, como disse, estava cego e surdo.”

 

            Nem mesmo as estrelas ousaram assistir a guerra. Senti-me, como nunca, um homem medíocre e solitário. A morte batia em minha porta, na porta dos meus familiares.  Maquinei mil maneiras de voltar no tempo e me redimir do erro, mas era uma tolice, tão logo percebi estava a beira da loucura. A chuva me deixaria sano por mais tempo. Recolhi uma flecha do chão, parcialmente atravessada no solo, onde uma mancha de sangue se formava no mesmo lugar. Alguém fora ferido bem ali e, provavelmente, se arrastara até morrer à beira de algum rio, onde seu corpo seria levado até o mar, e ninguém mais poderia ver. Tolos, não havia nobreza na morte. Morrer não é honroso. Sorrir depois de uma guerra, isso sim é ser vitorioso.

 

            “O vulto continuava correndo, bradando contra mim:

            “- Não venhas, rapaz! Vai causar uma guerra!”

            “- Pensasse nisso antes de invadir nosso reino!”

            “O vulto saltou duas pedras, aproximando-se de um grande arbusto. Àquela distância eu podia ver claramente o cavalo cinza logo atrás do emaranhado de folhas. Então meu inimigo tinha uma carona, um meio de fuga a quatro patas! Não, eu não podia! Meu brasão nunca reluzira tanto em meu peito. Peguei uma outra flecha. Mirei, tocando o polegar no lábio inferior.”

            “O vulto vermelho gritou ao perceber a seta em sua direção:

            “- Tolo!”

            “Tarde demais. Não adiantava me ofender. A flecha disparada acertou suas costas, o lado esquerdo, perpassando sua carne. Ele cessou a correria, suas forças instantaneamente drenadas pelo disparo certeiro. Caiu, mansamente. Até mesmo sua queda era ensaiada, tamanha era sua honradez. Disparei contra ele, decidido a ver o rosto do fugitivo. Ele ainda gemia quando o virei, fitando, perplexo, o seu rosto.”

            “- Klaudius... – murmurei, incapaz de respirar – Klaudius Meradorf!”

            “O príncipe Meradorf estava morrendo, bem a minha frente, enquanto seu sangue escorria pelo tapete verde abaixo de nós, minha flecha cravada em seu peito como uma agulha em uma almofada de costuras. Persegui o meu inimigo, invadi terrenos distantes, e matei o futuro Imperador do reino adversário.”

            “- Prepara-te, garoto... – murmurou Klaudius, apertando desesperadamente seu peito perfurado – proteja sua família e seu rebanho. Logo, tudo será cinzas... Seu engano é imperdoável...”

            “- Não... – foi o que consegui dizer, antes de ouvir os tropéis de cavalos ferozes.”

           "A Morte de um simples soldado, ou até mesmo um líder da guarda real inimiga, isso poderia ser facilmente resolvido por um acordo diplomático. Mas a morte do filho de Meradorf? Nao, isso era imperdoável. Era guerra."

            “A cavalaria de Klaudius estava se aproximando. Meu ato significava a partida para uma guerra de sangue. A estupidez de um garoto movido pelo orgulho disparara contra seu próprio povo uma flecha banhada de morte.”

            “Fugi. Pela primeira vez, eu fugi. Atravessei a ponte novamente, em direção ao palácio. Precisava avisar o rei, e salvar minha família.”

 

            Deitei-me sobre a grama fria, onde minhas costas nuas podiam sentir as baixas temperaturas da terra úmida, enquanto meu peito recebia a chuva forte. Eu não tinha mais um reino, nem mesmo um brasão radiante. Apenas um cão e uma égua. Desejei ter errado aquele esquilo, desejei ser um fracasso. Eu era a fagulha para estourar aquela guerra sem propósito racional. Agora, nem mesmo a chuva era capaz de apagar a chama que consumia a nação de Elseth. Enquanto adormecia, desejei haver uma salvação para o meu povo. Talvez, algum dia, minha alma recebesse algum perdão.


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Notas finais do capítulo

...
Se gostar, por favor, reviws xD



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